O governo dos empresários no Chile declarou guerra aos pobres. Decretaram Estado de Emergência e toque de recolher nas principais cidades. Uma medida que não era vista desde 1987 na ditadura. Já foram confirmados vários mortos. O imenso levante popular deixou em cheque o governo que atua de maneira desesperada. Vive-se uma mobilização histórica não vista desde os protestos que derrubaram o ditador Pinochet.
No início de outubro o presidente-empresário Sebastián Piñera declarava o Chile um “verdadeiro oásis dentro de uma América Latina convulsionada”, fazendo alusão às crises sociais, políticas e econômicas que afetam a outros países da região. Na sexta-feira à noite sua imagem idílica se desvaneceu quando era declarado o Estado de Emergência – em outras palavras, que as Forças Armadas assumiam o controle de determinadas zonas – na área metropolitana da capital e, horas mais tarde, nas principais regiões do país. Diante da magnitude dos protestos, sábado à noite foi anunciado a anulação da alta da tarifa do metrô, ao mesmo tempo que se declarava o toque de recolher e Estado de Emergência em várias regiões. Estas medidas foram amplamente rejeitadas pela população, que resiste em deixar as ruas novamente para os militares.
A última alta do transporte público chega a 830 pesos chilenos por passagem em hora de pico (mais de um dólar, a mais cara da América Latina), aproximadamente 50 mil pesos chilenos mensais[1]. Um gasto de destaque se consideramos que 54% dos trabalhadores ganham menos de 350 mil pesos chilenos líquidos[2]. Não surpreende que sejam os estudantes de Ensino Médio aqueles que acenderam a fagulha das evasões em massa do metrô[3] desde a segunda-feira, dia 14 de outubro. Começando em estações de metrô do centro de Santiago, que se transformaram em dias de fúria que se expandiram para a periferia e um movimento de caráter insurrecional em desenvolvimento, incluindo outras demandas históricas e regionais. O governo empresarial de Piñera é incapaz de compreender as necessidades do povo. Desde o princípio qualifica os jovens como “terroristas” e a resposta solidária e espontânea deste enorme movimento de massas como uma ação organizada por grupos extremistas. As autoridades do governo não param de insultar a inteligência dos trabalhadores, os quais têm visto impunidade para com os ricos que evadem impostos e com as forças armadas e carabineros[4] que roubam bilhões de pesos chilenos.
“Pular catraca, não pagar, outra maneira de lutar”: os estudantes do Ensino Médio acendem a fagulha
A realidade é que este segundo governo de Piñera, que se iniciou em março de 2018, é marcado por movimentos de protesto de diversos setores. Significativamente, para nomear alguns, o movimento No Más AFP, contra o sistema privado de previdência[5], em um país que possui 79% das aposentadorias pagas inferiores ao salário mínimo e 44% inferiores abaixo da linha de pobreza. O Mayo Feminista, que mostra a profunda insatisfação da juventude para com os valores tradicionais do machismo e do autoritarismo universitário. A rebelião portuária, que implantou métodos proletários de combate em uma formidável greve nacional em solidariedade ao levantamento popular. A greve de professores, um marco da mobilização docente no Chile. A crise social e ambiental do Quintero-Puchuncaví. Além dos protestos pela privatização dos recursos naturais em meio à crise hídrica, que afeta comunidades e a contínua repressão e resistência no Wallmapu, território ancestral mapuche. Muito distante do oásis que Piñera quer nos fazer sonhar.
Os estudantes de Ensino Médio foram classificados como terroristas e delinquentes, por um discurso clássico da direita que não dá nenhuma solução para que a juventude do país desenvolva suas atitudes e inquietudes. Modificaram os programas curriculares contra a opinião de docentes e especialistas de educação. Em particular na comuna de Santiago escolas emblemáticas, sob o argumento da política de “Aula Segura”, violentaram adolescentes, meninos e meninas, dentro de seus próprios estabelecimentos educacionais.
