Em 1871, na França, pela primeira vez na História, o proletariado construiu seu próprio governo. Essa experiência, conhecida como Comuna de Paris, que durou alguns poucos meses, entre março e maio, mostrou para os trabalhadores que era possível construir um novo mundo a partir de suas organizações. Contudo, para tanto, precisaria derrubar o capitalismo e destruir seu Estado. Essa experiência de poder dos trabalhadores mostrou concretamente para a burguesia que a estabilidade do sistema tinha uma ameaça real, a qual deveria ser combatida a qualquer custo, mesmo que tivesse de derramar o sangue do seu inimigo de classe. Passados 150 anos, quando se analisa a experiência da Comuna de Paris, é possível apontar as mais variadas lições. Em 1921, comentava Trotsky:
A cada vez que estudamos a história da Comuna descobrimos um novo matiz graças à experiência que nos foi proporcionada pelas lutas revolucionárias posteriores, não apenas a Revolução Russa, mas também a alemã e a húngara. A guerra franco-prussiana foi uma explosão sangrenta, prenúncio de uma imensa carnificina mundial; a Comuna de Paris foi como um relâmpago, anunciando uma revolução proletária mundial.1
Uma das lições passa pelo debate sobre a experiência do duplo poder. Em diversos momentos ao longo dos últimos séculos os organismos de poder do proletariado se levantaram contra a ordem burguesa, conquistando vitórias, como na Rússia, em 1917, mas também sendo derrotados, como na Alemanha e na Hungria, em 1919. Os anos seguintes viram experiências parecidas, como na Bolívia, na década de 1950, por meio da COB, ou em Oaxaca, no México, em 2006. A vitória ou derrota desses processos está ligada a diversos fatores, como as perspectivas táticas e estratégicas em relação ao Estado e à necessidade de construção de uma direção revolucionária.
No que se refere ao debate sobre o Estado, cerca de 20 anos depois da Comuna de Paris, fazendo um balanço sobre aquela experiência, Engels afirmava, na introdução ao livro Guerra Civil na França, de Karl Marx:
A Comuna teve mesmo de reconhecer, desde logo, que a classe operária, quando assume o poder, não pode continuar a administrar a velha máquina de Estado; que esta classe operária, para não perder de novo a sua própria dominação recém conquistada, tinha, por um lado, que eliminar a velha maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer excepção, revogáveis a qualquer o momento.2
Portanto, para Engels, seria preciso superar o velho Estado, que havia sido construído para sustentar o poder da burguesia. Sua forma de organização e as instituições que dele faziam parte estavam voltadas aos interesses da exploração capitalista e da manutenção da ordem burguesa, e não dos interesses dos trabalhadores. Engels completava:
A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham se transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. 3
O debate sobre a questão do Estado na experiência da Comuna de Paris também foi feito por Trotsky, em polêmica com Kautsky, depois da Revolução Russa. Trotsky apontava:
A Comuna foi a negação viva da democracia formal, pois marcou no seu desenvolvimento a ditadura da Paris operária sobre a nação camponesa. Este fato prima sobre todos os demais. Quaisquer que fossem os esforços dos políticos rotineiros no próprio seio da Comuna para se aterem a uma aparência de legalidade democrática, cada ação da Comuna, insuficiente para a vitória, era bastante para convencê-los da ilegalidade da sua natureza.4
Para Trotsky, a legalidade burguesa não interessava ao proletariado no poder, ou seja, para garantir efetivamente seu poder, os trabalhadores deveriam superar definitivamente qualquer resquício da democracia burguesa e, a partir de sua plena auto-organização, construir um novo poder. Nesse sentido, seria preciso superar quaisquer ilusões no formalismo das instituições existentes. Contudo, para tanto, seria imprescindível a construção de uma direção política que auxiliasse os trabalhadores nesse processo. Esse debate foi trazido principalmente por Lênin, também no contexto da polêmica com Kaustky, apontando os limites desse aspecto na Comuna de Paris. Lênin destacava, para tanto, a questão das relações das classes sociais:
A princípio, tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso. A ele somaram-se também os patriotas, na esperança de que a Comuna reiniciaria a guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento das dívidas vencidas e dos aluguéis – adiamento este que lhes era negado pelo governo, mas que a Comuna lhes concedeu. Por último, no começo também simpatizaram em certo grau com o movimento os republicanos burgueses, temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (os ruralistas, os violentos latifundiários) restabelecesse a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista – muitos deles, inclusive, eram filiados à Internacional.5
Portanto, conforme destaca Lênin, apesar da liderança proletária no processo, havia um conjunto de classes sociais que, no começo, convergiam em apoio à Comuna, devido a interesses diversos, criando uma base social heterogênea. Com isso, ao longo do processo, as diversas classes assumiram posições diversas. Lênin aponta:
Somente os operários revelaram-se fiéis à Comuna até o fim. Os republicanos burgueses e a pequeno-burguesia não tardaram em apartar-se dela: uns assustaram-se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu caráter proletário; outros se afastaram quando viram que a Comuna estava inevitavelmente condenada à derrota. Apenas os proletários franceses apoiaram seu governo sem temor nem vacilo; só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela emancipação da classe operária, por um futuro melhor para os trabalhadores.6
Está aqui uma lição fundamental, aprendida pelos trabalhadores ao longo dos séculos de experiência de luta, de que somente conseguirão sua emancipação enquanto classe por meio de suas próprias organizações e de sua luta independente. Em conjunturas eventuais e episódicas, podem até conquistar o apoio tático de outras classes, principalmente da pequeno-burguesia, mas somente o proletariado, que não possui propriedade nem a dependência do Estado, pode levar até o fim a luta por uma nova sociedade.
Os setores mais conscientes da classe, dotados de uma compreensão materialista e dialética da realidade, são os únicos capazes de dirigir essa luta até o fim. Como provou a experiência da Rússia, é preciso construir uma direção política que organize a classe na luta pela revolução. Nesse sentido, sobre a Comuna de Paris, apontava Lênin:
não existia um partido operário; a classe operária não tinha preparação nem havia passado por um grande treinamento e, em sua massa, sequer tinha uma noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do proletariado nem sindicatos e cooperativas fortes.7
O partido revolucionário deveria ser a direção consciente do processo, guiando os trabalhadores na compreensão não apenas do processo de exploração a que estavam submetidos, mas também demonstrando a necessidade histórica de superação da sociedade capitalista. Essa questão foi esclarecida por Trotsky:
O partido operário – o verdadeiro – não é instrumento de manobras parlamentares, é a experiência acumulada e organizada do proletariado. Somente com a ajuda do partido, que se apoia em toda sua história passada, que prevê teoricamente a direção que os acontecimentos seguirão; que prevê suas etapas e define as linhas de ação precisas, pode o proletariado se libertar da necessidade de recomeçar constantemente sua história: suas dúvidas, sua indecisão, seus erros.8
Não havia esse tipo de direção na Comuna de Paris, se restringindo, no máximo, a alguns militantes ligados à AIT. Por isso, as ações da Comuna de Paris, apesar de sua profundidade e radicalidade, estavam fadadas a se perderem nas contradições objetivas e subjetivas a que estava submetido o proletariado. Em 1921, Trotsky apontava:
A Comuna nos mostrou o heroísmo das massas operárias, sua capacidade para unir-se em bloco, sua generosidade de se sacrificar pelo futuro. Mas, ao mesmo tempo, evidenciou a incapacidade das massas de encontrar seu caminho, sua indecisão na direção do movimento, sua tendência fatal a deter-se depois dos primeiros êxitos permitindo desta forma que o inimigo se recuperasse e retomasse suas posições.9
Essa não é a razão da derrota da Comuna de Paris, mas sua principal fragilidade. O sangue do proletariado francês está nas mãos da burguesia, que não podia tolerar uma experiência como aquela. Os trabalhadores franceses, se tivessem a possibilidade de seguir o processo revolucionário, certamente teriam forjado na luta sua própria direção política e uma nova sociedade. Lênin apontava isso, em 1911:
o que faltou à Comuna foi, principalmente, tempo, isto é, possibilidade para perceber a situação das coisas e empreender a realização de seu programa. Não teve tempo para iniciar essa tarefa quando o governo, entrincheirado em Versalhes e apoiado por toda a burguesia, iniciou as operações militares contra Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até seu fim, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar com seriedade em outra coisa. 10
Passados 150 anos, quando olhamos para a experiência da Comuna de Paris, é preciso destacar principalmente a luta dos trabalhadores que, coletivamente, colocaram em prática a necessidade de construir uma nova sociedade. Chamar a atenção para os erros cometidos e os limites de suas ações não é uma condenação de seus atos ou uma crítica fora de época, mas uma forma de perceber o que ainda hoje precisamos corrigir se quisermos derrubar o capitalismo e superar a sociedade burguesa. Os revolucionários russos estudaram a fundo a experiência da Comuna de Paris, o que contribuiu para a vitória em 1917. Essa é a razão pela qual nos próximos meses pretendemos nos debruçar sobre diversos temas relacionados à Comuna de Paris, de tal forma a pensar a luta, a organização política e a estratégia revolucionária, vislumbrando os embates que estamos travando no caminho para a construção do socialismo.
Referências:
1 Leon Trotsky, Lições da Comuna de Paris, fevereiro de 1921, https://www.marxismo.org.br/licoes-da-comuna-de-paris/
2 Friedrich Engels, Introdução à Edição de 1891 de A Guerra Civil em França, https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm
3 Friedrich Engels, Introdução à Edição de 1891 de A Guerra Civil em França, https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm
4 Leon Trotsky, A Comuna de Paris e a Rússia dos sovietes, 29 de maio de 1920, do livro Terrorismo e Comunismo: o anti-Kautsky, https://www.marxismo.org.br/a-comuna-de-paris-e-a-russia-dos-sovietes/
5 Vladimir Lênin, Em memória da Comuna, 15 de abril de 1911, https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/07/lenin-em-memoria-da-comuna/
6 Vladimir Lênin, Em memória da Comuna, 15 de abril de 1911, https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/07/lenin-em-memoria-da-comuna/
7 Vladimir Lênin, Em memória da Comuna, 15 de abril de 1911, https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/07/lenin-em-memoria-da-comuna/
8 Leon Trotsky, Lições da Comuna de Paris, fevereiro de 1921, https://www.marxismo.org.br/licoes-da-comuna-de-paris/
9 Leon Trotsky, Lições da Comuna de Paris, fevereiro de 1921, https://www.marxismo.org.br/licoes-da-comuna-de-paris/
10 Vladimir Lênin, Em memória da Comuna, 15 de abril de 1911, https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/07/lenin-em-memoria-da-comuna/