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A Lei de Segurança Nacional e a democracia burguesa no Brasil

Foi aprovado no Congresso Nacional um projeto de lei que revoga a Lei de Segurança Nacional (LSN) e transfere suas medidas repressivas para o Código Penal. Durante o governo Bolsonaro houve um aumento expressivo do uso da LSN. Foram abertos um total de 41 inquéritos policiais entre 2019 e junho de 2020 com base na LSN. Entre esses processos, estão os inquéritos contra os jornalistas Ricardo Noblat, Hélio Schwartsman e o chargista Renato Aroeira, sob a alegação de suposta violação à honra presidencial, vinculada, nos termos da LSN, à proteção da ordem política. No Ministério da Saúde houve ameaça de aplicação da LSN contra servidores que divulgassem informações do gabinete do então ministro interino, o general Eduardo Pazuello. Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), se tornou alvo de representação do ministro da Defesa, depois de criticar Pazuello, dizendo que o Exército estaria se associando a um genocídio no Ministério da Saúde.

Esses são apenas alguns exemplos dos usos recentes da LSN, que mostram as tensões e a crise institucional em que está mergulhada a democracia burguesa no Brasil. Nesse sentido, a revogação da LSN se mostra um fator positivo, mas, contraditoriamente, também expressa a manobra da burguesia para manter seus aspectos repressivos, se ocupando apenas de dar a eles uma face mais moderna. Com a revogação da LSN, elimina-se um dos entulhos que permanecem da ditadura, mas, ao mesmo tempo, mantém no ordenamento legal a criminalização de ações políticas, que podem ser usadas contra a esquerda e os movimentos sociais.

Embora a versão mais recente tenha sido aprovada em 1983, período final da ditadura iniciada com o golpe de 1964, a LSN conta com uma longa trajetória no Brasil. Em 4 de abril de 1935 foi promulgada a lei nº 38, que definia “crimes contra a ordem política e social”. Entre outras coisas, essa lei definia como crime “tentar diretamente e por fato, mudar, por meios violentos, a Constituição da República, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela estabelecida”. Essa lei também proibia “a existência de partidos, centros, agremiações ou juntas, de qualquer espécie, que visem a subversão, pela ameaça ou violência, da ordem política ou social”.

Poucos meses depois, como resposta à chamada Intentona Comunista, ocorrida em novembro de 1935, organizada por meio da Aliança Nacional Libertadora (ALN), ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCB), com a participação de uma parcela de militares, foram aprovadas modificações na legislação para restringir ainda mais a atuação política da classe trabalhadora, por meio da lei nº 136. No caso das organizações de esquerda, o novo texto apontava:

“Tratando-se de partido político registrado pela Justiça Eleitoral, e ordenado o fechamento na forma do art. 29 da lei n. 38, o Ministro da Justiça comunicará imediatamente o ato ao Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, em exposição fundamentada, para os efeitos do cancelamento do registro, sem prejuízo da ação penal que no caso couber”.

Na mesma lei também se proibia a filiação de oficiais das Forças Armadas a partidos ou a outras organizações consideradas ilegais por força desta lei.

Em 1936, uma nova legislação criou o Tribunal de Segurança Nacional, órgão ligado à Justiça Militar utilizado durante o Estado Novo (1937-1945) para perseguir opositores do regime. O referido órgão estava responsável por julgar, entre outras coisas:

“[…] crimes contra a segurança externa da República, considerando-se como tais os previstos nas Leis ns. 38, de 4 de abril, e 136, de 14 de dezembro de 1935, quando praticados em concerto, com auxílio ou sob a orientação de organizações estrangeiras ou internacionais”.

Depois do fim do Estado Novo, em 1945, a LSN foi mantida. Em 1953 foi aprovada a lei nº 1.802, que tratava de “crimes contra o Estado e a ordem político-social”, substituindo as determinações da ditadura do Estado Novo e restringindo a competência de atuação da Justiça Militar para determinados crimes. Essa legislação tornou regra o uso da jurisdição ordinária, ou seja, os tribunais e julgamentos da Justiça comum.

Na ditadura iniciada em 1964, ganhou maior relevância a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), formulada pela Escola Superior de Guerra (ESG). Criada em meados da década de 1940, a DSN foi fruto das disputas políticas da chamada Guerra Fria, que contrapunha politicamente os blocos liderados, de um lado, pelos Estados Unidos e, de outro, pela União Soviética. A doutrina da ESG pregava um projeto de país voltado a um modelo de desenvolvimento baseado na industrialização e alinhado ideologicamente com os Estados Unidos. O anticomunismo, ainda que suas raízes possam ser encontradas nas décadas anteriores, era uma forte marca da DSN. O objetivo da DSN era o de defender a “ordem” contra uma “ameaça comunista”, ou seja, proteger o capitalismo contra a revolução e o socialismo.

Em 1965, o Ato Institucional Nº 2 (AI-2) devolveu à Justiça Militar a atribuição de julgar todos os crimes políticos cometidos contra civis e militares, sem distinção. Em 1967 foi publicado o Decreto-Lei Nº 314, instituindo uma nova LSN, que refletia a ideologia da DSN e assumia a lógica de “combate ao inimigo”. Essa legislação estabelecia que “toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional”, definia que essa segurança “é a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos”, e permitia a adoção de “medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva”.

Essa lei sofreu acréscimos e reformulações nos anos seguintes, em especial a partir do Ato Institucional Nº 5 (AI-5). O AI-5, em vigor a partir de dezembro de 1968, suspendeu, entre outras coisas, o recurso de habeas corpus. No ano seguinte, a ditadura aprovou o decreto nº 898/1969, que passou a prever a pena de morte e a prisão perpétua para alguns crimes, como aquelas ações que viessem a:

“[…] comprometer a Segurança Nacional, sabotando quaisquer instalações militares, navios, aviões, material utilizável pelas Forças Armadas, ou, ainda, meios de comunicação e vias de transporte, estaleiros, portos e aeroportos, fábricas, depósitos ou outras instalações”.

Esses aspectos punitivos foram revogados em 1978, por meio da lei nº 6.620. Em 1983, no processo de transição que levou ao fim da ditadura, o Congresso Nacional aprovou a lei 7.170, estabelecendo uma nova LSN. Essa lei, revogada neste ano, embora enunciasse entre seus objetivos “a proteção do regime representativo e democrático”, tinha semelhanças com as anteriores, entre outras coisas mantendo que quem cometer os crimes por ela definidos deveria ser julgado pela Justiça Militar e permitia a incomunicabilidade da pessoa acusada por esses crimes pelo prazo de até cinco dias. Além disso, essa possuía artigos que não descreviam com detalhes a conduta que poderia ser considerada criminosa, deixando a regra imprecisa e abrindo margem para a interpretação dos órgãos de repressão e do Judiciário. Um dos exemplos é o trecho sobre “incitar subversão da ordem política”, que não especificava as ações que poderiam ser entendidas como subversão.

Com o processo de mobilização dos trabalhadores nas décadas de 1970 e 1980, a ditadura foi derrubada, nesse processo sendo aprovada uma nova Constituição em 1988 e realizada eleição presidencial em 1989. Na nova Constituição, como consequência do pacto entre os antigos ditadores e a oposição institucional, com vistas a garantir a estabilidade política e o poder da burguesia, foram incorporadas algumas conquistas da luta dos trabalhadores, mas também mantendo aspectos repressivos.

Nesse sentido, por um lado, a Constituição de 1988 prevê que a competência para julgar crimes políticos contra o Estado deve ser exercida pela Justiça Federal e proíbe a incomunicabilidade das pessoas presas. Além disso, foram incorporados alguns direitos para pessoas acusadas de crimes, como o direito à ampla defesa e a obrigatoriedade de que exista um processo legal para decretação de prisão, o direito do preso de ser informado de seus direitos, o direito de permanecer em silêncio e de receber a assistência de sua família e de um advogado, a proibição da tortura e tratamento desumano, a proibição da pena de morte, entre outros.

Em contraste, o terrorismo, termo que fez parte dos discursos repressivos utilizados para massacrar as oposições durante a ditadura, é enquadrado entre os “crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia”. O terrorismo é definido como “ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”. Por meio desse texto, portanto, continuam abertas as brechas que podem ser utilizadas para reprimir, a qualquer momento, movimentos sociais e organizações de esquerda, garantindo ao Estado o monopólio do uso de armas. Prevê-se também que a segurança pública “é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, sendo as diferentes polícias responsáveis por garantir abstrações como “ordem política e social” e “ordem pública”.

Essa trajetória da legislação sobre segurança nacional e sua materialização em uma prática repressiva mostra claramente que seu objetivo sempre passou pela necessidade de defender a propriedade privada e a dominação burguesa por meio do Estado. As alterações nas diversas leis são respostas às diferentes conjunturas, tendo, por exemplo, fortes componentes ideológicos anticomunistas nas leis aprovadas no Estado Novo e na ditadura iniciada em 1964. Nesse processo, ainda que estivesse em jogo o combate sistemático aos inimigos da dominação burguesa, que poderiam se materializar numa nação, como a União Soviética ou Cuba, seu principal foco sempre foi o da repressão sobre os trabalhadores no Brasil.

Tem sido bastante simplório o debate sobre a revogação da LSN, quando reduz à questão ao embate entre democracia e autoritarismo. Os componentes repressivos que estavam presentes na LSN estão mantidos no Código Penal, ainda que seja retirada a vinculação direta com a ditadura e minimizado o componente ideológico anticomunista. A democracia, enquanto forma política do poder da burguesia, portanto, uma ditadura da classe dominante, nada mais faz do que ajustar os componentes de repressão, como o fez a cada mudança nas leis que respondiam à segurança nacional. No caso mais recente, a revogação da LSN de 1983, ainda que simbolicamente se mostre importante, deve servir apenas como sinal para que os trabalhadores não apenas se organizem para derrubar qualquer forma de repressão à sua luta, como coloquem no horizonte a derrubada do capitalismo, a destruição do seu Estado e a construção do socialismo.

Referências:

Lei de abril de 1935: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-38-4-abril-1935-397878-republicacao-77367-pl.html

Lei de dezembro de 1935: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-136-14-dezembro-1935-398009-publicacaooriginal-1-pl.html

Lei de 1936: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-244-11-setembro-1936-503407-publicacaooriginal-1-pl.html

Decreto-lei de 1967: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-publicacaooriginal-1-pe.html

Decreto-lei de 1969: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-898-29-setembro-1969-377568-publicacaooriginal-1-pe.html

Lei de 1983: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm