Terá o proletariado que criar uma cultura proletária? Ao contrário dos escravistas, feudais e burgueses, o proletariado considera sua ditadura como um curto período transitório. Quando denunciamos os pontos de vista muito otimistas sobre a transição ao socialismo, lembramos que a era da revolução social dura anos e dezenas de anos. Mas não séculos! Poderá o proletariado criar sua cultura no lapso de tempo que lhe está concedido?
Toda classe dominante cria sua cultura e sua arte. A história conheceu as culturas das sociedades escravistas do Oriente e da Antiguidade Clássica, a cultura feudal da Idade Média europeia e a cultura burguesa que domina atualmente no mundo. Daqui se pode deduzir aparentemente que o proletariado terá também que criar sua cultura e sua arte.
Mas a questão não é tão simples. As sociedades escravistas duraram longos séculos. O feudalismo também. A cultura burguesa, inclusive datando-a desde suas primeiras manifestações impetuosas, isto é, desde o Renascimento, já conta com cinco séculos nas costas e somente na segunda metade do século XIX alcançou seu apogeu. A formação de uma cultura nova em torno de uma classe dominante exige, portanto, tempo, e somente termina no período que precede o declínio político desta classe.
Terá o proletariado que criar uma cultura proletária? Ao contrário dos escravistas, feudais e burgueses, o proletariado considera sua ditadura como um curto período transitório. Quando queremos denunciar os pontos de vista muito otimistas sobre a transição ao socialismo, lembramos que a era da revolução social dura anos e dezenas de anos. Mas não séculos ou milênios! Poderá o proletariado criar sua cultura no lapso de tempo que lhe está concedido? Deste ponto de vista são muito mais legítimas as dúvidas, tendo em conta que os anos de revolução social estarão cheios de cruéis lutas de classes em que a destruição ocupará mais espaço que a construção. Em qualquer caso, as principais energias do proletariado tenderão à conquista, conservação e utilização imediata e vital do poder e à continuação da luta. O proletariado, contudo, vai atingir sua mais alta tensão e a manifestação mais completa de seu caráter de classe durante este período revolucionário e será dentro desses limites estreitos que se confinará a possibilidade de ação cultural sistemática.
Por outro lado, quanto mais firme estiver o novo regime contra as perturbações políticas e militares, melhores serão as condições de desenvolvimento para a cultura e mais rapidamente se dissolverá o proletariado na sociedade socialista, perdendo seu caráter de classe e deixando de ser proletariado.
Dito de outra forma: não pode haver a questão de criação de uma nova cultura, isto é, de construção em grande escala histórica, durante o período da ditadura. E a cultura inteiramente nova que surgirá quando cessar a necessidade de o proletariado impor a armadura de ferro da ditadura não será uma cultura de classe. Disto se deduz uma conclusão geral: não há nem haverá cultura proletária; e não há lugar para o desalento, pois o proletariado somente tomou o poder para acabar de vez com a cultura de classes e abrir o caminho para uma cultura humana. Parece que frequentemente nos esquecemos disto.
As vagas teorias sobre a cultura proletária, concebidas por analogia e antítese com a cultura burguesa, resultam de comparações entre o proletariado e a burguesia alheias a todo espírito crítico. O simplista método liberal das analogias históricas não tem nada em comum com o Marxismo. Não existe nenhuma analogia real entre os ciclos históricos da burguesia e da classe trabalhadora.
O desenvolvimento da cultura burguesa começou alguns séculos antes de a burguesia tomar o poder político mediante uma série de revoluções. Mesmo quando a burguesia era somente um terceiro estado quase desprovido de direitos, exercia um grande e crescente papel em todos os campos da cultura. Isto é especialmente evidente no caso da arquitetura. As catedrais góticas não foram construídas repentinamente sob o impulso da inspiração religiosa. A construção da catedral de Colônia, sua arquitetura e suas esculturas, soma-se à experiência arquitetônica da humanidade desde os tempos das cavernas e combinam os elementos desta experiência em um novo estilo que expressa a cultura de sua época, que é, em última análise, a estrutura social e técnica desta época. A velha pré-burguesia dos grêmios e ofícios criou o gótico. Quando cresceu e se fortaleceu, isto é, quando se tornou mais rica, a burguesia ultrapassou o estágio gótico e criou de forma consciente e ativa o seu próprio estilo arquitetônico, não para a Igreja, mas para seus próprios palácios.
