A revolução em Mianmar, após meses de lutas heroicas das massas, decaiu. O regime reprimiu brutalmente, enquanto o movimento de protesto mudava de ações de greve e manifestações em massa para escaramuças armadas de pequena escala. A pergunta deve ser feita: por que chegamos a tal situação e quais lições precisam ser aprendidas?
Brutalidade do regime
Depois que os militares de Mianmar deram o golpe em 1º de fevereiro, enfrentaram a ira dos trabalhadores e jovens de Mianmar. As massas tomaram as ruas em grande número e organizaram ações de greve e greves gerais, em uma tentativa corajosa de impedir que os militares, sob o comando do general Min Aung Hliang, restabelecessem o governo absolutista. As massas fizeram tudo o que podiam para deter a ditadura militar, mas, infelizmente, até agora fracassaram.
A junta militar, percebendo que não tinha base social, nem apoio de massa, só podia contar com a força bruta. Entendeu que fazer a menor concessão seria visto como um sinal de fraqueza de sua parte e teria servido apenas para alentar e encorajar ainda mais o movimento de massas. Por isso decidiu afogar a revolução em sangue. Centenas de pessoas foram mortas, enquanto cerca de 6.421 pessoas foram detidas ou enviadas para a prisão até agora.
A brutalidade da casta de oficiais militares não conhece limites. Há muitos relatos de manifestantes pacíficos desarmados sendo baleados por soldados a sangue frio. Em alguns casos, caças a jato foram, até mesmo, mobilizados para bombardear aldeias inteiras de civis.
Security forces torched the 240-household Kinma Village in Magwe Region’s Pauk Township on Tuesday following a shootout with local resistance fighters, local sources said Wednesday. (Photo:CJ) #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/mSTDI4aTsH
— The Irrawaddy (Eng) (@IrrawaddyNews) June 16, 2021
Soldados invadiram hospitais em busca de manifestantes feridos, a ponto de médicos e cuidadores ficarem impossibilitados de trabalhar. Isso levou a um êxodo de profissionais da área médica e está levando o sistema de saúde do país à beira do colapso. O regime militar também ordenou aos Médicos Sem Fronteiras que encerrassem seu trabalho humanitário, colocando ainda mais em risco milhares de vidas dependentes da ajuda.
Casas de civis são regularmente invadidas por soldados em busca de manifestantes. Se o regime não consegue encontrar seus alvos, seus familiares, até mesmo bebês, são detidos como reféns. Houve casos de mães de jovens ativistas detidas e presas. Esta é uma abordagem cínica dos militares para pressionar qualquer um que se atreva a continuar participando do movimento de protesto.
Detidos pelo Estado são frequentemente torturados, até mesmo adolescentes e jornalistas estrangeiros. Muitos morreram como resultado das torturas, desde líderes ativistas populares a simples civis das aldeias.
A brutalidade do regime militar, na realidade, revela fraqueza e não força. Se o regime tivesse uma base social de massa para se apoiar, seria mais estável e teria uma rede de apoiadores em todos os cantos da sociedade que poderia usar como aríete contra a classe trabalhadora e a juventude. Mussolini e Hitler subiram ao poder nas costas das camadas pequeno-burguesas frenéticas que haviam sido arruinadas pela crise do capitalismo nas décadas de 1920 e 1930. O que temos em Mianmar é o governo direto dos militares, precisamente porque eles não têm base de massa social.
O regime militar bonapartista é corrupto de cima a baixo e governa sem qualquer apoio significativo na sociedade, exceto, talvez, por uma camada muito tênue dos elementos mais privilegiados. Isso explica por que tem que infligir tais níveis de violência frenética para repelir as massas. Teme profundamente que as massas se vinguem dele por seu comportamento criminoso e por seu governo corrupto.
O general Min Aung Hliang, em particular, planejava tornar-se presidente após se aposentar como comandante-em-chefe, na esperança de que o cargo público pudesse protegê-lo de ser processado por seus anos de crimes. A vitória massiva da Liga Nacional para a Democracia (NLD) nas eleições de 2020, no entanto, frustrou suas ambições.
O partido da junta, o Partido da União para o Desenvolvimento e Solidariedade (USDP, em suas siglas em inglês), mesmo com a garantia de 25% dos assentos no parlamento, não tinha deputados suficientes para nomear Min Aung Hliang para a presidência como desejavam, em virtude da constituição anterior. A eleição de 2020 mostrou quão pouco apoio os oficiais militares realmente têm na sociedade de Mianmar.
A classe trabalhadora, com uma direção determinada, poderia ter derrubado a junta por meio de uma insurreição operária armada. Infelizmente, essa direção não está presente na situação. Este é, de fato, o fator chave que explica o atual impasse que as massas em Mianmar estão enfrentando.
Mandalay residents staged multiple protests against Myanmar's military junta today (Jul 5).
There were explosions in Mandalay last night and armed forces have been blocking roads around Myothit area and conducting investigations.
Photos: CJ#WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/iszijOYtQV
— Myanmar Now (@Myanmar_Now_Eng) July 5, 2021
Ausência de uma direção revolucionária
Quando nos referimos à “direção revolucionária”, o que queremos dizer? Há muito debate entre as camadas mais revolucionárias da juventude e os ativistas da classe trabalhadora sobre o que levou ao impasse atual. Muita ênfase é colocada no fato de que as massas não estavam armadas, e o debate é colocado em termos de não violência versus luta armada.
Limitar a discussão a essas duas opções é reduzir a questão a uma mera questão militar. Mas há mais do que isso. É evidente, para qualquer trabalhador revolucionário ou jovem pensante em Mianmar, que, diante de um regime tão brutal, as massas precisavam de seus próprios grupos armados de autodefesa. Seria criminoso imaginar uma perspectiva que não incluísse esse elemento essencial.
No entanto, uma direção revolucionária genuína não poderia se limitar apenas a essa questão. Em primeiro lugar, o sucesso ou o fracasso de uma revolução depende do programa pelo qual ela luta. A revolução de Mianmar está lutando por um retorno à democracia burguesa e pelo restabelecimento do NLD com Aung San Suu Kyi (ASSK) em sua liderança, ou deveria ir além disso?