Mas esta geração não deixa ser pisoteada facilmente. Não param de buscar maneiras de sacudir a herança ditatorial que rege as leis, a economia e a vida cotidiana do país. Desde algumas semanas, logo dos primeiros anúncios da alta da tarifa do metrô, estudantes do Ensino Médio do centro santiaguense, em particular do Instituto Nacional, começaram de maneira incipiente a protagonizar “avalanches” humanas que, pulando as catracas das estações de metrô, convidavam ao restante do povo a pular a catraca e não pagar. Como é de costume, personagens do governo qualificaram estes feitos como terrorismo e violentos. O certo é que o não pagamento da passagem não constitui um delito, mas uma falta administrativa que leva a uma multa. Uma falta assim não dá razão ao uso das Forças Especiais de Carabineros entrando nas estações do metrô e, muito menos, bater em jovens desarmados que defendem os interesses da maioria explorada. É uma falta de inteligência comum na direita nessa época, responder com caricaturas midiáticas e repressão. Esta atitude agressiva de políticos, além de tudo conhecidamente corruptos, longe de hostilizar as pessoas contra os estudantes, acendeu mais os ânimos e incitou a solidariedade a este protesto.
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A repressão joga gasolina no fogo: levantamento popular desata a fúria do povo cansado dos abusos
Com a extensão das evasões massivas no metrô, na tarde de sexta-feira, comunicava-se o fechamento das estações de metrô do centro da capital. Milhares de pessoas caminhavam pelas ruas. Seguindo em seu estilo autoritário, o ministro do Interior, Andrés Chadwick, velho quadro da direita ditatorial, anunciava a implementação da Lei de Segurança Interna do Estado contra os detidos no dia, os quais correriam o risco de ter até 10 anos de prisão. Os trabalhadores que retornavam a suas casas, longe de se voltarem contra os manifestantes, como esperava o governo, somaram-se aos protestos por meio de um panelaço convocado para as 20h30 do mesmo dia. Então agora os protestos alcançavam setores periféricos que, usualmente não se veem afetadas pelas manifestações políticas que periodicamente enchem a Alameda[6]. Diante deste panorama de desordem e alteração do transporte público tão questionado, a atitude das pessoas é mais de simpatia e admiração com a geração jovem que perdeu o medo e põe a cara a tapa contra as injustiças e entusiasma uma geração que havia se afundado no conformismo. Os panelaços foram promovidos massivamente, terminando de assinalar o que já se sabia. Vivia-se um dia de mobilização histórica do povo, não vista desde os protestos contra a ditadura. Ocorreu um salto qualitativo desde os episódios de protestos e movimentos de massas que há mais de uma década mudam a paisagem do Chile pós-ditatorial.
O balanço indica que durante a noite de sexta-feira foram destruídas pelo menos 41 das quase 140 estações de metrô. A isso se somaram saques e incêndios em lugares simbólicos que tanto representam os abusos contra o povo: o edifício central da companhia elétrica privatizada, as rodovias privadas, cadeias farmacêuticas, supermercados e bancos que, por anos, conspiraram contra a classe trabalhadora. Para seguir com sua agenda repressiva, tarde da noite o governo decreta o Estado de Emergência. É a primeira vez desde a ditadura que este é decretado em situações que não são de catástrofe natural. Evidentemente a paisagem dos tanques e dos soldados nas ruas evocam no Chile uma carga emotiva muito forte. A direita tem as mãos manchadas com sangue e seguirá sendo lembrada por seu histórico antidemocrático e criminal.
Santiago amanheceu no sábado com a vergonhosa cena de militares nas ruas. Mas isto não amedrontou a um povo que desperta e busca conseguir os meios para vencer. Policiais e soldados foram objetos dos usuais insultos que merecem seu histórico de assassinos do povo. Mas também há vozes que pretendem falar ao ser humano que ainda poderia habitar dentro do uniforme. O exemplo das jornadas insurrecionais no Equador que há uma semana começou a rachar o exército em linhas de classe está vivo na mente dos manifestantes. Os povos latino-americanos compartilham uma herança antiga de repressão sob o autoritarismo das oligarquias locais e do imperialismo estadunidense. Está se vivendo um Outubro Vermelho Latino-Americano. Apaga-se a ideia de uma onda conservadora tão comentada nestes últimos anos por alguns intelectuais e grupos de esquerda.
As ruas estão em disputa. A autoridade está deslocada e atua “de memória” reprimindo e com a ladainha da ordem e da unidade nacional. Mas o movimento segue crescendo. Os protestos se estenderam às regiões e agora o levante adquire caráter nacional. Tarde da noite de sábado, dia 19 de outubro, o governo de Piñera toma duas importantes medidas. Por um lado, anunciou a suspensão da alta da tarifa do metrô. Por outro lado, decretou o toque de recolher em Santiago, Valparaíso e Concepción. A última vez que isto aconteceu foi em 1987, durante a ditadura. Por volta de 10 mil militares estão espalhados só na capital.