Baseada no gótico, voltou-se para a Antiguidade, particularmente para a arquitetura romana e árabe, e aplicou tudo isto às condições e necessidades da nova comunidade urbana, criando assim o estilo renascentista (na Itália, durante o final do primeiro quarto do século XV). Os especialistas podem contabilizar os elementos que o Renascimento deve à Antiguidade e ao gótico e podem argumentar a respeito de qual lado é o mais forte. Mas o Renascimento só começa quando a nova classe social, já culturalmente saciada, se sentiu forte o suficiente para sair de debaixo do jugo do arco gótico e olhar a arte gótica e todas as que a precederam como material a sua própria disposição, e usar a técnica do passado para seus próprios objetivos artísticos. Isto se aplica também a todas as outras artes, mas com a diferença de que, devido a sua maior flexibilidade, isto é, a sua menor dependência de objetivos e materiais utilitários, as artes “livres” não revelam a dialética dos estilos sucessivos com a mesma firmeza convincente como o faz a arquitetura.
Desde a época do Renascimento e da Reforma, que criou condições intelectuais e políticas mais favoráveis para a burguesia na sociedade feudal, à época da revolução que transferiu o poder à burguesia (na França), passaram-se três ou quatro séculos de crescimento da força material e intelectual da burguesia. A Grande Revolução Francesa e as guerras que dela surgiram baixaram temporariamente o nível material da cultura. Porém, mais tarde, o regime capitalista se estabilizou como “natural” e “eterno”. Portanto, os processos fundamentais do crescimento da cultura burguesa e de sua cristalização no estilo foram determinados pelas características da burguesia como classe possuidora e exploradora. A burguesia não apenas se desenvolveu materialmente dentro da sociedade feudal, entrelaçando-se de várias maneiras com a última e atraindo a riqueza para suas próprias mãos, como também arrastou a intelligentsia para o seu lado e criou suas fundações culturais (escolas, universidades, academias, jornais, revistas) muito antes de abertamente tomar posse do Estado. É suficiente lembrar que a burguesia alemã, com sua tecnologia, filosofia, ciência e arte incomparáveis, permitiu que o poder do Estado repousasse nas mãos de uma classe burocrática feudal até uma data tão tardia quanto 1918 e decidiu, ou, mais corretamente, foi forçada a tomar o poder em suas próprias mãos somente quando os fundamentos materiais da cultura germânica começavam a se despedaçar.
Mas – pode-se objetar – levou milhares de anos para se criar a arte escravista e somente centenas de anos para se criar a arte burguesa. Por que, então, não poderia a arte proletária ser criada em algumas dezenas de anos? As bases técnicas da vida não são absolutamente as mesmas no presente e, portanto, o tempo também é diferente. Esta objeção, que à primeira vista parece convincente, na realidade perde o ponto crucial da questão. Sem dúvida, no desenvolvimento de uma nova sociedade, virá o tempo em que a economia, a vida cultural e a arte receberão o maior impulso à frente. No momento atual somente podemos criar conjecturas sobre seu andamento. Em uma sociedade que tenha se liberado da pressão e estupidificante preocupação de assegurar o pão de cada dia, em que restaurantes comunitários prepararão comida boa, saudável e de bom paladar para todos, à escolha, em que lavanderias comunais lavarão as boas roupas de todos, em que as crianças, todas as crianças, serão bem alimentadas, fortes e alegres, e vão absorver os elementos fundamentais da ciência e da arte como absorvem a albumina, o ar e o calor do Sol, em uma sociedade em que a eletricidade e o rádio não serão o artesanato que hoje são, mas provenham de fontes inesgotáveis de superpotência ao toque de um botão, em que não haverá “bocas inúteis”, em que o egoísmo libertado do homem (uma formidável potência) somente tenda ao conhecimento, transformação e melhora do universo – nessa sociedade o desenvolvimento dinâmico da cultura será incomparável a tudo que conhecemos do passado. Mas tudo isto virá somente depois de uma longa e penosa transição, que ainda se encontra a nossa frente. E estamos falando somente sobre o período de transição.