Para envolver e mobilizar as massas, a revolução deve afirmar, com ousadia, seus objetivos. Não podem ser simplesmente um retorno ao status quo ante, pois este último era aquele em que os trabalhadores laboravam longas horas, sob constante pressão para produzir mais, e com baixos salários, com a constante ameaça de enfrentar o desemprego. Ao mesmo tempo, nas áreas rurais, os camponeses enfrentavam a ameaça sempre presente de que suas terras seriam tomadas por essa ou aquela grande corporação capitalista. E as minorias étnicas estavam sendo brutalizadas pelos militares.
Se a revolução não oferecer uma solução para tudo isso, não conseguirá mobilizar as massas trabalhadoras, por mais corajosos que sejam os manifestantes, por mais que sejam feitos apelos para a participação na luta armada. Na verdade, vai deixar os combatentes isolados e à mercê da terrível máquina militar que hoje governa o país.
Portanto, a revolução deve estar armada com um programa claro. Deve declarar, inequivocamente na sua bandeira, que o objetivo é introduzir uma democracia genuína, que só pode ser uma democracia dos trabalhadores. Por sua vez, a democracia operária só pode ser alcançada se os trabalhadores tiverem poder econômico. Isso significa que o slogan central deve ser pela nacionalização das grandes corporações sem compensação para os proprietários, e essas mesmas corporações devem ser colocadas sob a gestão e o controle democrático dos trabalhadores.
Sobre a questão da terra, a revolução deve afirmar que se oporá – se necessário, com armas nas mãos – a qualquer tentativa de apropriação da terra dos camponeses pelas corporações capitalistas. E deve também afirmar que acabará com a opressão das minorias e defenderá seu direito à autodeterminação sob qualquer forma que considerem necessária.
Isso significa que a revolução deve deixar claro que o que é necessário é uma transformação socialista de Mianmar, onde as grandes corporações seriam expropriadas e a imensa riqueza e recursos do país seriam usados para o benefício de todos os trabalhadores, e não para o enriquecimento de uma minúscula elite privilegiada.
O que também deve ser esclarecido são os métodos de luta. Se houvesse um partido revolucionário da classe trabalhadora à frente da revolução, com quadros em todos os níveis da sociedade, em todos os locais de trabalho, centros de educação, ministérios do governo, bairros e vilas rurais, teria feito campanha por uma greve geral total e por uma insurreição de massas armadas nas cidades e no campo.
Um genuíno partido revolucionário de massa não teria se limitado a falar sobre um exército alternativo, mas teria procurado todos os meios possíveis para realmente obter armas e construir uma milícia de trabalhadores de massa que operaria, sob o controle de órgãos eleitos pelos trabalhadores, nos locais de trabalho e nos bairros. Essa teria sido a maneira de envolver as massas, não como observadores passivos, mas como participantes ativos.
Substituir o foco para os pequenos grupos de combatentes armados, isolados das massas, não aproxima o movimento de derrubar este regime odiado. Parece muito com a síndrome de Robin Hood, um grupo heroico de lutadores tenta ajudar os pobres, lutam pelos pobres, mas os pobres não participam de sua própria salvação.
Aqui é útil lembrar as famosas palavras de Karl Marx:
“Considerando: que a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores; que a luta pela emancipação da classe trabalhadora não é uma luta por privilégios e monopólios de classe, mas por direitos e deveres iguais e pela abolição de todo privilégio de classe…” (Estatutos Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores, outubro de 1864).
Como podemos constatar, de tudo isso, o debate não pode ser apenas sobre não violência versus luta armada, mas deve ir muito mais longe.
#July5Coup: Buddhist monks from #Mandalay showed their solidarity against the military junta on Monday.#WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/BwOH3rSgkH
— အလွယ်မယုံနဲ့ – Don't Trust Easily (@dte_fact_check) July 5, 2021
“Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”
O título acima resulta das palavras que Lenin escreveu em O Que Fazer? em 1902, e não são de importância secundária no atual debate que ocorre entre os revolucionários em Mianmar. Em seu livro, Lenin afirmou ainda que, “Esta ideia não pode ser enfatizada com muita força em uma época em que a pregação da moda do oportunismo anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais restritas de atividade prática.”
Lenin criticou igualmente os oportunistas e os ultra-esquerdistas. Ambas as tendências partem da ideia de que algo “prático” deve ser feito. Se voltarmos aos primeiros dias do marxismo russo, encontraremos o mesmo debate que temos hoje. Os Narodniks, com seus ataques terroristas, acusaram os marxistas de mera “teorização”, de aprendizado de livros, e eles continuaram o seu caminho até que se demonstrou que seus métodos foram um fracasso total.
A certa altura, os primeiros marxistas russos eram literalmente um punhado – três ao todo – e isolados do movimento de massa. Levou tempo e experiência para que os melhores dos jovens envolvidos com os Narodniks começassem a questionar os métodos que eles haviam adotado. Mas eventualmente eles o fizeram e, ao fazê-lo, eles se voltaram para a tendência que poderia fornecer-lhes uma maior compreensão dos processos em desenvolvimento, com uma perspectiva mais científica e de longo prazo.
Foi assim que os marxistas começaram a se conectar com a nova geração de jovens revolucionários dentro da Rússia. A história mostrou quem estava certo e quem era realmente mais “prático” a longo prazo: os “meros teóricos”, os marxistas. Entre eles estava Lênin, que, começando com um número muito pequeno, acabou construindo um partido revolucionário de massas da classe trabalhadora e liderou a revolução de outubro de 1917.
Há muitos, na esquerda, que reivindicam o manto de Lenin, chamando-se até “Marxistas-Leninistas”, mas que se recusam a aprender as lições da história. É perfeitamente compreensível que, diante de um regime militar tão brutal como o que temos em Mianmar, muitos jovens desejem agir agora e fazer algo para derrubá-lo. Isso explica por que razão alguns deles estão olhando para as teorias maoístas e citando o famoso ditado: “a força sai do cano de uma arma”, atribuído a Mao Zedong.
