“O grande homem é grande não porque suas particularidades individuais imprimiam uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, mas porque é dotado de particularidades que o tornam o indivíduo mais capaz de servir às grandes necessidades sociais de sua época, surgidas sob a influência de causas gerais e particulares” – G. V. Plekhanov.
Em 20 de novembro, relembramos o assassinato de Zumbi dos Palmares, dirigente do maior quilombo de seu tempo, executado em 1695. Tomar a história de Zumbi em nossas mãos e mentes significa auxiliar no salto de consciência na luta de classes, compreendendo não o culto ou o mito, mas o papel do indivíduo a partir da concepção materialista da história.
O Brasil recebeu cerca de 40% do total de 10 a 15 milhões de negros trazidos à América (GOMES, 2005, p. 9), transformando-se no país que possuiu o maior fluxo de escravizados na história da humanidade. Em quantidade semelhante deu-se a destruição e apagamento documental sobre a luta dos negros, indígenas e brancos explorados na Colônia, impondo, por um lado, o desconhecimento e, por outro, a romantização dos acontecimentos históricos.
Neste contexto, Zumbi foi último a dirigir o poderoso esconderijo na mata, conhecido como o Quilombo dos Palmares. Localizado na Serra da Barriga, próximo a atual Maceió, era praticamente uma República composta por 12 quilombos, com uma área de 200km², interligados por trilhas na mata. O mais significativo quilombo foi o Quilombo do Macaco, criado por volta de 1600 com até 20 mil habitantes. Formado tanto por negros e indígenas, quanto por brancos, passou por enorme repressão e tentativas de invasões portuguesas e holandesas, mas sempre saiu vitorioso.
Esta sintética apresentação é necessária para que se entenda a aparição de Zumbi na história brasileira, pois ela decorre de uma traição de direção. Entre 1645 a 1678, o líder do Quilombo dos Palmares foi Ganga Zumba, oriundo de uma linhagem real africana. Seu governo acabou em 1678 após Ganga aceitar um acordo com o governador de Pernambuco, onde firmaram que os nascidos no quilombo poderiam permanecer livres, mas que os fugidos deveriam retornar à escravidão. Os demais acordos foram: Ganga passar a ser um oficial do exército português; os palmaristas poderem continuar as trocas mercantis com os comerciantes da região; as terras de Palmares sendo demarcadas pela Coroa e os palmaristas deixando a condição de independentes à vassalos do rei. Diante disso, em seu retorno ao quilombo, Zumba fora envenenado por uma cisão na direção da República, que se colocou contra o pacto com o governador escravagista. Tal grupo possuía um dirigente e este era Zumbi.
Vale ressaltar que o desacordo com o pacto entre Ganga e o governo não foi apenas da fração liderada por Zumbi. Outras questões econômicas e geopolíticas obtiveram influência, inclusive do lado explorador. Fazendeiros, comerciantes, donos de engenho e a Igreja também foram contra, como o padre Antônio Vieira, que tinha como interesse enviar jesuítas para Palmares. Portanto, mesmo com as autoridades coloniais querendo um tratado de paz, isso significaria “colocar em risco o projeto escravista cristão do Império português” (GOMES, 2005, p. 134).
Desta forma, a partir de 1678, Zumbi – sobrinho de Ganga Zumba – tornou-se o líder militar e comandante geral de Palmares, passando para a história da luta de classes como o grande líder desta epopeica resistência no Brasil colonial.
Segundo Décio Freitas, Zumbi havia nascido em Palmares em 1655. Em um dos ataques coloniais ao quilombo, foi capturado ainda recém-nascido e levado para a Vila de Porto Calvo, em Alagoas, sendo batizado como Francisco. Formou-se com o padre Antônio de Mello, aprendeu latim e português, mas aos 15 anos fugiu da colônia para retornar à Palmares. Vemos, portanto, como as condições de desenvolvimento humano e a formação intelectual possibilitaram que Zumbi se transformasse em um dirigente que “é precisamente, um iniciador, porque vê mais longe que os outros”, como explica Plekhanov. Em poucos anos, na volta ao quilombo, tornou-se o dirigente capaz de superar o conciliador Ganga Zumba.
Após o envenenamento de Ganga e o assassinato de seus seguidores, os pactos foram rompidos e as expedições punitivas da Coroa à Palmares intensificaram com Zumbi na direção da resistência. Os mocambos de Palmares – acampamentos militares e moradias para os falantes das línguas bantu da África Central e Centro-ocidental – passaram a sofrer ataques ainda mais fortes. Como resposta, Zumbi reorganizou militarmente os palmaristas que estavam relativamente dispersos. Ordenou a criação de novos mocambos, como o de Una, Engana-Colomim, Pedro Capacaça e Gongoro, enquanto os antigos e famosos mocambos de Macaco, Osenga, Dambraganga e o próprio de Zumbi, continuaram de pé. Esse movimento de Palmares obrigou o recuo das tropas coloniais, que buscaram firmar novo acordo. Contudo, assim como Jorge Ben anuncia em sua canção na Tábua de Esmeralda (1974), Zumbi havia chegado e os ex-escravizados não possuíam mais um dirigente conciliador. Os português receberam apenas a recusa e o combate completo do “senhor das guerras”.
Em 1679, as tropas comandadas por João Freitas da Cunha, que cooptava indígenas da Vila de Alagoas, foram derrotadas pelos guerreiros de Palmares. No ano seguinte, foi a vez da expedição de Gonçalo Moreira ser esmagada pelos negros. Seguidamente, os mandados coloniais foram tentando reescravizar os palmaristas, cada vez com mais homens e mais armamentos. Embora sempre derrotados, as inúmeras guerras foram minando as forças de Zumbi e seu povo.