Mas não é dinâmico o momento atual? É, e no mais alto grau. Mas seu dinamismo está centrado na política. A guerra e a revolução foram dinâmicas, mas em enormes proporções em detrimento da tecnologia e da cultura. É certo que a guerra produziu uma longa série de invenções técnicas. Mas a pobreza que ela produziu por suas consequências impediu sua aplicação prática e suas possibilidades de revolucionar a vida por um longo tempo. Isto se refere ao rádio, à aviação e a muitas descobertas mecânicas.
Por outro lado, a revolução prepara o terreno para uma nova sociedade. Mas o faz com os métodos da velha sociedade: luta de classes, violência, destruição e aniquilação. Se não se produz a revolução proletária, a humanidade se afogará em suas contradições. A revolução salva a sociedade e a cultura, mas à custa da operação cirúrgica mais cruel. Todas as forças ativas estão concentradas na política e na luta revolucionária; tudo o mais retrocede a segundo plano e tudo o que impede a ação é pisoteado implacavelmente. Neste processo, naturalmente, há fases de fluxo e refluxo; o comunismo de guerra é substituído pela NEP e a NEP, por sua vez, passa por vários estágios.
Mas, em sua essência, a ditadura do proletariado não é uma organização para a produção da cultura de uma nova sociedade; é um sistema revolucionário e militar lutando por ela. Não se deve esquecer disto. Cremos que o historiador do futuro colocará o ponto culminante da velha sociedade em 2 de agosto de 1914, quando a potência cultural burguesa, afetada por uma súbita loucura, lançou o mundo nas chamas e no fogo de uma guerra imperialista. O início da nova história da humanidade será datado em 7 de novembro de 1917. As etapas fundamentais do desenvolvimento da humanidade poderão ser classificadas assim: a “história” pré-histórica do homem primitivo; a Antiguidade, cuja ascensão se baseou na escravidão; a Idade Média, baseada na servidão; o capitalismo e a exploração do trabalho assalariado; e, finalmente, a sociedade socialista, com sua passagem – confiemos que seja sem dor – à Comuna sem Estado. Em qualquer caso, os vinte, trinta ou quarenta anos que durará a revolução proletária mundial serão marcados na história como a mais penosa transição de um sistema a outro, mas em caso algum como uma época independente de cultura proletária.
No momento, nestes anos de trégua, podem surgir algumas ilusões em nossa República Soviética a respeito disto. Temos de colocar as questões culturais na ordem do dia. Ao projetar nossos problemas cotidianos no futuro distante, pode-se pensar em uma longa série de anos de cultura proletária. Mas não importa o quão importante e vitalmente necessário possa ser nossa construção cultural, ela está inteiramente dominada pelo enfoque da revolução europeia e mundial. Somos apenas, como antes, soldados em campanha. Estamos aquartelados no momento. Nossa roupa precisa ser lavada; nossos cabelos, cortados e penteados, e, o que é mais importante, o rifle deve estar limpo e lubrificado. Hoje, todo o nosso trabalho econômico e cultural não é nada mais do que uma pausa entre duas batalhas e duas campanhas. As batalhas principais estão à frente e podem não estar muito longe. Nossa época não é uma época de uma nova cultura, mas somente a entrada nela. Devemos, antes de tudo, tomar posse politicamente dos mais importantes elementos da velha cultura, pelo menos ao ponto de sermos capazes de pavimentar o caminho para uma nova cultura.
Isto se torna particularmente evidente quando se considera adequadamente o problema em seu caráter internacional. O proletariado era, e permanece sendo, uma classe não possuidora. Isto por si só restringiu em muito sua capacidade de adquirir os elementos da cultura burguesa que entraram para sempre no inventário da humanidade. Em certo sentido, pode-se corretamente dizer que o proletariado também, pelo menos o proletariado europeu, teve sua época de reforma. Isto ocorreu na segunda metade do século XIX, quando, sem fazer uma tentativa de tomar diretamente o poder do Estado, conquistou para si mesmo sob o sistema burguês condições jurídicas mais favoráveis para se desenvolver.