Outros rejeitam a própria ideia de um partido revolucionário como necessária, alegando que um partido não pode monopolizar ou liderar a revolução. Isso é compreensível e é consequência do domínio do movimento de massa pelo CRPH/NUG [Governo de Unidade Nacional de Myanmar no exílio – NdT], por trás do qual está o NLD. Mas rejeitar o papel dos dirigentes burgueses, que traem abertamente o movimento, não significa que devamos rejeitar o próprio conceito de partido do povo trabalhador, dos operários e dos camponeses.
O que temos aqui é um ressurgimento de velhas ideias, uma mistura de anarquismo e populismo, uma rejeição da teoria e uma ênfase nas soluções “práticas”. Tudo isso combinado à ideia de que a tarefa imediata é a restauração da democracia, o que inevitavelmente significa democracia burguesa.
Isso se encaixa bem com a teoria stalinista das etapas, em que o primeiro estágio é a revolução democrática. Essa teoria levou a muitas derrotas de revoluções na história. Vimos poderosas forças revolucionárias, com enormes exércitos guerrilheiros, acabando por se comprometer com a burguesia. Vimos isso na Nicarágua e, mais recentemente, no Nepal. Em ambos os países, os trabalhadores poderiam ter assumido o poder, mas a direção da guerrilha se recusou a seguir esse caminho e buscou um compromisso de classe.
Os adeptos dessas ideias também deveriam se perguntar por que a China hoje tem uma economia de mercado, e por que o regime chinês, que chegou ao poder pelo “cano de uma arma”, não está apoiando o movimento revolucionário em Mianmar hoje, mas, pelo contrário, está trabalhando com o regime atual.
Para voltar às palavras de Lênin: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”, a teoria não é apresentada por ele como alternativa à ação revolucionária. A história prova que Lenin não era apenas um mero teórico. Mas precisamos estudar como a teoria foi usada por ele como um guia para a ação. Sem isso, estamos perdidos.
ASSK e o NLD
Infelizmente, devido à falta de uma direção revolucionária, conforme descrito acima, as massas de Mianmar são um grupo de leões liderados por burros. A conivência dos líderes liberais burgueses do NLD está estrangulando o movimento. Eles compartilham fundamentalmente a mesma posição de classe e, portanto, a mesma atitude da casta dos oficiais militares em relação à classe trabalhadora. Tanto os oficiais do exército quanto os liberais do NLD baseiam suas políticas na propriedade privada dos meios de produção, onde uma minoria possui a riqueza e a esmagadora maioria trabalha para ela, produzindo a riqueza que possui.
Se não se compreende isso, nenhuma explicação racional e científica pode ser oferecida para o que vimos ocorrer no período recente. Os chefes militares e os liberais burgueses podem entrar em conflito uns com os outros; os militares podem prender alguns dos liberais burgueses; e, por sua vez, os liberais burgueses podem fazer muito barulho sobre a brutalidade dos militares, mas ambos se sentam em cima do povo trabalhador e vivem em condições privilegiadas à custa dele.
Os chefes militares estavam de fato compartilhando o poder com os liberais do NLD, mas agora levaram a julgamento Aung San Suu Kyi (ASSK), ex-líder do NLD e da nação, por corrupção. As acusações são provavelmente forjadas, assim como todas as acusações ridículas anteriores que o regime impôs contra ela. Mas a questão aqui não é se as alegações são verdadeiras ou não. A questão é que, de uma forma ou de outra, os generais estão determinados a colocar ASSK fora de cena nesta etapa.
Não por causa de suas próprias convicções políticas, já que ela provou ser extremamente cooperativa com a agenda militar nos últimos anos, especialmente ao encobrir o genocídio dos Rohingya. A razão pela qual eles estão fazendo isso é porque, apesar de suas limitações, ela ainda tem um apoio significativo de massa.
Além disso, independentemente de sua colaboração anterior com os militares, no início da recente luta, as massas de Mianmar ainda viam a ASSK como um símbolo de sua causa. Seus retratos eram onipresentes em todas as grandes ações de greve. Liberá-la agora ou fazer a menor concessão a ela, seria visto como um sinal de fraqueza por parte dos militares e poderia encorajar as massas.
Isso significa que, até mesmo para garantir a liberação de ASSK, sem falar em reformas democráticas genuínas, exigir-se-ia nada menos do que a derrubada total do exército. Para que isso tenha sucesso – como explicamos acima – as armas teriam que ser distribuídas às camadas mais amplas possíveis da sociedade, e os trabalhadores e jovens teriam que ser treinados e organizados em piquetes de defesa armada, mas a liderança do NLD não está disposta a fazer tanto.
A razão para isso é bastante clara se nos lembrarmos do que afirmamos acima. Os liberais burgueses não farão nada que coloque em risco a continuidade do sistema capitalista em Mianmar. Como Marx e Engels explicaram no Manifesto Comunista:
“O desenvolvimento da Indústria Moderna, portanto, arranca de seus pés os próprios alicerces sobre os quais a burguesia produz e se apropria dos produtos. O que a burguesia produz, portanto, acima de tudo, são seus próprios coveiros”.
Os trabalhadores em Mianmar – os futuros coveiros do capitalismo de Mianmar – se tornaram uma força social poderosa. Mianmar ainda é um país relativamente subdesenvolvido, mas a classe trabalhadora se fortaleceu enormemente nos últimos anos. A composição do seu PIB (Produto Interno Bruto) é uma indicação disso, com a agricultura representando agora apenas cerca de 25%, enquanto a indústria representa mais de 35% e os serviços, os 40% restantes.
A força de trabalho do país está agora bem acima de 22 milhões, com 7% e 23% empregados na indústria e nos serviços, respectivamente. O fato de que 70% da força de trabalho esteja no setor agrícola é uma indicação do subdesenvolvimento relativo, mas, ainda assim, mais de 30% da população agora vive nas áreas urbanas, com cerca de 5,5 milhões vivendo em Yangon e 1,5 milhão em Mandalay.
Nos últimos anos, graças, em grande parte, à sua conexão com a economia chinesa, o país viu taxas de crescimento econômico anual de 6% a 8% (entre 2014 e 2018). Isso fortaleceu a classe trabalhadora em termos de peso social na sociedade. É também uma classe trabalhadora muito jovem e militante e, na última década ou além, acostumou-se a ter sindicatos, o direito de se organizar e protestar, e o direito à greve.