Foram as tropas de João Martins e Alexandre Cardoso das mais vitoriosas até a queda definitiva de Zumbi, pois conseguiram destruir mocambos na serra da Barriga e capturar alguns palmaristas, inclusive dirigentes como Maioio do rio Mandaú. Todos eram enviados a Recife para a tortura e morte. Mas Zumbi não se entregava e continuava a resistência, principalmente, atacando vilas e povoados portugueses, libertando assenzalados e sequestrando alguns brancos. Esta guerra era amplamente divulgada nas senzalas e os escravizados ficavam apreensivos, com receio que seu sonho de fuga para a República livre de Palmares fosse ceifado.
Derrota após derrota, apesar do deterioramento das forças quilombolas, uma ideia ressurge para os colonizadores: convocar os mercenários paulistas para aniquilar Palmares. Contudo, os paulistas exigiam o fornecimento de pólvora, chumbo e mantimentos da capitania de Pernambuco; a propriedade sobre os corpos das crianças capturadas nos mocambos; 8 mil réis por cada negro que se apresentasse por conta própria ao senhor de engenho; a posse e usufruto das terras dos mocambos; entre outros desejos. Porém, com tamanhas exigências, os senhores de engenho de Pernambuco não aceitaram facilmente, pois possuíam interesse às valiosas terras de Palmares.
Mesmo assim, prevaleceram os quereres dos paulistas, únicos capazes de derrotar Zumbi. A ofensiva atrasou devido uma sublevação indígena no Rio Grande do Norte, em 1688. Após essa repressão e assassinato em massa pelas tropas lideradas por Domingos Jorge Velho, os paulistas rumaram à Palmares, em 1691. Neste meio tempo, Zumbi e seu povo continuavam movimentando-se nas serras, atacando as autoridades coloniais.
Com milhares de soldados, Jorge Velho iniciou a marcha de invasão aos esconderijos de Palmares em agosto de 1692. Mas mesmo sem atingir os principais mocambos, os paulistas foram atacados pelos palmaristas. Zumbi mudou de tática, evacuando a população civil, especialmente idosos e crianças, e ordenou o confronto para impedir a aproximação dos repressores. Os ataques fulminantes das forças de Zumbi fizeram muitos paulistas desertarem ao comando de Jorge Velho, pois tinham suas noites transformadas em um verdadeiro terror com os iminentes ataques palmaristas.
Em um período de quase 2 anos, Palmares resistiu à Jorge Velho, porém, em 6 de fevereiro de 1694, com canhões, milhares de homens e todo o aparato necessário, tornou-se impossível a vitória negra contra o explorador paulista. Mesmo com conquista, os bandeirantes precisavam capturar Zumbi, que havia escapado. Em nada valeria a vitória sem a comprovação da morte do dirigente revolucionário perante ao governo colonial. A caça durou cerca de um ano, quando André Furtado de Mendonça, um sertanista português, conseguiu descobrir o paradeiro de Zumbi: um mocambo na serra Dois Irmãos. Para esta localidade rumaram as ações repressivas, que, apesar da proteção à Zumbi, conseguiram capturá-lo.
Em 20 de novembro de 1695, Zumbi foi executado e decaptado para que sua cabeça fosse exposta no centro de Recife com o intuito de “atemorizar os negros que superstiosamente julgavam este imortal”, como diz uma carta datada de 14 de março de 1696, escrita pelo governador de Pernambuco Caetano de Melo e Castro endereçada ao Rei Pedro II de Portugal (GOMES, 2005, p. 152).
Com a morte de Zumbi, Palmares sem a mesma potência e tamanho, passou a ser comandada por Camoanga até 1703 e depois, por Mouza até 1711. Entre 1723 e 1757, as guarnições militares e aldeamentos indígenas foram estabelecidos na região de Palmares para controlar os resistentes. Segundo as fontes, grupos de palmaristas dispersos ainda realizavam a tática guerrilheira de razias e permaneceram em constante migração em busca da sobrevivência.
Nossa história, especialmente de dirigentes dos explorados e oprimidos, é constantemente apagada, negada e falsificada pelo Estado e os historiadores da ordem. Cabe aos marxistas estudá-la, escrevê-la e utilizá-la para a educação dos trabalhadores e jovens. Dessa forma, a concepção materialista da história consiste na compreensão da história da luta de classes para atuar e transformar o presente, não para o culto ao passado e aos mártires.
Esse artigo buscou coletar as fontes sobre o tema. Mas, vale destacar que esse é um tema muito polêmico, porque há uma grande escassez de fontes confiáveis, o que acarreta em versões conflitantes do mesmo fato. O Quilombo de Palmares e suas lideranças expressavam um ponto de luta contra o processo escravocrata racista, portanto, um importante ponto de resistência contra a elite da época. Contudo, vale destacar que obviamente havia contradições em seu interior, frutos do próprio momento histórico e da organização que os aquilombados dispunham na época, uma vez que não disponham das ferramentas do materialismo dialético e muito menos de um partido político da classe trabalhadora que elevasse a sua a resistência a um patamar de uma luta pelo fim da sociedade de classe, pelo fim do capitalismo.
Nota: Artigo publicado originalmente no jornal Foice&Martelo Especial nº 19, de 12 de novembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.
Referências:
GOMES, Flávio. Palmares: Escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.
PLEKHANOV, George. O papel do indivíduo na história. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.