Pão, fé e terra: luta de classes na Alemanha (1524-1525)

A Alemanha não existia, ao menos não como a conhecemos. O poder estava nas mãos do Sacro Império Romano-Germânico, um conglomerado de territórios multiétnicos na Europa Ocidental e Central, que perdurou do ano 800 a 1806 e foi dissolvido com o advento das Guerras Napoleônicas. Dentre alguns reinos, como da Boêmia, da Itália e de Borgonha, o maior território era o Reino da Alemanha. Este reino, por sua vez, foi formado em 843, após o Tratado de Verdun, assinado em agosto deste longínquo ano e responsável por dividir em três partes o Império Carolíngio entre os filhos de Luís, o Piedoso, herdeiro de Carlos Magno.

Tal período também precisa ser estudado pelas novas gerações, compreendendo os antagonismos de classes na Idade Média. Entretanto, nosso foco está na região do que era o Estado Livre da Saxônia, integrado ao Sacro Império Romano-Germânico no século 10, período apreciado por Friedrich Engels, em 1850, em sua obra Guerras Camponesas na Alemanha, que nos leva a atentar para estes processos históricos.

A Saxônia, no século 15, ao fim da Idade Média, fora dividida pelo Tratado de Leipzig, de 11 de novembro de 1485, realizado pelos herdeiros da Casa de Wettin, que governou a região por mais de 800 anos. O tratado criou a Turíngia, sob o comando de Albert III, e outros estados menores, sendo conhecidos como os Ducados de Ernest, ambos filhos de Frederico II, o Gentil. Foram estes territórios os palcos das Guerras Camponesas do século 16, precisamente entre 1524 e 1525. Estes anos propiciaram à luta dos explorados da sociedade ensinamentos que merecem ser constantemente lembrados, desde o ponto de vista do materialismo histórico-dialético. Isso porque, como explicou Engels, os pretextos religiosos e demais interesses, aparentemente, privados, foram meras alegações para as contradições e antagonismos da guerra de classes. Os reais motivos dessas guerras camponesas se ocultaram sob o manto religioso, mas não mudaram seu fundamento, a necessidade por pão, paz e terra, com o acréscimo, evidentemente, da liberdade de crença (Engels, 1977, p. 38).

Engels, professor e historiador do proletariado

Antes de adentrarmos à história em si, é preciso saudar o professor do proletariado internacional, Friedrich Engels. Responsável, ao lado de Karl Marx, por desenvolver o Socialismo Científico, Engels se notabilizou pela habilidade didática ao educar a classe trabalhadora no século 19 e nos deixou uma obra repleta de ensinamentos para a construção de um novo mundo. Uma destas fabulosas obras políticas e historiográficas é a brochura “Guerras Camponesas na Alemanha”, publicada no verão de 1850, no calor da Primavera dos Povos de 1848. Este texto foi dividido, originalmente, em dois artigos para os números 5 e 6 da Neue Rheinische Zeitung-Revue, uma revista editada por Marx na cidade de Hamburgo1.

Para todo historiador, a fonte, seja ela qual for: escrita, oficial ou secular, iconográfica, audiovisual ou qualquer outra, é um carbono a ser lapidado até se transformar em diamante. Além das fontes primárias, outras antigas historiografias também podem servir para nos apresentar processos históricos a serem visitados ou revisitados. Neste sentido, o trabalho de Engels é um exemplo a ser seguido pelos revolucionários.

Engels, em pleno século 19, o século do historicismo alemão de Leopold von Ranke, desmontou o sagrado dogma historiográfico do período, que colocava no altar a pesquisa documental e só considera historiador de verdade aqueles que se dedicam à atividade de vasculhar arquivos oficiais do Estado. Assim, para desenvolver sua análise daquelas décadas do século 16, Engels partiu de uma fonte chamada “História da Grande Guerra Camponesa”, de Wilhelm Zimmerman, composta por três tomos e publicada em 1841 e 1843. Além da historiografia deste deputado democrata alemão, Engels também coletou outras fontes obscuras para seus artigos, transformados em livro em 1870.