Essa é a classe que poderia liderar as massas trabalhadoras de Mianmar em uma revolução bem-sucedida para derrubar, não apenas a atual e odiada junta militar, mas também o sistema econômico que ela defende, o capitalismo. É o surgimento dessa classe que explica as poderosas greves gerais que vimos durante o recente movimento de protesto anti-junta. Mas o surgimento dessa classe também explica a falta de entusiasmo por parte dos líderes do NLD com relação à ideia de se construir um exército alternativo de massa para combater o regime militar. Uma vez armados, os trabalhadores de Mianmar não estariam dispostos a devolver o poder aos liberais burgueses.
Força de Defesa do Povo ou armar as massas
Tudo isso explica por que a Força de Defesa do Povo (PDF, em suas siglas em inglês), que foi formada em 5 de maio pelo governo paralelo liderado pelo NLD (Governo de Unidade Nacional), que deveria ser um exército integrado por todos os grupos rebeldes anti-regime existentes, acabou por ser uma pequena milícia composta de alguns voluntários.
A principal tática do PDF no momento centra-se em assassinatos de oficiais do exército e confrontos em pequena escala. Casos individuais de soldados ou coronéis mortos por bombas ou ataques de “bater e fugir” têm sido relatados regularmente. A ação mais significativa até agora aconteceu em Mandalay em 22 de junho, onde o exército tentou invadir um prédio onde um esquadrão de lutadores PDF estava abrigado.
https://twitter.com/StevenShine2579/status/1407241546496282629
As baixas nessas ações tendem a ser de apenas um dígito, embora isso realmente coloque o regime em alerta. No entanto, as milícias regionais de base étnica mais bem armadas, como no estado de Shan no norte ou no estado de Chin, são geralmente mais capazes de infligir perdas mais pesadas ao exército.
Em termos concretos, o PDF é apenas uma das muitas milícias guerrilheiras que existem dentro das fronteiras de Mianmar. As milícias étnicas, com anos de experiência no combate aos militares de Mianmar, fornecem treinamento apenas para voluntários do PDF, mas não existe nenhum mecanismo coordenado centralmente entre as milícias e o PDF.
Os marxistas reconhecem a imensa coragem dos ativistas que se juntaram ao PDF em um esforço para derrubar a tirania. Ao mesmo tempo, esses lutadores e seus simpatizantes também devem entender que a paixão abnegada sozinha não vence uma revolução. Uma estratégia correta também é necessária.
A guerra de guerrilha nas áreas rurais pode certamente desempenhar um papel na luta contra um regime militar opressor, mas seu papel é, em última análise, auxiliar ao das massas organizadas da classe trabalhadora urbana. As próprias massas da classe trabalhadora devem ser a força motriz da luta contra o regime. Se a classe trabalhadora nas áreas urbanas for mantida em uma posição passiva, com uma estabilização de fato da situação para o regime militar, então o exército pode trabalhar para isolar os grupos em luta.
A military-appointed village administrator in Singu Township, #Mandalay Region who was alleged to have been a military informant was shot dead on Mandalay-Mogoke Road on Friday morning. (Photo: The administrator) #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/o2ABqwFfo0
— The Irrawaddy (Eng) (@IrrawaddyNews) July 2, 2021
Quando há falta de um mecanismo estruturado, coordenado e centralizado entre os vários PDFs locais, os militares esmagam totalmente essas forças, área após área. Temos o exemplo em que um pequeno grupo de combatentes armados atirou na autoridade da aldeia designada pelos militares. A forma como os militares responderam pode ser vista em uma postagem no Facebook, que descreve como o exército incendiou a vila e matou, a sangue frio, várias pessoas, em 15 de junho, em Kinmarwa, Pauk Township, na região de Magway. Embora muitos dos aldeões tenham conseguido escapar, vários dos idosos morreram queimados pelos incêndios iniciados pelo exército.
Para enfraquecer a capacidade do exército de operar dessa maneira, os combatentes armados precisam fazer parte de um movimento revolucionário de massa muito mais amplo. As massas devem ser atraídas para a luta, distribuindo armas e organizando-as onde estiverem. Durante a Revolução Russa de 1905, Lenin mencionou um exemplo bem-sucedido de como isso foi feito na região de Riga para ilustrar a estratégia:
“Veja como a aventura dos revolucionários de Riga foi bem-sucedida, mesmo de um ponto de vista puramente militar. As perdas inimigas são três mortos e provavelmente cinco a dez feridos. Nossa perda é de apenas dois homens, que provavelmente foram feridos e, portanto, feitos prisioneiros pelo inimigo. Nossos troféus são dois líderes revolucionários resgatados da prisão. Esta é realmente uma vitória brilhante!! É uma verdadeira vitória, conquistada na batalha contra um inimigo armado até os dentes. Não é mais uma conspiração contra algum indivíduo detestado, nenhum ato de vingança ou desespero, nenhuma mera ‘intimidação’ – não, foi um início de operações bem pensado e preparado por um contingente do exército revolucionário, planejado com a devida consideração da correlação de forças. O número desses contingentes de 25 a 75 homens cada pode ser aumentado para várias dúzias em cada cidade grande e, frequentemente, nos subúrbios de uma cidade grande. Os trabalhadores se juntarão a eles às centenas; é apenas necessário começar uma propaganda extensa dessa ideia imediatamente, formar tais contingentes, abastecê-los com todos os tipos de armas, desde facas e revólveres a bombas, e dar a esses contingentes treinamento e educação militar” (Lenin, ‘Da defensiva à ofensiva’, grifo nosso).
Em uma carta ao comitê de combate em Petrogrado, Lenin aconselhou ainda:
“Vá para os jovens. Forme pelotões de combate imediatamente em todos os lugares, entre os estudantes, e especialmente entre os trabalhadores, etc., etc. Que os grupos sejam organizados imediatamente de três, dez, trinta, etc., pessoas. Que se armem imediatamente da melhor maneira que puderem, seja com um revólver, uma faca, um pano embebido em querosene para acender fogueiras, etc. Que esses destacamentos selecionem imediatamente os líderes e, na medida do possível, contatem o Comitê de Combate do Comitê de São Petersburgo. Não exija quaisquer formalidades e, pelo amor de Deus, esqueça todos esses esquemas e envie todas as ‘funções, direitos e privilégios’ para o diabo. Não faça adesão ao R.S.D.L.P. uma condição absoluta – isso seria uma exigência absurda de um levante armado. Não se recuse a contatar qualquer grupo, mesmo que seja composto por apenas três pessoas; que a única condição seja a confiabilidade no que diz respeito à espionagem policial e esteja preparada para lutar contra as tropas do czar” (Lenin, ‘Para o Comitê de Combate do Comitê de São Petersburgo’, ênfase no original).