Mas, em primeiro lugar, para este período de “reforma” (parlamentarismo e reformas sociais) que coincide principalmente com o período da Segunda Internacional, a história proporcionou quando muito algumas décadas enquanto proporcionou séculos à burguesia. Em segundo lugar, o proletariado, durante este período preparatório, não se tornou uma classe mais rica e não concentrou em suas mãos o poder material. Pelo contrário, do ponto de vista social e cultural, tornou-se cada vez mais infeliz. A burguesia chegou ao poder plenamente armada com a cultura de seu tempo. O proletariado, por seu lado, chega ao poder armado apenas com a aguda necessidade de dominar a cultura. O problema de um proletariado que conquistou o poder consiste, antes de tudo, em tomar em suas mãos o aparato cultural – as indústrias, escolas, publicações, imprensa, teatro etc. – que antes não lhe serviam, e, dessa forma, abrir o caminho da cultura por si mesmo.
Nossa tarefa na Rússia se complica pela pobreza de toda a nossa tradição cultural e pela destruição material causada pelos acontecimentos da década passada. Após a conquista do poder e depois de quase seis anos de luta para sua conservação e consolidação, nosso proletariado é forçado a fazer convergir todas as suas forças para a criação das condições materiais mais elementares de existência e de contato com o ABC da cultura – ABC no verdadeiro e literal sentido da palavra. Não é por nada que tenhamos colocado toda a nossa força na tarefa de ter alfabetização universal na Rússia até o décimo aniversário do regime soviético.
Alguém pode objetar que tomo o conceito de cultura proletária em um sentido muito amplo. Que, se não pode haver uma cultura proletária totalmente desenvolvida, no entanto a classe trabalhadora pode ter êxito em colocar o seu carimbo na cultura antes de ser dissolvido na sociedade comunista. Tal objeção deve ser contabilizada antes de tudo como um sério recuo da posição de que haverá uma cultura proletária. Não se questiona que o proletariado, durante o tempo de sua ditadura, vai colocar seu carimbo na cultura. Contudo, isto está muito longe de uma cultura proletária no sentido de um sistema de conhecimento e arte desenvolvido e completamente harmonioso em todos os domínios do trabalho material e espiritual. Para dezenas de milhões de pessoas, dominar a leitura, a escrita e a aritmética é, por si mesmo, um novo fato cultural de grande importância. A essência da nova cultura não vai ser aristocrática e para uma minoria privilegiada, mas uma cultura de massas, universal e popular. A quantidade se transforma em qualidade; com o crescimento da quantidade de cultura chegará uma elevação de seu nível e uma mudança em seu caráter. Mas este processo vai se desenvolver somente através de uma série de etapas históricas. Na medida em que tenha êxito, enfraquecerá o caráter de classe do proletariado e, desta forma, acabará com a base de uma cultura proletária.
Mas, e os estratos superiores da classe trabalhadora? E sua vanguarda intelectual? Não se pode dizer que nestes círculos, por mais estreitos que sejam, um desenvolvimento da cultura proletária já está ocorrendo hoje? Não temos a Academia Socialista? Professores vermelhos? Algumas pessoas são culpáveis de colocar a questão desta forma muito abstrata. A ideia parece indicar que é possível a criação de uma cultura proletária por métodos de laboratório.
Na verdade, a malha da cultura é tecida nos pontos onde as relações e interações da Intelligentsia de uma classe e a própria classe se encontram. A cultura burguesa – a cultura técnica, política, filosófica e artística, foi desenvolvida através da interação da burguesia com seus inventores, líderes, pensadores e poetas. O leitor criou o escritor e o escritor criou o leitor. Isto é verdadeiro em grau incomensuravelmente maior para o proletariado, porque sua economia, política e cultura somente podem ser construídas na base da atividade criadora das massas.