A suspensão da alta do preço do transporte constitui uma manobra do governo para dividir o povo. Confundir setores que, de acordo com a concessão do governo, começam a entrar em pânico com a imagem de caos e destruição promovido pelos meios de comunicação, para separá-los dos que entendem o engano por trás desta medida. Por sua vez, o governo dispõe de artifícios legais herdados da ditadura para aniquilar este levante. A lei de segurança interna do Estado, o Estado de Emergência para restabelecer a “ordem pública” e, claro, o toque de recolher, que restringe as liberdades pessoais de ir e vir. Enquanto expressa uma clara medida de força, isto expressa a debilidade de um governo encurralado, em uma correlação de forças em geral mais favorável às maiorias trabalhadoras contra a minoria de empresários saqueadores.
Neste momento na boca do povo está claro que este protesto não é só pela tarifa do metrô. É contra um modelo feito à base do roubo, da usura e da injustiça. Sustentado com sangue e fogo durante a ditadura cívico-militar e continuado pelos governos durante a “transição democrática”. Os capitalistas fizeram um negócio de tudo aquilo que é precioso para o desenvolvimento das sociedades humanas: a água, a saúde, a moradia, as aposentadorias e a educação. Aos que protestam querem os calar com a mais bruta repressão policial e hoje, como na ditadura, com os militares nas ruas.
Organizar uma Paralisação Nacional: pelo fim do Estado de Emergência e Fora Piñera!
A Federação de Sindicatos do Metrô declarou seu apoio às legítimas demandas contra a alta da tarifa, além de exigir que o carabineros sejam retirados das estações do Metrô. O dirigente Eric Campos também destacou que os trabalhadores do Metrô não são inimigos dos estudantes e entendem que os estudantes não são inimigos dos trabalhadores. Muito interessante é o ponto onde explicam que “dos 810 pesos que os trabalhadores pagam no Metrô, a empresa não recebe mais que 490 pesos. A diferença da alta vai financiar o fracassado plano de transporte Transantiago, agora mal chamado Rede Mobilidade”. Estes comentários são muito úteis, pois dão uma explicação clara e necessária sobre a polêmica alta e a posição dos trabalhadores do Metrô.
Entretanto, isto é muito pouco diante dos objetivos pretendidos na atual situação, que se rebela contra um sistema baseado na desigualdade social e no poder dos ricos. Além disso, nestas poucas horas já correu muita água rio abaixo e não se trata só da alta, mas também da defesa dos direitos democráticos que estão seriamente ameaçados. Este governo a serviço dos capitalistas abriram a porta para abusos gravíssimos por parte das Forças Armadas e policiais, cada abuso e cada morto não pode ser esquecido nem perdoado e não há negociações com estes assassinos do povo nas ruas.
https://www.youtube.com/watch?v=j3J6zOt9LZc
A União Portuária do Chile convocou por si uma greve geral. “Fazemos o chamado a estar em alerta e preparar o caminho para que o Chile, de uma vez por todas, com todos nós trabalhadores chilenos, levante-se e organize uma grande GREVE GERAL que faça tremer os donos do Chile”. Isto aponta na direção correta. Os mineiros do cobre também se somaram à convocação. Neste momento é primordial que os grandes batalhões da classe trabalhadora entrem em cena com seus métodos históricos. Em dezembro passado, os portuários estivadores de Valparaíso davam lições sobre estes métodos: a greve nacional em solidariedade, a mobilização desde as bases, a ação direta e a autodefesa. A hora é urgente e o povo necessita de toda a força e toda a inteligência da classe trabalhadora para que a organização se estenda e se consolide por toda parte.
Existe um chamado para uma Paralisação Nacional para a segunda-feira, dia 21 de outubro. É importantíssimo que as organizações sociais e políticas maiores, com a CUT, A ANEF, a FECH, entre outras, disponham de todos seus recursos para que esta paralisação tenha aconteça da maneira mais exitosa e completa possível. Mas não podemos simplesmente esperar a reação. Múltiplas organizações e sindicatos já tomaram a iniciativa de dar uma direção decidida e unificada a este movimento. Devem ser realizadas assembleias em todos os bairros e lugares de trabalho, colégios e universidades, para discutir os passos a seguir em uma greve geral que exija o fim do Estado de Emergência, a renúncia de Piñera e todo seu gabinete criminoso. Deve procurar a maneira de fazer uma coordenação nacional para todas estas assembleias ou conselhos locais que surjam, juntamente com os sindicatos e lugares de trabalho mobilizados. Devem, ao mesmo tempo, organizar a autodefesa e a segurança das comunidades diante da repressão, a distribuição de alimentos e medicamentos, especialmente de crianças e idosos e pessoas que necessitem assistência. A classe trabalhadora conhece os meios para guiar a economia e a sociedade muito melhor que estes políticos e militares corruptos.