Mesmo aqueles que não podem participar do combate podem ser incluídos nas operações. Como Lenin aconselhou:
“Além disso, a atividade preliminar inclui o trabalho imediato de reconhecimento e coleta de informações – obtenção de planos de prisões, delegacias de polícia, ministérios, etc., averiguando a rotina em escritórios do governo, bancos, etc., e aprendendo como eles são guardados, esforçando-se para estabelecer contatos que possam ser úteis (com funcionários de departamentos de polícia, bancos, tribunais, prisões, correios e telégrafos, etc.), averiguando a localização dos arsenais, de todas as lojas de armeiros da cidade, etc. há muito desse tipo de trabalho a ser feito e – o que é mais importante – é um trabalho em que mesmo aqueles que são totalmente incapazes de se engajar na luta de rua, mesmo os muito fracos, mulheres, jovens, idosos, e assim por diante, podem ser de imensa utilidade. Devem ser feitos esforços imediatamente para incluir em grupos de combate absolutamente todos aqueles que querem tomar parte no levante, pois não existe tal pessoa, nem pode haver alguém que, desde que deseje trabalhar, não pode ter um valor imenso, mesmo se estiver desarmado e pessoalmente incapaz de lutar” (Lenin, ‘Tarefas dos Contingentes do Exército Revolucionário’, grifo nosso).
Em vez disso, o que temos hoje em Mianmar é o PDF composto de pequenos grupos separados das massas, embora as massas sejam simpáticas a eles. De acordo com um informe do New York Times sobre o recente tiroteio em Mandalay, parece que os grupos armados do PDF não estão suficientemente conectados com as massas:
“Com tiros esporádicos ressoando em Mandalay durante grande parte da terça-feira, a Força de Defesa do Povo pediu solidariedade, implorando aos moradores que queimassem pneus nas estradas para retardar a chegada de veículos blindados (…) ‘O PDF de Mandalay precisa da ajuda do povo ‘, disse Bo Zee Kwat, um líder da resistência local. ‘Precisamos da cooperação do povo com urgência’”.
Os lutadores do PDF são muito corajosos e estão fazendo o que podem para lutar contra esse regime odiado. Mas para alcançar a vitória, os civis não devem ser meros espectadores a quem apelemos, mas devem estar ativamente armados e treinados. Através da criação de comitês de autodefesa de bairros e locais de trabalho, as ações armadas devem estar sob o controle das próprias massas. Isso é possível, especialmente em Mandalay, como um importante centro da luta de massas contra a junta militar.
Anti-regime protesters took to the streets in Mandalay to protest against the military regime on Sunday.
(Photo: NSTZ) #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/9IUtKmOyZA
— The Irrawaddy (Eng) (@IrrawaddyNews) July 4, 2021
Quem é o responsável pelo fato de os grupos de combate do PDF serem tão pequenos? Em última análise, isso recai sobre o NLD. Como liberais burgueses, a perspectiva de armar as massas é mais assustadora para eles do que a repressão militar. Os políticos do NLD defendem os interesses das classes proprietárias, dos capitalistas, tanto domésticos como imperialistas, e dos latifundiários.
Eles não querem destruir as forças militares de Mianmar, pois estes são os “órgãos de homens armados” – para usar um termo marxista – que defendem a propriedade privada dos meios de produção. Armar genuinamente o povo e estabelecer um exército alternativo significaria colocar o poder real nas mãos das massas trabalhadoras. Os políticos do NLD não confiam em que as massas simplesmente restabeleçam a democracia burguesa, mas temem que, uma vez que experimentem o gostinho de seu próprio poder, usem isso para ir muito mais longe e colocar em risco a própria base sobre a qual o capitalismo repousa em Mianmar.
Também é compreensível que as organizações armadas étnicas regionais, apesar de fornecerem abrigo e treinamento para ativistas antigovernamentais, não confiem no NLD o suficiente para aderir ao PDF. Eles não estão preparados para se subordinar a esses liberais burgueses que, não faz muito tempo, trabalharam com a junta para esmagar as forças regionais. Seria um cenário diferente se as massas urbanas e rurais fossem lideradas por um partido próprio, que nada tenha a ver com o NLD.
Os líderes do NLD não estão preparados para ir até o fim no estabelecimento de um povo armado, mas preferem buscar algum tipo de compromisso com os militares. Eles esperam que os militares se preparem para um retorno à democracia parlamentar burguesa formal.
Devido à base de apoio extremamente limitada que a casta de oficiais do exército tem entre a população em geral, e graças à necessidade de tranquilizar os investimentos estrangeiros, não é improvável que – em algum momento no futuro – eles tentem encontrar alguma forma de reaproximação com o NLD em um esforço para formar um novo governo de coalizão ainda mais favorável aos militares do que antes. Eles podem não querer trabalhar com ASSK, devido ao entusiasmo que ela ainda inspira entre as massas, mas não faltam políticos de segunda ou terceira categoria no NLD que estariam dispostos a fazer um péssimo acordo com o governo militar.
O atual impasse na situação está enraizado na natureza burguesa do NLD, que representa a classe capitalista de Mianmar que surgiu no período recente. Sua posição de classe sempre os faz temer mais os trabalhadores do que o regime.
Todo o desenvolvimento da revolução em Mianmar tem muitos paralelos com a Revolução Russa de 1905. Marxistas honestos, socialistas e democratas consistentes em Mianmar deveriam estudar de perto essa experiência, bem como os escritos de Lenin durante e depois dessa época.
