Breves considerações sobre os argumentos no julgamento do STF sobre aborto anencefálico
Todos acompanharam que na semana passada o STF concluiu um julgamento muito importante sobre o aborto. É de conhecimento público, especialmente aos setores da esquerda, que a luta pelo direito ao aborto sempre esteve pautado pela luta das mulheres. É uma bandeira histórica do movimento socialista e operário. Nesse sentido, a decisão do STF deve ser um instrumento para avançar o debate quanto ao direito ao aborto, especialmente porque continua crescendo o número de mortes de mães pobres que morrem tentando realizar abortos das formas mais precárias. Sabe-se que a discussão é que tal conduta seja descriminalizada, ou seja, que a mãe tenha direito à OPÇÃO de não ter um filho ou uma filha. Ou seja, é tão somente para que ela não seja obrigada a ter uma criança que logo morrerá. E, por conseguinte, a mãe que quiser ter, pode continuar sua gestação.
O julgamento estava permeado de polêmicas, com posições divergentes. A imprensa fazia alarde, esperava-se uma votação apertada. No entanto, a votação acabou 8×2. Goleada… O perigo é reproduzir ilusões no Poder Judiciário. Por isso, escrevo com o objetivo de salientar alguns argumentos usados pelos dois ministros do STF que votaram contra o direito ao aborto de fetos anencefálicos, mas que já se expressaram em outros Ministros em outros casos.
O presente julgamento no STF somente respaldou o que já era claro para a luta feminista e socialista há muito tempo. A luta pelo DIREITO ao aborto, ou seja, considerando o aborto uma opção a ser feita. Tal aspecto é importante ser ressaltado, uma vez que grande parte dos argumentos dos setores mais reacionários da sociedade é que se o aborto anencefálico fosse autorizado, se iniciaria um processo de matança de fetos e que as mães que quisessem manter sua gestação até o final, seriam obrigadas a realizar o aborto. Isso não é verdade. Com a entrada da pauta do aborto anencefálico, os argumentos foram ficando mais claros, explicando, por exemplo, que ninguém é a favor do aborto. Trata-se de uma tristeza tremenda, onde todas as mães que realizam o aborto, pelos diversos motivos, o realizam sempre de forma bastante traumática, com tremendo desgaste mental, psicológico e físico. Por outro lado, o “direito” ao aborto é outra coisa. Não deve ser criminalizado, e mais, deve ser legalizado. A mãe deve ter o direito à OPÇÃO de interromper a gestação e esse direito deve ser assistido e garantido pela saúde pública do Estado de maneira gratuita.
Além disso, os setores reacionários argumentam que é um absurdo matar uma criança, um filho e que o Estado não poderia legitimar tal conduta. A mídia usou várias mães, com depoimentos e imagens, para tentar sensibilizar o argumento de que o “certo” é esperar toda a gravidez e ter “fé” que a criança nasça viva e esse é o dever “divino” da mãe. Volta-se sempre ao debate religião x ciência.
Tal linha de argumentação foi basicamente o pano de fundo do Ministro Cesar Peluso. Conhecido por suas posições conservadoras, o legalista ministro explicou que permitir o aborto de anencéfalo é dar autorização judicial para se cometer um crime. E mais, ainda comparou o aborto de fetos sem cérebro ao racismo e também falou em “extermínio” de anencéfalos. Disse ele:
“Ao feto, reduzido no fim das contas à condição de lixo ou de outra coisa imprestável e incômoda, não é dispensada de nenhum ângulo a menor consideração ética ou jurídica nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica que lhe vem da incontestável ascendência e natureza humana. Essa forma de discriminação em nada difere, a meu ver, do racismo e do sexismo e do chamado especismo”.
“Todos esses casos retratam a absurda defesa em absolvição da superioridade de alguns, em regra brancos de estirpe ariana, homens e ser humanos, sobre outros, negros, judeus, mulheres, e animais. No caso de extermínio do anencéfalo encena-se a atuação avassaladora do ser poderoso superior que, detentor de toda força, infringe a pena de morte a um incapaz de prescindir à agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa”.
Trágico e hipócrita, no entanto, é que a mesma veemência para garantir a aplicação da ordem constitucional não se verifica quando as demandas são dos movimentos sociais ou uma demanda como essa, do direito ao aborto anencefálico. O legalismo, o positivismo, a ânsia de aplicar “cegamente” a lei, como se isso fosse possível, oculta a natureza do Direito e do Estado Burguês.
E mais, ao relacionar o “extermínio” como o racismo, o Excelentíssimo Ministro não menciona um dos principais argumentos a favor do direito ao aborto, que é o verdadeiro extermínio (aí sim comprovados com dados) das mães pobres de todo o país!
