Os consumidores que ainda possuem alguma fonte de rendimentos não desejam se endividar e param de comprar. E a grande maioria dos consumidores repentinamente desempregada ou com perspectiva de redução dos rendimentos não consegue nem pagar as dívidas!
Veja essa interessante declaração de Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve (Fed – Banco Central dos EUA), feita no dia 1ª de Dezembro último: “A essa altura, o emprego de política de taxas de juros a fim de sustentar a economia é obviamente limitado” (Bloomberg, 1/12/08). Bernanke jogou a toalha. É uma confissão muito grave de impotência do presidente do banco central do planeta Terra. Ele está dizendo que não dispõe mais da taxa de juros, a principal arma do Fed para sustentar a expansão da economia.
É verdade o que ele está falando: a taxa de juros do Fed já atingiu um piso (1% anual) abaixo do qual não existe mais nada, a não ser o vazio da armadilha da liquidez e da deflação. Mas não era para guardar essa munição da taxa de juros para quando explodisse a recessão industrial e o desemprego, como está a ocorrer neste glorioso mês de dezembro de 2008? Então Bernanke gastou toda a munição do Fed muito antes da hora? Foi exatamente esse alerta que fizemos quinze meses atrás em nosso boletim “A armadilha da liquidez fabricada”, 4ª semana setembro 2007:
“Se a superprodução de capital continua a todo vapor, com lucros e preços de produção em níveis elevados, a indústria não necessitava, neste momento, de nenhum grama a mais de moeda e facilidades de crédito, como acabou acontecendo com a redução fora de hora da taxa básica de juros do Fed. Essa bala tinha que ser guardada para a hora da deflação e queda da acumulação. É por isso que Monsieur Trichet, o presidente do BC Europeu, não vê razão para essa redução no seu banco, neste momento.
A realidade sempre é muito mais complexa do que parece à primeira vista. A redução da taxa básica do Fed pode provocar, doravante, uma enorme crise financeira, que não tem nada a ver com a bolha imobiliária, e apressar a reversão cíclica da economia real. Bernanke pode ter fabricado deliberadamente, pois ele não é ignorante no assunto, a coisa mais temida por um dirigente de um banco central: a armadilha da liquidez. Exatamente o que essa redução da taxa básica poderia amenizar, se fosse aplicada na hora certa”.
A “armadilha da liquidez” chegou. A maior economia do planeta está mergulhada em um dilúvio de moeda e um sistema de crédito privado absolutamente travado. Essa situação se generaliza em todas as economias do sistema mundial. Sem exceção. Fantasticamente sem exceção. Muita moeda e nenhum crédito. É como se a taxa básica de juros da economia não estivesse próxima de zero, mas do infinito. Uma taxa de juros próxima de zero e tão elevada que inviabiliza qualquer operação de empréstimo e de novas dívidas.
Os bancos não querem emprestar e as empresas não querem tomar emprestado*. Isso caracteriza a chamada “armadilha da liquidez”, uma situação em que as poucas empresas industriais ainda em condições seguras de endividamento não se interessam pelo crédito quase gratuito oferecido pelos bancos. Congelam e entesouram o capital-dinheiro. Transformam o capital-dinheiro em dinheiro puro e simples. Param de produzir. E a grande maioria das empresas à beira da falência e morrendo de sede por um pouquinho de liquidez e crédito é proibida de passar até na calçada dos bancos abarrotados de liquidez, quer dizer, de dinheiro puro e simples.
Não existe almoço de graça
Esse paradoxo de um dilúvio de dinheiro e um deserto de crédito acontece também com o consumo individual. Os consumidores que ainda possuem alguma fonte de rendimentos não desejam se endividar para novas compras. Preferem a liquidez. Param de comprar. E a grande maioria dos consumidores repentinamente desempregada ou com perspectiva de grande redução dos rendimentos não consegue nem pagar as prestações das dívidas anteriormente contraídas. Vai parar no Serasa.
Instala-se neste final de ano um corrosivo e generalizado processo deflacionário. Armadilha da liquidez e deflação são faces de uma mesma moeda, a moeda circulante da catástrofe econômica. Como pouca gente viveu concretamente uma deflação de preços, nos últimos sessenta anos, embora ela tenha acontecido e abafada pelos bancos centrais, não se deve imaginar ingenuamente que alguém possa levar vantagem com a queda dos preços de mercado (preços ao consumidor).
Como dizem os economistas, não existe almoço de graça. Há que se entender que no processo deflacionário tudo cai: começando pelo valor da produção, a produtividade do trabalho, o emprego de operários, a taxa de lucro dos capitalistas, o capital-dinheiro, a taxa de acumulação do capital, os preços de produção, os preços de mercado, as vendas externas, as vendas internas e finalmente, a queda fulminante do produto nacional. A única coisa que se eleva é a taxa de desemprego da força de trabalho. E a fome. Em um verdadeiro processo deflacionário o desemprego e a fome das massas atingem níveis verdadeiramente revolucionários.