A principal tarefa da Intelligentsia proletária no futuro imediato não é a formação abstrata de uma nova cultura, sem levar em conta a ausência de uma base para ela, mas definir o suporte da cultura, isto é, oferecendo às massas atrasadas, de forma sistemática, plena e naturalmente crítica, os elementos essenciais da cultura que já existe. É impossível criar uma cultura de massas nas costas de uma classe. E para se construir a cultura em cooperação com a classe trabalhadora e em estreito contato com sua elevação histórica geral, há que se construir o socialismo, embora em estado bruto. Neste processo, as características de classe da sociedade não se tornarão mais fortes, e sim, pelo contrário, começarão a se dissolver e a desaparecer na razão direta do êxito da revolução. O significado libertador da ditadura do proletariado consiste no fato de que é temporária – por apenas um breve período – de que é uma forma de se limpar o caminho e de se lançar as bases de uma sociedade sem classes e de uma cultura baseada na solidariedade.
Para explicar mais concretamente a ideia de um período de apoio cultural no desenvolvimento da classe trabalhadora, vamos considerar a sucessão histórica não das classes, mas das gerações. Sua continuidade se expressa no fato de que cada uma delas, dada uma sociedade em desenvolvimento e não uma sociedade decadente, adiciona seu tesouro às últimas acumulações de cultura. Mas, antes de fazê-lo, cada nova geração deve passar por uma etapa de aprendizagem. Apropria-se da cultura existente e a transforma à sua maneira, tornando-a mais ou menos diferente daquela da velha geração. Mas esta apropriação não é, por enquanto, uma nova criação, isto é, não é uma criação de novos valores culturais, e sim somente a premissa deles. Até certo ponto, o que se disse também pode ser aplicado ao destino das massas trabalhadoras que estão se elevando ao trabalho criativo que marcou época. Basta acrescentar que antes de o proletariado ultrapassar a etapa de aprendizagem cultural, já terá deixado de ser proletariado.
Também não devemos esquecer que a camada superior do terceiro estado burguês passou sua aprendizagem cultural sob o teto da sociedade feudal; que, se bem ainda dentro do ventre da sociedade feudal, ela superou os velhos regulamentos que dominavam culturalmente e se tornou impulsora da cultura antes de chegar ao poder. É diferente com o proletariado em geral e com o proletariado russo em particular. O proletariado é forçado a tomar o poder antes que se tenha apropriado dos elementos fundamentais da cultura burguesa; ele é forçado a derrubar a sociedade burguesa através da violência revolucionária pela simples razão de que a sociedade não lhe permite o acesso à cultura. A classe trabalhadora se esforça para transformar o aparato do estado em uma poderosa bomba de sucção para matar a sede de cultura das massas. Esta tarefa é de incomensurável importância. Mas, sem usar as palavras com ligeireza, ainda não é uma criação de uma cultura proletária especial. “Cultura proletária”, “arte proletária” etc., em três casos entre dez, são termos usados acriticamente para designar a cultura e a arte da próxima sociedade comunista; em dois casos entre dez, para designar o fato de que grupos específicos do proletariado estão adquirindo distintos elementos de cultura pré-proletária; e, finalmente, em cinco casos entre dez, representa uma confusão de conceitos e palavras de que não se pode fazer nem pé nem cabeça.
Aqui está um exemplo recente, um entre milhares, em que se faz um uso desleixado, acrítico e perigoso do termo “cultura proletária”. “A base econômica e seu correspondente sistema de superestruturas”, escreve Sizoy, “formam as características culturais de uma época (feudal, burguesa ou proletária) ”. Assim, a época da cultura proletária é aqui colocada no mesmo plano da cultura burguesa. Mas o que aqui é chamado de época proletária é somente uma breve transição de um sistema sociocultural a outro, do capitalismo ao socialismo. O estabelecimento do regime burguês também foi precedido por uma época de transição. Mas a revolução burguesa tentou, com sucesso, perpetuar o domínio da burguesia, enquanto a revolução proletária tem como objetivo a liquidação do proletariado como classe no mais breve período de tempo possível. A duração desse período depende inteiramente do êxito da revolução. Não é surpreendente que se possa esquecer isto e colocar a época cultural proletária no mesmo plano da cultura feudal e burguesa?
Mas, se é assim, segue-se que não temos nenhuma ciência proletária? Não afirmamos que a concepção materialista da história e a crítica Marxista da economia política representam elementos científicos inestimáveis de uma cultura proletária?