É necessário que o movimento cresça em conteúdo e musculatura. As manifestações de massas são imprescindíveis para criar a confiança destas em suas próprias forças. Mas não são suficientes para vencer o aparato estatal, meios de comunicação impregnados e comentaristas comprados, o próprio cansaço da luta e o desgaste ocasionado pelas organizações e dirigentes conciliadores. Pensamos que caso este formidável levante popular, que dá provas da disposição espontânea do povo para o combate, além disso capaz de se dotar da direção decidida dos trabalhadores em um grande movimento grevista, é perfeitamente possível derrubar o governo do empresário Sebastián Piñera.
A magnitude dos protestos e dos atropelos à democracia que vimos sugerem objetivos que superam qualquer novo decreto, reforma ou presidente. Trata-se de mudar nossas vidas, regidas por uma constituição antidemocrática, forjada na ditadura, que defende os lucros de uma minoria em um sistema capitalista que ameaça a existência da humanidade e do planeta. Não podemos permitir o poder e as riquezas do país fiquem nas mãos de uma elite ignorante e corrupta. Os donos do Chile não podem fazer outra coisa que defender seus interesses capitalistas. É a hora de nós trabalhadores defendermos também nossos interesses, recuperando o melhor da história revolucionária do povo chileno, que agora está tomando seu destino em suas próprias mãos. Para isto, as engrenagens fundamentais da economia devem estar sob o controle dos trabalhadores e do povo. Deve se recuperar a água para as comunidades. Expulsar a hidrelétricas, empresas de florestamento e mineradoras que, aliados com os latifundiários, aterrorizam a nação mapuche. Recuperar e nacionalizar o cobre. Planejar um sistema de transporte sob o controle dos trabalhadores e usuários. Acabar com as AFP. Estabelecer um sistema de Educação e de Saúde gratuita e de qualidade. Todas estas são demandas amplamente apoiadas pela maioria de chilenos e chilenas.
A magnitude do movimento superou as expectativas das organizações existentes. Este movimento deve confiar somente em suas próprias forças. Agora é necessária uma direção clara e decidida, com uma estrutura democrática interna, que emane desde as assembleias de base, outorgando uma coordenação nacional. Desta maneira se pode elaborar uma petição que unifique todas as demandas sentidas pelo povo chileno. Um programa que colocando os meios da Paralisação Nacional e a classe trabalhadora à frente, exija o fim do Estado de Emergência e que Piñera saia. Que estabeleça as bases de um governo de trabalhadores para pôr fim ao saque empresarial e usar as riquezas do Chile para satisfazer as necessidades do povo e não de uma minoria.
Fora militares das ruas!
Abaixo o Estado de Emergência!
Fora Piñera!
Pela Coordenação Nacional de organizações que lutam!
Por um Governo dos Trabalhadores!
Viva os povos do Equador, Haiti e Honduras, que também lutam!
[1] Aproximadamente R$278,00 mensais (Nota do Tradutor – N.T.).
[2] Cerca de R$1.950,00 (N.T.).
[3] Entrada sem o pagamento da passagem nas estações de metrô, pulando ou quebrando a catraca (N.T.).
[4] Força policial de repressão similar a polícia militar no Brasil (N.T.).
[5] Que serviu de exemplo para a proposta de reforma da Previdência Social apresentada por Paulo Guedes, Ministro da Economia do governo Bolsonaro (N.T.).
[6] Principal avenida de Santiago (N.T.).
Artigo publicado na página In Defence of Marxism, da Corrente Marxista Internacional, sob o título “Alza del pasaje desata movimiento de Evasión Masiva y levantamiento popular en Chile. ¡Abajo el estado de emergencia!¡ Fuera Piñera!”, publicado em 21 de outubro de 2019.
Tradução de Nathan Belcavello de Oliveira