Motivo de polêmica e de boicote por parte do governo Temer, o filme Aquarius aparece em sua dimensão social nesta crítica de cinema.
Dirigido pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho e estrelado por Sônia Braga, o filme Aquarius talvez seja o maior sucesso do cinema nacional dos últimos tempos. Desde Cidade de Deus (2004), dirigido por Fernando Meirelles, nenhuma obra brasileira adquiriu tanta repercussão internacional. Elogiado pela crítica, escolhido pela revista francesa Cahiers du Cinema como um dos 10 filmes mais esperado do ano e premiado em diversos festivais, Aquarius coloca o cinema nacional em grande evidência.
Apesar do sucesso alcançado pelo longa-metragem, o momento não é de comemoração, mas de resistência. O filme pernambucano talvez seja representante de um novo ciclo no cinema de nosso país, um período mais difícil para a produção, no qual será preciso lutar dentro e fora da tela para continuar existindo. As políticas realizadas pelos governos, até o presente momento, garantiram certa “estabilidade” ao mercado do audiovisual. Bem ou mal, ainda temos filmes sendo produzidos.
O futuro do cinema nacional não é muito otimista. O atual “governo” já demonstrou não ter interesse nenhum no desenvolvimento da cultura quando tentou extinguir O Minc e demitir funcionários da Cinemateca. A política realizada até agora não é a melhor, afinal os investimentos em cultura não chegam a 1% do orçamento da União. Mesmo assim, a situação ruim pode piorar com Temer. Podemos regredir à situação semelhante àquela da época do governo Collor, na qual os filmes nacionais quase desapareceram.
Nesse sentido, a repercussão alcançada por Aquarius, em um momento ímpar de nosso cenário político, pode e deve ser explicada, não apenas pelo conteúdo da obra, mas pelos rumos tomados pelo nosso país. Muitas críticas retrataram o filme como uma atual síntese do Brasil, mas qual seria essa síntese e no que especificamente nosso país pode ser retratado no longa-metragem? Esse é um dos pontos no qual nós vamos explicar em nossa crítica.
O filme
Clara é uma jornalista, escritora e crítica musical aposentada, também viúva e mãe de três filhos adultos. Ela é única moradora do prédio chamado Aquarius, no bairro de Boa Vagem, em Recife. O apartamento onde vive está repleto de livros e discos, um lugar aconchegante qual guarda momentos preciosos de sua vida. Isso a impede de vendê-lo, afinal, não podemos nos desfazer de nossas lembranças e memórias, não é? Mesmo com as grandes ofertas da construtora e o abandono do lugar pelos outros moradores, Clara resiste.
Essa resistência parece um tanto absurda para seus filhos, irmão, amigos e, principalmente, para o engenheiro Diego, membro da construtora Bonfim. O jovem recém-chegado dos Estados Unidos deseja provar seu valor profissional e para isso precisa convencer Clara a vender o apartamento. O garoto não se importa com o significado da construção e, como um “homem de negócios” não enxerga as memórias e lembranças de Clara em Aquarius, tudo que ele vê é um prédio velho, que precisa ser demolido para dar lugar a uma “nova” construção.
A escolha da classe social, sexo e personalidade dos personagens é sempre uma decisão política. Clara faz parte da elite, mas não é quem dá as cartas ao jogo. A fama adquirida como jornalista e crítica de música a permite ter acesso aos espaços mais restritos do poder econômico, mesmo assim, ela não tem força para fazer frente à especulação imobiliária. Ela é um corpo estranho, em um organismo que tenta expulsá-la a todo o momento.
De outro lado temos Diego, um jovem engenheiro formado nos Estados Unidos, cheio de arrogância. O personagem encarna todos os preconceitos e defeitos de nossa elite semicolonial. Apesar da educação superior, não possui nenhum respeito pela dona do apartamento, que poderia ser sua mãe. A atitude e o comportamento do jovem mostram como as coisas funcionam em nosso país. Não importa o quanto Clara esteja certa, o poder econômico é quem decide.
A partir do conflito entre esses personagens, o cineasta desenvolve um ambiente de tensão, no qual uma simples manobra de carro parece preceder um choque. Ficamos durante todas as cenas com a sensação de que a qualquer momento veremos uma batida, uma briga ou algo inesperado ocorrer. A forma como o longa-metragem é montado contribui para tensão. Nenhuma ponta parece estar fechada, algo sempre fica suspenso.
Essa forma de construir as cenas lembra muito a forma como recordamos os acontecimentos em nossas vidas. Não conseguimos remontar tudo de maneira sequencial em nossa memória. Podemos reter muitas informações, mas nunca conseguiremos contar as lembranças da maneira como ocorreram. Nesse sentido, a narrativa é uma sequência linear, com saltos, idas e vindas, no qual um assunto acaba fisgando outro.
A montagem sempre nos instiga a imaginar para além do mostrado, tentar costurar os significados e entender as referências. Kleber se utiliza de elipses durante todo o filme para montar as cenas. — Um exemplo desse recurso é quando Clara sai com um homem, eles discutem, mas não vemos a discussão, apenas o resultado —. O cineasta parece estar interessando em nos fazer refletir sobre os acontecimentos, em nos tirar da passividade de receber todas as respostas, nos colocamos em movimento.