Circula há tempos um ótimo (contundente, mas, dramático) documentário sobre o tema (Uma história Severina), onde mostra uma mãe, Severina, tendo a “Vida Severina” de tantas mães da classe trabalhadora. O Ministro deve ter visto e aguçado seu espírito reacionário, com o ódio aos pobres.
O outro voto contrário foi o de Ricardo Lewandowski, que explicou que o Supremo não pode interpretar a lei com a intenção de “inserir conteúdos”, sob pena de “usurpar” o poder do Legislativo, que atua na representação direta do povo. Ele afirmou que o assunto e suas consequências ainda precisam ser debatidos pelos parlamentares.
“Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos anencéfalos, ao arrepio da legislação existente, além de discutível do ponto de vista científico, abriria as portas para a interrupção de gestações de inúmeros embriões que sofrem ou viriam sofrer outras doenças genéticas ou adquiridas que de algum modo levariam ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina”, disse.
No entanto, quando interessa ao STF (e tem sido uma tendência nos últimos anos), expressando a vontade da burguesia, a judicialização ocorre justamente como forma de pressionar o poder legislativo, diante de sua mora em legislar. Tal análise é quase unânime hoje nos estudos sobre a judicialização.
O próprio Lewandowski já se manifestou nesse sentido, explicando que o STF tem agido diante da letargia do Congresso, assim como outros Ministros, por exemplo, Gilmar Mendes, ex-presidente do STF:
“Os tribunais acabam corrigindo o Legislativo”, afirmou Mendes ao Valor, por telefone, da Lituânia, onde participou de um encontro internacional de Supremas Cortes, na semana passada. No evento, 39 presidentes de Supremos discutiram o problema da omissão legislativa e a maioria concluiu que, quando as leis são falhas perante os princípios centrais da Constituição cabe, sim, a intervenção dos tribunais. “É uma tendência quase geral no mundo”, constatou o presidente do Supremo brasileiro. “Os tribunais mandam o Parlamento complementar a lei e este último obedece.”
Foi justamente o que Mendes e outros quatro ministros queriam fazer no caso da Lei de Biossegurança, que autoriza as pesquisas com embriões. Eles defenderam a manutenção do texto que permite o uso de células-tronco, mas queriam aplicar nova interpretação ao seu teor de modo a impor condicionantes ao uso de embriões pelos cientistas, como a criação de um órgão federal para fiscalizar. “Estamos numa nova fase histórica deste STF no qual esta casa assumiu um novo protagonismo”, justificou, na ocasião, o ministro Ricardo Lewandowski. “Então, me parece adequado impor as condicionantes para as pesquisas porque a lei é extremamente vaga e tecnicamente imprecisa”, completou. Lewandowski citou outros exemplos em que o STF “tem admitido condicionantes quase entrando no campo do legislador”: a imposição da lei de greve do setor privado para as paralisações do setor público e a interpretação de que ao mudar de partido, sem justificativas plausíveis, após eleito, o político perde o seu mandato. (grifo nosso)
É nesse sentido também o argumento, exposto na Folha de São Paulo, do Sr. Ives Granda Martins, reconhecido jurista reacionário, alto representante da Opus Dei. É de conhecimento público que essa renomada personalidade defende a judicialização, com a presença do Poder Judiciário cada vez mais forte e presente na sociedade, com o objetivo, óbvio, de controle social e institucionalização das lutas sociais, e o enfraquecimento da própria democracia política e portanto da capacidade de luta dos trabalhadores.
Ou seja, quando interessa e é conveniente, o STF deve judicializar, quando não é interessante, se abstém de tomar decisões e deixa ao Congresso. Isso apenas exemplifica o que sempre dissemos, sob uma perspectiva crítica do Direito, de que o Direito é expressão dos conflitos sociais, e, portanto, os Ministros exercem legitimamente suas visões de mundo, e não como algo neutro e fora da dinâmica da sociedade e dos interesses entre as classes.
Dessa forma, em tempos de saudação aos “ilustres” Ministros do STF, vale a pena lembrar e parabenizar o Juiz José Henrique Rodrigues Torres, Juiz da Vara do Júri de Campinas, atual presidente da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), que há mais de 20 anos é um grande defensor dos preceitos constitucionais, especialmente no que se refere ao direito ao aborto anencefálico, uma vez que ele foi o primeiro Juiz a conceder tal direito há muitos anos.
Todavia, não tenhamos dúvidas: devemos esse julgamento não às mentes iluminadas e humanas de nossos Ministros do STF, mas sim às milhares de “Severinas” espalhadas pelo país, abandonadas pela ordem capitalista e por seu Estado. Devemos isso à pressão dos movimentos organizados que lutam por direitos! Cada pequena conquista deve ser comemorada e utilizada para seguir adiante, almejando sempre a plena liberdade, que terá seu despertar com o advento do socialismo!