Apesar de louvar o trabalho de Zimmerman, Engels criticou sua limitação ao não compreender que aqueles processos de 1524 e 1525 significaram, de fato, uma luta política, a guerra de classes sendo travada, e não, meramente, uma oposição genérica entre explorados e exploradores ou bem e mal. Como qualquer obra historiográfica marxista, a iniciativa de Engels em falar de um conflito do contexto reformista da Igreja no meio do século 19 deu-se com o intuito de demonstrar que qualquer atividade historiográfica e que o próprio ofício do historiador deve ser subordinado ao seu tempo, às necessidades e interesses do presente.

A luta de classes na Alemanha (1524-1525)

A Santa Igreja foi tomada de assalto no século 16. As reformas protestantes romperam a autoridade da Igreja católica, originando novas estruturas religiosas e interpretações da Bíblia. Os centros destas disputas eram os territórios que hoje conhecemos como a Alemanha, a Suíça e a Inglaterra. Porém, diferente de uma concepção deturpada da história, que compreende os processos de contradições entre sociedade e Igreja apenas como rupturas culturais e espirituais, as reformas protestantes, os antagonismos na Europa quinhentista, foram explicitamente o desenvolvimento da luta de classes.

Nas Guerras Camponesas de 1524 e 1525, vemos despontar a figura revolucionária de um teólogo chamado Thomas Müntzer, liderança da ala radical dos anabatistas2 da Saxônia. Rebelado dos preceitos do teólogo reformista Martinho Lutero, Müntzer dirigiu o campesinato pobre alemão nesses momentos de pauperização e sofrimento dos trabalhadores rurais. Estes viviam sob as profundas explorações impostas pelas classes dominantes, os chefes de Lutero.

Thomas Müntzer
Revolucionário, Thomas Müntzer redigiu, em 1524, os Doze Artigos, que traziam consigo as reivindicações dos trabalhadores. Nesse manifesto por dignidade e revolução, exigiu que os camponeses pudessem nascer livres, possuir liberdade de escolha espiritual e religiosa, obter a diminuição dos impostos, o acesso à terra e a liberdade para caçar nas florestas da nobreza. No entanto, suas principais e enfáticas palavras de ordem eram ainda mais radicais: Omnia sunt communia, isto é, Tudo é de todos! Para Engels, esta era a expressão máxima da abolição da propriedade privada no século 16. Eram os trabalhadores ansiando as terras comunais, o prelúdio do comunismo dos séculos 19 e 20.

Em contraponto ao revolucionário, estava Martinho Lutero. Representante da fração junker3 alemã, o exaltado reformador da Igreja, ao perceber as reivindicações, ou seja, ao deparar-se com a expressão da luta de classes que se manifestava nas mobilizações dos camponeses, iniciou uma cruzada contra os trabalhadores e contra Müntzer. Nem mesmo a presença de alguns seguidores seus compondo a revolta compadeceu Lutero, que, exasperado, pedia a morte dos camponeses, sem qualquer remissão divina. Müntzer e os anabatistas foram por ele considerados como “tendo conexões satânicas com os papistas” (Gritsch, 2002, p. 41 apud Santos, 2009, p. 76), além de toda a sorte de difamação e ataques contra o dirigente revolucionário.

Porém, apesar da campanha reacionária de Lutero, a militância de Müntzer crescia exponencialmente. Em poucos meses, sua organização Aliança de Allstedt passou de 30 para 500 membros nas zonas rurais alemãs. Lutero praticamente ignorava a extensão da revolta entre os camponeses até ele próprio viajar pela Turíngia, no centro do país. Foi então, nesta ocasião, que ele pôde observar a gravidade da situação e testemunhar os camponeses “realizando a obra do diabo”.

Assim, para expressar todo seu ódio contra os trabalhadores, Lutero produziu diversos artigos, como o famoso Contra os Camponeses Assaltantes e Assassinos4, escritos entre 1524 e 1525. Nele, Lutero acusou os camponeses de três crimes: violação de seus juramentos de lealdade, crimes contra a fé e o cometimento de crimes em nome de Cristo, uma grande blasfêmia. O reformador defendeu incansavelmente os atos dos príncipes contra os camponeses, exigindo o assassínio dos trabalhadores. Sua santa justificativa era que estes eram homens “sem fé, perjurados, desobedientes, rebeldes, assassinos, ladrões e blasfemos, a quem mesmo um monarca pagão teria o direito e a autoridade de punir”. Tal como uniram-se as burguesias alemãs e francesas na Comuna de Paris para esmagar os communards, uniram-se cristãos e pagãos das classes dominantes para massacrar os camponeses pobres da Saxônia.