Naturalmente, a concepção materialista da história e a teoria do valor-trabalho têm uma importância incomensurável para o armamento do proletariado como classe e para a ciência em geral. Há mais ciência somente no Manifesto Comunista do que em todas as livrarias de compilações históricas e histórico-filosóficas, especulações e falsificações dos acadêmicos. Mas pode-se dizer que o Marxismo representa um produto da cultura proletária? E pode-se dizer que já estamos fazendo uso do Marxismo, não nas batalhas políticas somente, mas também nas amplas tarefas científicas?
Marx e Engels saíram das fileiras da democracia pequeno-burguesa e, naturalmente, foram educados em sua cultura e não na cultura do proletariado. Se não existisse nenhuma classe trabalhadora, com sua greves, lutas, sofrimentos e revoltas, não haveria, naturalmente, nenhum comunismo científico, porque não haveria nenhuma necessidade histórica dele. Mas sua teoria foi formada inteiramente na base da cultura burguesa, tanto científica quanto política, apesar de ter declarado lutar até o fim contra esta cultura. Sob a pressão das contradições capitalistas, o pensamento universalisante da democracia burguesa, dos seus representantes mais ousados, honestos e clarividentes, se eleva às alturas de uma renúncia maravilhosa, armado com todas as armas críticas da ciência burguesa. Esta é a origem do Marxismo.
O proletariado não encontrou sua arma no Marxismo de uma só vez, e não totalmente até hoje. Hoje essa arma serve a objetivos políticos quase que exclusivamente. A ampla aplicação realista e o desenvolvimento metodológico do materialismo dialético ainda se encontram inteiramente no futuro. Somente em uma sociedade socialista poderá o Marxismo deixar de ser uma arma unilateral de luta política e se tornar um meio de criação científica, um elemento mais importante e um instrumento de cultura espiritual.
Toda ciência, em maior ou menor grau, sem dúvida reflete as tendências da classe dominante. Quanto mais se aproxima a ciência das tarefas práticas de conquista da natureza (a física, a química e as ciências naturais em geral), maior é sua independência de classe e contribuição humana. Quanto mais profundamente a ciência estiver conectada com o mecanismo social de exploração (economia política), ou mais abstratamente generaliza toda a experiência da humanidade (a psicologia, não em seu sentido experimental e fisiológico, mas em seu chamado sentido filosófico), mais é obediente ao egoísmo de classe da burguesia e menos significativa é sua contribuição à soma geral do conhecimento humano. No domínio das ciências experimentais, existem diferentes graus de integridade e objetividade científica, a depender do alcance das generalizações feitas. Como regra geral, as tendências burguesas encontraram um maior espaço para si mesmas nas mais altas esferas da filosofia metodológica, da Weltanschauung [Visão de Mundo – NDT]. Portanto, é necessário limpar a estrutura da ciência da base ao topo, ou, mais corretamente, do topo à base, porque se deve começar a partir dos andares superiores.
Mas seria ingênuo pensar que o proletariado deve reformular criticamente toda a ciência herdada da burguesia antes de aplicá-la à reconstrução socialista. É o mesmo que dizer, com os moralistas utópicos: antes de construir uma nova sociedade, o proletariado deve se elevar às alturas da ética comunista. Na verdade, o proletariado reconstruirá a ética, assim como a ciência, radicalmente, mas o fará depois de ter construído uma nova sociedade, mesmo que em estado bruto.
Mas, não estamos viajando em um círculo vicioso? Como se pode construir uma nova sociedade com a ajuda da velha ciência e da velha moral? Aqui temos que trazer um pouco de dialética, dessa mesma dialética que esbanjamos na poesia lírica, em nossos escritórios de contabilidade, em nossa sopa de repolho e em nosso mingau. A fim de começar a trabalhar, a vanguarda proletária necessita de certos pontos de partida, certos métodos científicos que liberem a mente do jugo ideológico da burguesia; ela os está dominando e em parte já os domina. Testou seus métodos fundamentais em muitas batalhas, sob variadas condições. Mas este é o longo caminho da ciência proletária. Uma classe revolucionária não pode deter sua luta porque o partido ainda não decidiu se deve ou não aceitar a hipótese dos elétrons e íons, a teoria psicanalítica de Freud, as novas descobertas matemáticas da relatividade etc. É certo que depois de haver conquistado o poder, o proletariado encontrará maiores oportunidades para o domínio da ciência e para revisá-la. Isto é mais fácil de dizer que de fazer.