Essa forma aberta de narrativa permite ao cineasta conectar o filme a pequenas narrativas e indiretas sobre os mais diversos assuntos. A entrevista na qual a jornalista tenta a todo o momento arrancar de Clara uma frase de efeito e não entender o que ela diz é um exemplo. Há também indiretas sobre a imprensa, a elite e até a religião.
A música também exerce um ponto determinante na montagem e no filme, não deixando o fato de Clara ser uma crítica musical passar despercebido. A trilha ajuda na ambientação, mas também participa das cenas — Clara canta em resposta à petulância da filha, dança sozinha para se libertar do stress ou escuta uma música para abafar o som de uma festa.
A trilha faz parte da ambientação da tensão e nos momentos de leveza do filme, momentos importantes durante o longa-metragem, como quando a jornalista encontra as amigas para dançar, sai com o sobrinho e a namorada ou cuida do neto. Nesses momentos de leveza e nos diálogos podemos perceber como o espaço é importante no filme. O apartamento de Clara parece outro mundo no prédio abandonado e sem vida. O lugar não é apenas habitação, mas um personagem importante para a trama.
Nenhum dos méritos citados acima estaria completo caso não destacássemos o papel do elenco. Quando o cineasta anunciou Sônia Braga para o papel principal, a expectativa para o filme aumentou ainda mais. Sônia é, talvez, nossa maior estrela internacional. Ao interpretar Clara, a atriz traz todas as referências passadas, toda a história do cinema nacional. Ela lidera todo o excelente elenco. Humberto Carrão consegue nos convencer do quão desprezível é nossa elite no papel de Diego. Chegamos a esquecer do ator encarnando o personagem.
Maeve Jinkings, no papel de filha de Clara, trava um excelente diálogo com Sônia Braga, mostrando a rivalidade existente entre as duas pela herança do pai, não só econômica, mas de afeto. Os diálogos são muito bons e neles conseguimos perceber a habilidade de Kleber como roteirista, além de diretor. Assim o flerte entre o Bombeiro, interpretado por Irandhir Santos, e Sônia soa tão verdadeiro ao provocar sentimentos de constrangimento e empatia.
Kleber consegue realizar uma obra pernambucana e brasileira, onde as imagens de nosso país fogem do olhar estereotipado da violência ou do exotismo. A alegria, medo e violência são mostrados de uma maneira mais próxima da realidade. Somos um povo feliz, simpático, mas não somos apenas isso, nem todos são assim. O Brasileiro não é um povo pacifico. A luta de classes entre opressores e oprimidos é sempre violenta. Os primeiros a utilizam a violência para manter a dominação, enquanto os segundo, para resistir.
A repercussão e o Oscar
O longa-metragem teve a estreia mundial em Cannes e provocou um grande alvoroço no Brasil, devido ao protesto realizado pela equipe contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff durante o tapete vermelho da premiação. A partir desse momento, nossa imprensa, “governo” e a elite passaram a olhar a obra como uma peça publicitária de “apoio” à petista. Apesar dos elogios na crítica cinematográfica nacional, o Ministério da Cultura realizou um boicote.
Primeiro colocou a censura para 18 anos. Após protestos baixaram para 16, enquanto que na França é livre. Depois, indicaram uma comissão para escolha do filme para a vaga no Oscar, com um membro avesso publicamente à obra pernambucana. Não posso falar sobre o filme escolhido, pois ainda não vi, mas acho interessante comentar a declaração do diretor David Schürmann. Segundo ele, Pequeno Segredo, filme que representará o país na premiação, não é uma obra política.
Assim como a discussão de forma e conteúdo acaba se tornando inócua, quando as separamos, discutir o quanto um filme é ou não político é perda de tempo. A crítica precisa explicar a obra em suas relações com as classes sociais, com a conjuntura a qual ela foi produzida e as influências recebidas.
Logo, precisamos entender toda obra como política. A aparente aversão de Schürmann a uma arte mais “engajada” é uma posição política. A verdadeira arte, como diria o cineasta russo Serguei Eisenstein é a que revela as contradições do ser. Tanto Ao Som do Redor, como Aquarius são obras de protesto. Kleber Mendonça Filho está se firmando como um cineasta interessado em discutir a situação do nosso país, um cinema social, como Ken Loach e o neorrealismo italiano. Apesar de politicamente o diretor pernambucano ser reformista — o apoio a Dilma é um dos indícios disto— esteticamente a arte de Kleber é radical seja como crítico ou cineasta.
Algumas pessoas acabam criticando a esquerda devido à defesa pela indicação de Aquarius ao Oscar, afinal essa festa não é um evento do capitalismo? Sim, mas não é estranho como até no palco deles, em um lugar onde a democracia aparentemente deveria vigorar, nossa elite tem medo de ser questionada? O filme acabou se tornando um dos símbolos da resistência aos ataques do governo Temer, por sua trama esbofetear a hipocrisia da nossa elite, por traduzir a situação surreal vivida por nosso país. Kleber e Sônia nos brindaram não apenas com um retrato de nosso país, mas com um discurso de resistência.
João Diego é formado em Jornalismo e pós-graduando em cinema pela Universidade Tuiuti do Paraná.