A conclusão mais importante a tirar disso é que a luta pela democracia requer, em termos absolutos, um partido dos trabalhadores independente de classe em sua vanguarda, sem ilusões ou apoio a qualquer democrata liberal burguês. Em relação a esses elementos, Lenin explicou:
“[P]ara a burguesia, apanhada entre dois fogos (a autocracia e o proletariado), é a capacidade de mudar de posição e de slogans por mil maneiras e meios, adaptando-se, movendo-se um centímetro para a esquerda ou um centímetro para a direita, constantemente barganhando e negociando. A tarefa do democratismo proletário é … criticar incessantemente a situação política em desenvolvimento, expor as sempre novas e imprevisíveis incoerências e traições por parte da burguesia” (Lenin, ‘Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática’).
Cálculos estrangeiros
A atitude de várias potências regionais tem um consequente impacto na Revolução de Mianmar. Até agora, duas das mais significativas, China e ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), se mantiveram de lado, o que significa que estão de fato apoiando o regime militar.
No entanto, também é verdade que nenhum deles ficou feliz com os oficiais do exército de Mianmar por provocarem a atual turbulência e instabilidade. O primeiro-ministro de Cingapura, Lee Hsian-Loong, caracterizou abertamente o uso da força pelos militares de Mianmar contra os manifestantes como “desastroso”, um mês após o golpe ter ocorrido. A China pediu um diálogo quatro dias após o golpe e buscou ativamente a reconciliação entre os militares e o NLD.
Nos estágios iniciais dos eventos, em termos práticos, fazia pouca diferença para a China e a ASEAN se os militares ou o NLD estavam comandando Mianmar, já que ambos os lados estavam alinhados com seus próprios interesses capitalistas. Mas à medida que o movimento alcançava proporções revolucionárias e o NLD era forçado a ameaçar uma guerra civil, as duas forças começaram a mudar de tom.
Em 24 de abril, os países da ASEAN convocaram uma cúpula em Jacarta para discutir a situação em Mianmar. Min Aung Hliang estava presente, enquanto ninguém do NLD/NUG foi convidado. Esse detalhe, por si só. determinou o resultado da cúpula: os países da ASEAN ficariam fora do caminho do regime. Logo depois, a China saudou o resultado da cúpula da ASEAN.
Tanto a China como a ASEAN não podem deixar de assumir esta posição, apesar do seu descontentamento com a junta. A razão para isso é bastante clara: o caráter revolucionário da luta pela democracia em Mianmar ameaça fundamentalmente todos os estados da ASEAN, que são todos regimes antidemocráticos em seus próprios caminhos.
Alguns deles, especialmente a Tailândia e a Indonésia, só recentemente repeliram os movimentos de massa dentro de suas próprias fronteiras. Permitir que o regime militar seja derrubado pelo movimento de massa em Mianmar, mesmo sob a direção do NLD, corre o risco de abrir as comportas dos movimentos de massa em casa mais uma vez. O mesmo acontece com a China, que só recentemente conseguiu erradicar os movimentos em Hong Kong, mas está vendo o descontentamento vir à tona em outras partes dentro de seu domínio.
A Universidade Militar do Ministério da Defesa da Rússia conferiu um cargo de professor honorário ao chefe da junta militar de Mianmar, General Min Aung Hlaing, na quarta-feira, citando seus esforços para cimentar as relações entre as forças armadas dos países. #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/wFPVLfVY3s
Com o apoio da China e da ASEAN, além de um recente acordo de venda de armas com a Rússia, os militares de Mianmar garantiram o apoio das potências mais influentes da região. No entanto, a aventura que abriu essa lata de minhocas não será esquecida por seus patrocinadores. O apoio tácito da China e da ASEAN continuará se o regime puder mostrar que é capaz de estabilizar a situação e garantir boas relações comerciais. Se o regime corre o risco de levar a situação ao limite, onde um movimento revolucionário de massas pode ser desencadeado, então o apoio estrangeiro pode diminuir.
Existem também divisões que podem ser abertas dentro da própria casta de oficiais militares. Se, em algum estágio, o regime militar contínuo se tornar insustentável, alguns desses oficiais podem se tornar mais receptivos às pressões externas de uma potência como a China. No próximo período, essas potências estrangeiras podem vir a favorecer uma ala da junta em vez de outras que consideram pouco confiáveis.
Aqueles com menos influência em Mianmar são as potências imperialistas ocidentais. Eles emitem declarações clamando por “democracia”, mas não fazem mais nada. Eles são como os líderes do NLD e temem que a situação saia do controle e se mova em uma direção revolucionária. O problema que as potências imperialistas ocidentais têm não é com o regime militar. Eles apoiaram muitos regimes militares no passado.
Até hoje, eles fazem bons negócios com o regime saudita e com o regime de Al-Sisi no Egito, e nenhum desses é conhecido por suas credenciais democráticas. Em ambos os países, as pessoas desaparecem, são torturadas e mortas simplesmente por fazerem o menor apelo por direitos democráticos. Mas seus mercados estão abertos para negócios às potências americanas e europeias. Em Mianmar, a principal potência estrangeira é a China, que tem enormes interesses no país, tendo investido bilhões. É disso que os imperialistas ocidentais se queixam e, por meio de ASSK, esperavam obter maior influência dentro do país.
Isso explica por que, além de condenações rotineiras, sanções comerciais ineficazes e resoluções desdentadas da ONU, a única ação substancial tomada pelos países ocidentais foi para as empresas petrolíferas Total e Chevron interromperem o pagamento de dividendos às empresas estatais de petróleo e gás de Mianmar, nas quais têm participação. Isso não afetou em nada as operações de gás e petróleo, muito menos a posição do regime.
A farsa de tal “intervenção” das potências imperialistas ocidentais “democráticas”, com os EUA à sua frente, mostra o declínio relativo da sua posição no mundo. Isso significa que em Mianmar eles não podem nem mesmo aproveitar a situação para mover-se contra a China visando seus próprios fins.
Os líderes do NLD estão totalmente cientes do enorme domínio da China sobre Mianmar. Isso explica por que, apesar de quaisquer inclinações que possam ter em relação ao Ocidente, eles se acomodaram docilmente com o exército quando estavam no governo até o golpe. Somente quando se viram presos ou forçados a passar para a clandestinidade, eles fizeram um apelo à intervenção dos Estados Unidos. Isso, no entanto, não foi resultado de quaisquer ilusões ingênuas que eles possam ter na disposição do governo dos EUA de intervir. Eles estão plenamente cientes do fato de que os Estados Unidos não estão em posição de montar uma operação militar contra a junta militar de Mianmar. Não, seus telefonemas eram apenas uma distração criminosa da tarefa necessária de armar as massas.