O proletariado não pode adiar a reconstrução socialista até o momento em que seus novos cientistas, muitos dos quais ainda perambulam pelas ruas de calças curtas, irão testar e limpar todos os instrumentos e todos os canais do conhecimento. O proletariado recusa o que é claramente inútil, falso e reacionário, e nos diversos domínios de sua reconstrução faz uso dos métodos e conclusões da ciência atual, tomando-os necessariamente com a percentagem de liga de classe reacionária que está contido neles. O resultado prático se justificará no geral e em seu conjunto, porque sua utilização, quando controlada por um objetivo socialista, gradualmente gerenciará e selecionará os métodos e conclusões da teoria. E, para esse momento, já terão crescido os cientistas educados sob as novas condições. Em qualquer caso, o proletariado terá que levar sua reconstrução socialista a um grau muito alto, isto é, proporcionar segurança material real e satisfação cultural à sociedade antes de ser capaz de realizar a purificação geral da ciência de cima para baixo. Com isto, não estou dizendo nada contra o trabalho da crítica Marxista, que muitos em pequenos círculos e em seminários estão tentando realizar em vários campos. Este trabalho é necessário e frutífero. Deve ser ampliado e aprofundado em todos os sentidos. Mas é preciso manter o senso Marxista da medida das coisas para avaliar o peso específico desses experimentos e esforços hoje em relação à escala geral de nosso trabalho histórico.
Exclui o anteriormente dito a possibilidade de que, mesmo no período da ditadura revolucionária, poderiam aparecer eminentes cientistas, inventores, dramaturgos e poetas fora das fileiras do proletariado? De forma alguma. Mas seria uma ligeireza extrema dar o nome de cultura proletária até mesmo às conquistas mais valiosas de representantes individuais da classe trabalhadora. Não se pode trocar o conceito de cultura pelas pequenas mudanças da vida diária individual e determinar o êxito de uma cultura de classe pelos passaportes proletários de inventores e poetas individuais. A cultura é a soma orgânica dos conhecimentos e das capacidades que caracterizam toda a sociedade ou pelo menos sua classe dirigente. Ela abarca e penetra todos os campos do trabalho humano e os unifica em um sistema. As realizações individuais ultrapassam este nível e o elevam gradualmente.
Existe tal interação orgânica entre nossa poesia proletária e o trabalho cultural da classe trabalhadora em sua totalidade? É evidente que isto não acontece. Trabalhadores individuais ou grupos de trabalhadores estão desenvolvendo contatos com a arte que foi criada pela Intelligentsia burguesa e estão fazendo uso de sua técnica, por enquanto, de forma bastante eclética. Mas é com o propósito de dar expressão ao seu próprio mundo proletário interno? O fato é que isto está longe de ser assim. A obra dos poetas proletários carece de qualidade orgânica, que é produzida somente através de uma profunda interação entre a arte e o desenvolvimento da cultura em geral. Temos o trabalho literário de proletários talentosos e superdotados, mas que não é literatura proletária. Contudo, podem chegar a alguns de seus mananciais.
É possível que na obra da presente geração muitos germes, raízes e mananciais sejam revelados para que algum descendente futuro trace os diversos setores da cultura do futuro, da mesma forma que nossos atuais historiadores da arte ligam o teatro de Ibsen aos mistérios da igreja, ou o impressionismo e o cubismo às pinturas dos monges. Na economia da arte, assim como na economia da natureza, nada se perde, e tudo está amplamente conectado. Mas, factualmente, concretamente, vitalmente, o atual trabalho dos poetas que vieram do proletariado não está se desenvolvendo absolutamente de acordo com o plano que está por trás do processo de preparação das condições da futura cultura socialista, isto é, o processo de elevar as massas…
Escrito em novembro de 1923
Tradução: Fabiano Adalberto