Foto: Guilherme Gonçalves, Fotos Públicas

Vidas negras não importam para a burguesia: o antirracismo deve combater o capitalismo

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 20, de 26 de novembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

A crise econômica e sanitária que há meses afeta o mundo vem exacerbando as contradições do capitalismo. Com isso, o racismo, expressão desse sistema de exploração dos trabalhadores, se manifesta em toda a sua brutalidade, tanto por meio da violência do aparato de repressão como pela ação de outros órgãos do Estado. O caso da juíza racista de Curitiba, que condenou Natan Vieira da Paz por ser negro, é apenas um dos exemplos da brutalidade capitalista, assim como os casos de perseguição e assassinato que têm tomado os noticiários nos últimos meses. A necessidade de lutar contra isso é uma das razões pelas quais a Esquerda Marxista e o Movimento Negro Socialista (MNS) lançaram a campanha “Ser negro não é crime”.

No Dia da Consciência Negra deste ano, todo o país despertou com a notícia do brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, em uma loja da rede Carrefour de supermercados, em Porto Alegre. Imagens gravadas no local mostram os seguranças da loja espancando violentamente a vítima que, assim como ocorreu com George Floyd (assassinado pela polícia em maio deste ano, em Minneapolis), faleceu gritando desesperadamente que não conseguia respirar. Em ambos os casos, os apelos caíram em ouvidos surdos. Nos Estados Unidos e no Brasil, vidas negras não despertam a menor empatia nos carrascos.

A reação popular à morte de João Alberto foi imediata e nacional. Milhares de manifestantes saíram às ruas para protestar contra mais um assassinato de cunho racista. Tomados pela revolta, jovens por todo o país decidiram realizar ações diretas contra lojas do Carrefour em diversas cidades. Nas redes sociais, milhões se manifestaram de forma solidária aos protestos e às ações promovidas nas lojas da rede francesa. Campanhas de boicote foram lançadas na internet e em pouco tempo ganharam a adesão de muitas pessoas.

A enérgica resposta de diferentes setores da sociedade, em particular da juventude, surpreendeu a muitos. Afinal, violência racista contra pessoas negras tem sido parte integrante da sociedade brasileira desde a primeira metade do século 16, quando o primeiro grupo de pessoas escravizadas trazidas da África desembarcou em Pernambuco para trabalhar nos engenhos de açúcar. O número de homens e mulheres negros assassinados no Brasil por ano é bastante superior ao dos Estados Unidos. Por isso, a dimensão dos protestos fundamentados pela morte de João Alberto chegou a ser encarada com espanto.

Para compreender a repercussão do crime racista ocorrido no Carrefour, é preciso recordar o gigantesco impacto que as manifestações ocorridas nos Estados Unidos após a morte de George Floyd tiveram no mundo inteiro. Não apenas ocorreram enormes atos de apoio por toda a parte, sobretudo na Europa, como a discussão a respeito do racismo estrutural que existe na sociedade moderna tornou-se parte do cotidiano de todos. O que era banalizado e dificilmente causava reações significativas, como o assassinato de um homem negro por um segurança, passou a despertar indignação e levar milhões de jovens às ruas.

Foto: Samuel Corum

Nos Estados Unidos, as massas que tomaram as ruas, e inspiraram grande parte do resto do mundo a fazer o mesmo, iniciaram um movimento que tinha também outras pautas. Além da luta contra o racismo, manifestantes saíram de suas casas para protestar contra o desemprego em massa, os centenas de milhares de americanos mortos pela pandemia do novo coronavírus, a presença de Donald Trump na Casa Branca. Em suma, a morte de George Floyd foi a gota d’água que fez as insatisfações acumuladas na sociedade americana transbordarem no maior movimento de protestos da história dos Estados Unidos.

A influência determinante que as mobilizações nos Estados Unidos tiveram nas manifestações que vemos hoje no Brasil torna necessária uma análise cuidadosa do desfecho que os protestos nas cidades americanas tiveram. É preciso compreender por que um movimento tão poderoso, capaz de influenciar a situação política em tantos outros países, terminou sem obter qualquer avanço significativo.

Em primeiro lugar, é importante relembrarmos que a classe trabalhadora americana, ao contrário de quase todas as outras no Ocidente, jamais passou pela experiência de organizar-se em um partido independente e oriundo das lutas operárias. Isso a coloca em uma posição de extrema desvantagem na luta contra a classe dominante de seu país, a burguesia mais poderosa de todo o mundo. O alinhamento das direções sindicais e lideranças de diferentes movimentos — incluindo os movimentos negros — com o principal partido burguês norte-americano (o Partido Democrata), é a principal causa da ausência de perspectivas que se viu nas manifestações nos Estados Unidos.

Devemos somar a isso o papel pernicioso cumprido por ideias de origem pequeno-burguesas, como o identitarismo, no agravamento da desorientação generalizada que se viu nas manifestações. A dificuldade em relacionar o problema do racismo com a estrutura socioeconômica existente nos Estados Unidos tornou-se ainda mais acentuada pela abordagem racialista e sectária de muitas lideranças. O resultado foi que muitos desses líderes, mesmo quando agiam com sinceridade, terminaram por conduzir um poderoso movimento de massas em direção a um pântano de confusão e pessimismo.

Essas são as duas conclusões que devem basear a análise de quem tenta vislumbrar qual é o caminho correto para a luta antirracista no Brasil. Naturalmente, a situação brasileira é muito diferente daquela que se vê nos Estados Unidos. Por aqui, a classe trabalhadora já formou um partido próprio e em larga medida já o abandonou. A traição dos líderes do PT condenou grande parte da esquerda, incluindo movimentos negros do Brasil, a uma grave despolitização que se assemelha ao que vimos nos protestos nas grandes cidades americanas.

Se vamos nos organizar coletivamente para fazer frente a um problema grave como o racismo, primeiro precisamos entender a origem dele. Como se sabe, a ideia de raças humanas é uma invenção burguesa sem qualquer base científica. Essa farsa foi criada para justificar o extermínio dos povos originários da América, a escravidão de pessoas africanas e, mais tarde, o imperialismo.

Dada a sua origem, a noção de raça jamais poderá servir como instrumento de luta dos oprimidos. O que ocorreu recentemente nos Estados Unidos serve bem para ilustrar esse ponto. Tendo o exemplo americano em mente, as lideranças do movimento negro brasileiro precisam rejeitar qualquer tentativa de divisão da luta pela cor da pele. Se esse método equivocado continuar a ser posto em prática, os jovens, imensa maioria dos manifestantes que saíram às ruas por todo o Brasil, vão se desiludir e se distanciar das lutas, o que pode ter consequências políticas graves.

O abandono das ideias criadas pela classe inimiga deve vir acompanhado de um alinhamento completo da causa antirracista com a luta pela derrubada do sistema capitalista. Um movimento que se proponha a impedir que mais pessoas negras sejam vítimas de crimes de ódio precisa que a luta pela transformação revolucionária da sociedade esteja na ordem do dia.