Consequências caóticas
O que mais preocupa o regime chinês, a ASEAN e, também, as potências ocidentais é o fato de que o golpe e os eventos que se seguiram devastaram a economia de Mianmar.
Um exemplo é o fato de que o preço dos fertilizantes aumentou cerca de 40%, o que por sua vez impacta a produtividade e os preços das safras. Isso terá efeitos negativos graves para mais de 48,45% da força de trabalho total em Mianmar que ainda trabalha na agricultura.
230.000 pessoas foram deslocadas e precisam urgentemente de moradia, alimentos e necessidades básicas.
De acordo com a Initium Media de Hong Kong, muitas lojas e restaurantes em Yangon permanecem fechados, apesar da pressão militar para que as empresas reabram. Há uma grande escassez de dinheiro, levando a cenas em que centenas de pessoas fazem fila em frente a um único caixa eletrônico. A necessidade de dinheiro tornou-se tão desesperadora, que alguns preferem quebrar o toque de recolher e correr o risco de serem presos, apenas para conseguir um lugar no topo da fila às 3 horas da manhã.
O Banco Mundial está prevendo uma contração de 10% na economia de Mianmar. O PNUD alertou que a taxa de pobreza no país pode dobrar, deixando quase metade da população na miséria.
Os chefes do exército não sofrerão a mesma devastação econômica que o resto do país. Eles ficarão com sua riqueza e podem até enriquecer ainda mais individualmente com isso, pois têm permitido, desde o golpe, mais mineração ilegal de jade, que é um comércio multibilionário, em troca de subornos.
Aqui temos um caso em que os interesses de alguns indivíduos muito ricos e muito poderosos entram em contradição com os interesses do sistema como um todo. Com efeito, a casta militar, tendo se transformado em capitalista, escapou ao controle do capital internacional.
A responsabilidade por este estado caótico de coisas recai diretamente sobre os oficiais do exército que executaram o golpe, mas também sobre o NLD, que traiu as massas. Alguns chegaram a culpar o movimento das massas pelo colapso da economia. Presumivelmente, as massas deveriam ter permanecido passivas, diante de um golpe militar. A responsabilidade pelo deslocamento econômico recai sobre os chefes militares e os liberais burgueses, que são incapazes de mobilizar as massas de uma maneira genuinamente revolucionária.
Enquanto houver um impasse com os militares se segurando teimosamente no poder e com as massas rejeitando o regime, o deslocamento econômico continuará. Romper o impasse requer que a classe trabalhadora assuma o poder, como a única classe que pode lidar efetivamente com a crise econômica por meio de um plano econômico democrático e do controle dos trabalhadores sobre a produção, os preços e a distribuição.
Nova etapa da luta de classes na Ásia
O fato é que as massas em Mianmar mostraram imensa coragem e ímpeto revolucionário. Isso, no entanto, não é suficiente para derrubar esse regime odiado. Embora alguns bravos lutadores ainda estejam realizando ataques contra o exército, devemos admitir, aberta e honestamente, que a Revolução de Mianmar decaiu. Sem uma perspectiva clara de que o movimento seja capaz de derrubar o regime, era inevitável que em algum momento o cansaço se instalasse. Os trabalhadores precisam alimentar suas famílias e pagar o aluguel, e a menos que a revolução dê sinais de vitória em breve, a maré da revolução recuará mais uma vez. As lições precisam ser seriamente extraídas agora.
Essa revolução, por sua escala e militância, já fez história, não apenas para Mianmar, mas muito além de suas fronteiras. Tem sido uma inspiração para trabalhadores e jovens em todo o mundo, especialmente na Ásia. Mas não é um caso isolado, embora seja o mais avançado em termos de nível de militância e de participação das massas, em particular da classe trabalhadora. É parte de um processo de revoluções que vem se desenrolando em todo o continente no período recente.
A junta matou brutalmente 26 membros do PDF usando armas letais pesadas em Depayin Tsp e mais de 50 ficaram gravemente feridos. O massacre da junta em Depayin está além da desumanidade. Os aldeões precisam fugir para evitar o massacre. #DepayinMassacre # July5Coup #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/Iagn9oos6k
É uma continuação do mesmo processo que começou com o Movimento do Projeto de Lei Anti-Extradição de Hong Kong de 2019, seguido pela luta da Tailândia contra sua própria ditadura militar em 2020. A natureza internacional do movimento pode ser vista no fato de que “A saudação com os três dedos”, que começou nos protestos tailandeses, foi adotada pelas massas de Mianmar em seus protestos.
A diferença qualitativa em Mianmar, no entanto, foi o envolvimento decisivo da classe trabalhadora. Houve grandes greves gerais com participação de massa, algo que não observamos nem em Hong Kong nem na Tailândia.
Trabalhadores, além das fronteiras nacionais da região, aprendem com as experiências uns dos outros. Eles sofrem condições semelhantes de baixos salários, pressão para produzir mais, moradias precárias e assim por diante. Em um grau ou outro, eles também são vítimas de medidas policiais repressivas, com Mianmar sendo uma das mais pesadas nesse momento, mas também na Tailândia os trabalhadores e os jovens sentem o peso da brutalidade do Estado.
Mesmo no vizinho Bangladesh, onde formalmente existe uma democracia parlamentar, os direitos democráticos genuínos são muito limitados e gangues criminosas são coniventes com as forças de segurança com ligações até na esfera do governo, enquanto a lei limita o que as pessoas podem realmente dizer sem correr o risco de longas sentenças de prisão. A situação em Hong Kong recentemente também destacou a natureza opressora do regime chinês.
As massas em toda a região desejam liberdade genuína, direitos democráticos genuínos, o direito à liberdade de expressão, o direito de protestar, o direito de greve, o direito de se organizar e assim por diante. O desejo por tais liberdades é uma expressão do ódio que as massas têm pelas elites que as governam. O desejo por uma vida melhor, por melhores condições de trabalho, por um melhor padrão de vida e pela democracia é visto como o meio para se alcançar isso. Assim, a luta por uma vida melhor para as massas e a luta pela democracia caminham juntas.