Perante a revolução, esqueceram-se todos os rancores; em comparação com os bandos de camponeses, os servidores da Sodoma romana eram mansos cordeiros, inocentes filhos de Deus; burgueses e príncipes, nobres e curas, Lutero e o Papa aliaram-se contra “os bandos assassinos de camponeses ladrões”, pregando sua destruição e morte, como cão raivoso, como gritava Lutero” (Engels, 1850).

De fato, tal mobilização assustou Lutero e as classes dominantes da Alemanha, pois o movimento camponês ganhava grande força. Atraía não apenas camponeses, mas também os trabalhadores urbanos, explorados e oprimidos pela recém e incipiente indústria alemã. Elemento, segundo Engels, que obteve papel importante no processo.

Enquanto o papel de Lutero estava sendo cumprido, Müntzer realizava o seu, especialmente quando começou a percorrer várias regiões do território, dirigindo a revolta. Em fevereiro de 1525, o movimento havia se alastrado por todo o país com os trabalhadores armados de paus, pedras e quaisquer ferramentas que encontrassem pelo caminho. Porém, diante de uma mobilização avassaladora das classes dominantes para realizar a contrarrevolução, os camponeses não tiveram chances contra os soldados profissionais, armados e experientes, aos quais se somaram igualmente tropas mercenárias, contratadas pela nobreza e pela burguesia.

Martín Lutero, por Lucas Cranach el Viejo (1529)
Em 29 de abril de 1525, os camponeses, em protesto, foram somados por cidadãos de Frankenhausen, na Turíngia, ocuparam a prefeitura e o castelo dos Condes de Schwarzburg. Nos dias seguintes mais trabalhadores aumentaram o bando de revoltosos. Ao passo da revolta, as tropas dos príncipes estavam se organizando, fortalecendo e perseguindo Müntzer com seus mercenários com um preparo e armas muito superiores aos pobres sem formação militar.

Foi então, na Batalha de Frankenhausen, em 15 de maio de 1525, que os camponeses foram derrotados pelas tropas do Landgrave5 Filipe I de Hesse e do Duque Jorge da Saxônia, após um ataque coordenado com cavalaria, infantaria e artilharia. As fontes estimam um saldo de mais de 10 mil camponeses mortos. Uma carnificina. Na cidade vizinha, chamada Mühlhausen, em 27 de maio de 1525, Müntzer acabou preso e, sob tortura, foi obrigado a negar seus Doze Artigos. Mesmo assim, o decapitaram e sua cabeça foi pendurada como troféu nos portões de entrada daquela cidade. Era um recado para que uma revolta daquela nunca mais acontecesse.

Lições de 1525

Como dito anteriormente, Engels foi revolucionário também para a ciência da História. Excomungado por católicos e protestantes, Müntzer foi redescoberto por Engels e, devido a ele, passou a ser compreendido como um dirigente político, não somente como um teólogo opositor de Lutero. Os contemporâneos de Engels da historiografia oficial alemã, como o mencionado Ranke, condenavam Müntzer, enquanto alçavam Lutero como o Pater Pátria do Estado alemão. O historicismo alemão foi responsável pela designação desse processo como sendo “o maior evento natural da história do Estado Alemão”, mas, na verdade, foi o contrário disto. Portanto, essa obra de Engels significou o combate à História Oficial e ao fetiche arquivístico, práticas da verdade burguesa.

Entretanto, o fundamental para Engels, ao realizar esta produção historiográfica, era traçar o paralelo entre a situação alemã de 1525 com o contexto da Revolução Alemã de 1848 a 1850. Para isso nos serve a história, ajudando no entendimento da situação contemporânea, a partir dos erros e acertos, dos balanços que podem ser feitos até mesmo de processos históricos de séculos.

A revolta dos camponeses foi, de fato, uma das maiores tentativas revolucionárias do povo alemão. Era por si só uma situação complexa que envolvia as cidades, as famílias patrícias e a oposição formada por uma ala burguesa “precursora do liberalismo de nossos dias”, como escreveu Engels. Esta se colocava contra a oposição plebeia, formada, naquele tempo, por frações da burguesia e os demais limitados em direitos, como os oficiais, os jornaleiros e os elementos de um semi-proletariado, além de toda a população pobre. Mas, essencialmente, eram os camponeses pobres a grande massa da nação que suportavam todo o peso do edifício social. Eram explorados por príncipes, funcionários, nobres, frades, patrícios e burgueses.

Porém, Engels evidenciou que estes formavam uma massa confusa e com interesses contraditórios. Assim, nenhuma classe tinha condição de apresentar-se como vanguarda na luta contra um opressor comum. Pelo contrário, segundo Engels, “cada classe era um estorvo para as outras e encontrava-se em luta com todas elas”. Para chegar neste ponto, Engels realizou um retrospecto dos movimentos precursores, desde 1476 a 1517, onde, nesse contexto, emergiram os grandes grupos da oposição, liderados por Lutero e Müntzer. Assim, a guerra camponesa significou a culminância dos movimentos de protesto dos séculos finais da Idade Média, protestos heréticos que foram outras tantas manifestações de luta de classes. “Eram um símbolo vivo da dissolução da sociedade feudal e corporativa, e simultaneamente os primeiros precursores da moderna sociedade burguesa”, diz Engels, observando que o processo de radicalização plebeia, desde 1476, mas especialmente em 1524, se transformaria, séculos depois, no programa proletário moderno e sua reivindicação da abolição da propriedade privada.

No crucial paralelo, Engels comparou a posição de Lutero com a dos liberais burgueses de 1848, que se apresentaram inicialmente como revolucionários, mas que, com o aprofundamento da luta e sua radicalização, se transformaram em verdadeiros reacionários, servindo, agora, como Termidor da revolução. Assim, a importância de estudarmos as guerras camponesas de 1524-25 e a obra de Engels reside na demonstração que os conflitos da era das Reformas Protestantes não foram meramente processos religiosos, mas mudanças na história motivadas igualmente pelos interesses econômicos e políticos das classes. Eles nos ensinam que, em toda a história, os interesses da classe trabalhadora são opostos aos interesses das classes dominantes.

Por fim, a obra de Friedrich Engels, acima de tudo, serve de fonte de inspiração para os historiadores e todos os militantes comprometidos com a luta dos explorados e oprimidos, que não temem enfrentar a oficialidade dos Estados burgueses. Cada acontecimento histórico faz parte de uma totalidade histórica e nossa tarefa é aprender com eles para minimizar os erros no presente e construir um partido operário, uma direção consciente, para dar fim ao regime de exploração e conquistar um mundo onde Omnia sunt communia, o comunismo internacional.

Referências:

ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977. 141 p.

SANTOS, João Henrique dos. Uma reflexão sobre o papel de Thomas Müntzer no pensamento marxista. Sacrilegens, Juiz de Fora, v.6, n.1,p.75-84, 2009.

WOODS, Alan. Uma introdução ao materialismo histórico, parte 4. Esquerda Marxista, 2016. Disponível em: <https://www.marxismo.org.br/uma-introducao-ao-materialismo-historico-parte-4/>. Acesso em: 16 de abril 2021.

1 ENGELS, Friedrich. Prefácio à segunda edição (1870). Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1850/peasant-war-germany/ch0a.htm>. Acesso em: 16 de abril de 2021.

2 Os anabatistas são reconhecidos com a ala mais radical da reforma protestante, ligados aos pobres do período. Defendiam o batismo ao cristianismo apenas na fase adulta. Por inúmeros motivos religiosos, divergiam tanto dos católicos, quanto dos demais protestantes, sendo perseguidos por estes grupos.

3 Nobres e grandes latifundiários.

4 LUTERO, Martinho. Against the Murderous, Thieving Hordes of Peasants. Disponível em: <http://www.godrules.net/library/luther/NEW1luther_d18.htm>. Acesso em: 21 de abril de 2021.

5 Título de nobreza de Condes do Sacro Império Romano-Germânico, estes exerciam a justiça em nome do Imperador.