Dinheiro e Capital
Os economistas não são capazes de entender as razões deste processo. Na mesma entrevista de Bernanke em que ele fez aquela declaração destacada no início deste boletim, ele declarou também que doravante, para injetar ainda mais dinheiro no sistema, o Fed vai comprar grandes quantias de Títulos do Tesouro americano, os famosos T-bonds, último refúgio de valor de todos os rentistas, capitalistas e governos de todo o mundo. Nada tem mais credibilidade no mundo do que os T-bonds e a sua moeda correspondente: o dólar US**.
Como que tomados pelo desespero de um formidável crash americano se aproximando, os economistas não vêem mais nenhum inconveniente em se expandir descontroladamente as despesas do governo para resgate de bancos falidos, sem nenhuma correspondência com as receitas fiscais, aliás, em queda acentuada neste momento de redução do nível de atividade econômica. Déficit público? Que coisa mais sem importância. Keynes não disse que não se deve preocupar com esse tipo de detalhe?
O problema da economia vulgar – mais acentuadamente na suas variantes keynesianas e da “financeirização do capital” – é que ela não vê diferença entre dinheiro e capital-dinheiro. Acabam sempre confundindo as duas coisas. Não sabem estabelecer relações entre as duas coisas. Para esses economistas da economia popular não houve nenhum momento histórico em que ocorreu a transformação do dinheiro em capital. Uma das conseqüências práticas dessa cegueira é tratar a crise especificamente capitalista (superprodução de capital) como uma crise pré-capitalista, quer dizer, mera crise de crédito, de subconsumo, ou, pior, de bolhas especulativas que se sucedem monotonamente de ciclo em ciclo.
O mundo é uma bolha
Devido a essas debilidades teóricas os economistas não vêem também, do mesmo modo que com os gastos descontrolados do Tesouro, nenhum inconveniente com as não menos descontroladas massas monetárias emitidas atualmente pelo Fed, sem nenhuma correspondência com a evolução da massa de valor agregado produzida na economia e com as transações correntes com o exterior.
Monetização do crédito público (e da dívida)? Qual o problema? Do mesmo modo que o aumento da dívida pública, o descalabro monetário é para os economistas outra coisa também sem a menor importância para o futuro do crédito público da economia que regula a circulação global dos valores capitalistas.
Do mesmo modo que os ingênuos consumidores frente ao conceito de deflação, de repente os economistas também estão acreditando que existe almoço de graça. Os mesmos moralistas que condenaram até poucos meses atrás Alan Greenspan como o pecador “assoprador de bolhas”, culpado pela bolha imobiliária do subprime, agora fazem vista grossa (e batem palmas) às peripécias de Ben Bernanke, um “assoprador de bolhas” cem vezes mais tóxicas do que as que assoprava seu antecessor na presidência do Fed.
O lado prático mais importante desta discussão sobre armadilha da liquidez e deflação é a perfeita relação destes fenômenos monetários com a cronologia do ciclo econômico capitalista. A sua relação com o time do ciclo. Nos próximos dois trimestres estará se definindo a natureza da crise que se desdobra velozmente nos dias atuais: crise parcial ou crise geral? Entre um cenário e outro, a crise do crédito público dos EUA é uma das mais importantes variáveis. A crise geral (catastrófica) só poderá se manifestar com a explosão da crise do crédito público dos EUA. Se essa última não ocorrer, haverá apenas uma crise parcial no mercado mundial. Essa é a regra.
Base e Superestrutura
Como se manifestaria essa crise do crédito público? Exatamente com a elevação descontrolada da dívida pública e do déficit fiscal dos EUA, suficientemente grande para deslanchar uma abrupta desvalorização da moeda de reserva internacional (dólar US) frente ao ouro e o derretimento da credibilidade dos títulos públicos (T-bonds). Uma clara eclosão de monetização da dívida e insolvência da maior economia do planeta.
Mas nada ainda está definido. O certo é que a crise do crédito público nos EUA será apenas a forma política de uma provável crise geral. Como dissemos acima, no cenário de uma crise parcial ela nunca ocorrerá. E o mais importante de tudo isso: a crise do crédito público nos EUA só poderá ocorrer concretamente como um resultado da magnitude maior ou menor da depressão da base produtiva de capital. Os movimentos da base material determinam os movimentos da superestrutura política, embora em momentos de rupturas cíclicas estes últimos possuam alto grau de autonomia e podem também influenciar o desdobramento dos primeiros.
Continuaremos esse assunto em nosso próximo e último boletim deste formidável ano de 2008.
* Os japoneses, que sofreram o problema da armadilha da liquidez nos últimos dez anos têm mais experiência que ninguém na efetividade de uma política de injetar massas gigantescas de dinheiro no sistema financeiro para elevar a economia real. Comentando esse assunto “o presidente do banco central do Japão Masaaki Shirakawa disse em Maio que enquanto a estratégia era muito efetiva para estabilizar os mercados financeiros ela tinha impactos limitados para remediar a estagnação econômica japonesa porque os bancos não queriam emprestar e as companhias não queriam tomar empréstimos” Bloomberg, com, 2/12/2008.
** Enquanto os T-bonds e o dólar mantiverem essa credibilidade atual, não haverá uma crise de crédito público na maior economia do planeta, na forma que ocorre com muita facilidade em Estados frágeis (e suas economias dominadas) como Argentina, Rússia, Brasil, México, África do Sul, Turquia, etc.
*** Este texto foi publicado no boletim Crítica Semanal da Economia.