A experiência recente de Mianmar, no entanto, mostra que mesmo a democracia burguesa limitada é vista como uma ameaça pelos ricos e poderosos, não porque ameaça diretamente seus interesses, mas porque permite que as massas se organizem e protestem. Em Mianmar, antes do golpe militar, a constituição concedeu muitos poderes aos chefes do exército, até mesmo o direito de intervir diretamente na situação, se percebessem uma emergência.
A principal lição de Mianmar é que não se pode confiar nos liberais burgueses para defender os interesses das massas trabalhadoras. Qualquer pessoa com o mínimo conhecimento da situação antes do golpe de fevereiro saberá que ASSK colaborou abertamente com os militares, a ponto de até mesmo encobrir suas atividades genocidas contra as minorias étnicas. É trágico que hoje ela ainda seja considerada um símbolo do movimento e sua foto seja carregada durante protestos em massa.
O que se necessita é de uma direção independente e um partido de massas da classe trabalhadora. Tal partido poderia unir em torno de si as massas trabalhadoras de Mianmar e fornecer uma direção genuína dentro dos sindicatos. Hoje, a liderança sindical tende a seguir ASSK e o partido NLD, o que significa que limita o que os trabalhadores podem fazer. Pois a verdadeira democracia em Mianmar hoje só pode ser alcançada rompendo o poder da burguesia, tanto daqueles mais alinhados com as potências imperialistas ocidentais, quanto dos capitalistas militares que têm imenso poder no país. A menos que o poder dessas pessoas seja rompido, nenhum direito democrático duradouro pode ser alcançado.
Tudo isso explica por que o que está acontecendo em Mianmar também é acompanhado com entusiasmo por trabalhadores e estudantes ativistas de toda a região. Uma derrubada bem-sucedida da oligarquia que governa Mianmar seria um farol para as massas asiáticas e mais além. E isso, por sua vez, explica porque as classes dominantes da ASEAN rapidamente se alinharam com a junta militar contra a classe trabalhadora de Mianmar. Quando viram as proporções revolucionárias do movimento de massa em Mianmar, viram que era tão poderoso – especialmente o movimento da classe trabalhadora – que o viram como uma ameaça ao próprio sistema capitalista, não apenas em Mianmar, mas em toda a região.
A coragem e as ações revolucionárias da classe trabalhadora de Mianmar são um exemplo para os trabalhadores de toda a Ásia. Seu sucesso teria incendiado toda a região. Seu esmagamento brutal também teria sido observado pelas massas da região, e o risco é que, de tudo isso, se possam tirar conclusões pessimistas. Pois assim como a revolução tem um impacto internacional, o mesmo ocorre com a reação. Mas o que deve ser entendido é que a queda da revolução não foi uma conclusão inevitável. Não foi inevitável, mas foi devida à direção, ou melhor, à falta de direção.
Como os trabalhadores não tinham partido próprio, limitaram-se a expressar-se politicamente por meio de um partido da classe capitalista, o NLD. E enquanto as massas de Mianmar depositarem sua confiança nessas pessoas, elas nunca encontrarão uma saída para o impasse.
Isso significa que um retorno à democracia em Mianmar está descartado? Não, mais cedo ou mais tarde esse regime desmoronará, pois tem muito pouco apoio genuíno entre a massa do povo. Governar pela espada sozinho não garante estabilidade a longo prazo. A qualquer momento, as massas de Mianmar recuperar-se-ão dessa situação. Vai demorar um pouco, mas eles vão se recuperar. Toda a história da classe trabalhadora mundial mostra a verdade disso. Da Espanha franquista à Itália sob Mussolini, do Chile de Pinochet aos regimes militares na Coreia do Sul, Taiwan e muitos mais, vimos como esses regimes foram derrubados pelo desejo ardente de liberdade das massas.
A história também mostra como a burguesia se comporta em tais circunstâncias. Eles forçam os monstros militares a voltarem para seus quartéis, mas não desmontam a máquina militar do Estado. Eles apresentam sua máscara democrática para as massas, eles promovem pessoas como ASSK e tentam canalizar a enorme energia do movimento de massas por um caminho seguro. Já vimos isso acontecer em Mianmar antes e vai acontecer novamente.
Os moradores locais do norte de Salingyi e do leste de Yinmarbin, na região de Sagaing, se juntaram à greve de flores em todo o país para mostrar solidariedade ao líder civil deposto, Daw Aung San Suu Kyi, que fez 76 anos no sábado.
(Foto: CJ) #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/pH0KxgXu6P
O fato de as linhas de comunicação entre os chefes militares e as pessoas no topo do NLD não terem sido totalmente cortadas é uma indicação de que os chefes militares estão mantendo suas opções em aberto, pelo menos os mais inteligentes e clarividentes entre eles. Quando um novo movimento irromper no futuro, a fim de garantir a continuidade do sistema, novas aberturas para a “democracia” serão feitas, mas com a ameaça sempre presente de uma nova intervenção militar.
Os marxistas devem explicar isso pacientemente aos ativistas que participaram – e que ainda lutam hoje – no que foi um movimento revolucionário inspirador. Mas não basta ser inspirador. É preciso encontrar uma estratégia vitoriosa que realmente ponha fim a este ciclo de movimentos a partir de baixo, seguido de derrotas.
Isso significa que precisamos dar os primeiros passos na preparação para garantir que a próxima erupção das massas de Mianmar termine em vitória. É necessária uma direção revolucionária. E tal direção não pode ser improvisada durante um movimento de massa, mas deve ser forjada muito antes do desenrolar dos eventos revolucionários. E antes que um partido revolucionário de massas da classe trabalhadora possa ser formado, nossa tarefa é construir os quadros de aço de tal partido.
O partido bolchevique de massas que levou os trabalhadores ao poder na revolução de outubro de 1917 não foi construído em um dia, mas foi preparado durante muitos anos por um pequeno grupo de revolucionários marxistas educados. A tarefa em Mianmar hoje é muito semelhante. Devemos começar!
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM