A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) é o maior instituto da Universidade de São Paulo (USP), possui aproximadamente 10 mil estudantes ativos por semestre e matriculam-se todos os anos mais de 1.500 novos alunos. Seus cursos são da chamada área de humanas (história, geografia, filosofia, ciências sociais e letras), que majoritariamente formam professores. É uma faculdade com grande concentração de estudantes filhos do proletariado e o maior centro de formação de professores do estado de São Paulo, disparado.
Diferentemente da maioria dos demais institutos da USP, a maioria dos estudantes da FFLCH é composta por filhos da classe trabalhadora, que, em sua maioria, é advinda da educação básica pública, cursinhos populares ou de escolas as quais os filhos da burguesia não frequenta. A procura pelas vagas da FFLCH tem em sua composição setores proletários com formação muitas vezes precária.
Estes cursos possuem nota de corte para ingresso relativamente baixa. Isso deve-se justamente ao lugar dado pelo capitalismo ao professor na sociedade: um profissional que, embora essencial, é submetido a uma superexploração, remuneração insuficiente e há muitos anos defasada por falta de reajuste e mesmo cortes. Uma profissão que se torna pouco atrativa para a burguesia e pequeno-burguesia.
A nota de corte mais baixa que a média acaba por se converter num fator que reforça a atração de mais filhos da classe trabalhadora (que, além disso, muitas vezes não tiveram contato na vida com outra profissão de nível superior, senão a de professor), vendo na FFLCH uma das poucas possibilidades de cursar uma Universidade Pública.
Sendo assim, a realidade da FFLCH é bastante distinta da média da USP, devido à situação socioeconômica de seus estudantes. A pandemia causada pelo coronavírus, num contexto de crise econômica que já se gestava e que agora se agrava, apenas tornou mais latente e escancarada a falta de condições que estudantes possuem para acessar às chamadas atividades remotas, haja vista que muitos dependiam da estrutura física da universidade que agora se encontra fechada (sala de pró-aluno, xerox, biblioteca etc.) para manter-se no curso.
Isso também ajuda a entender porque o abandono e o sucateamento da FFLCH salta aos olhos no conjunto da USP. O mesmo Estado capitalista que oferece salários lamentáveis aos professores e que destrói cada vez mais a escola pública é o que precariza a formação dos futuros professores.
Atividades remotas e a postura da Universidade
Muito embora a reitoria da USP, diante da enorme pressão que já se fazia sentir em todos os lados, tenha oferecido notebooks com chips de internet, o limite mensal de tráfego é insuficiente para acompanhar as atividades remotas (20 GB/mês). Outro ponto relevante é que somente no dia 06 de maio os estudantes da USP foram avisados sobre a necessidade de retirar os kits na Guarda Universitária do respectivo campus de cada aluno, meses após a suspensão das aulas presenciais, prejudicando alunos de baixa renda que não residem na mesma cidade em que estudam (a USP tem estudantes vindos das mais distantes regiões do Brasil), haja visto que o kit apenas pode ser retirado num local pré-determinado, somente entregue ao titular e sem possibilidade de envio. Ou seja, esses kits apenas são acessíveis a uma parte dos moradores do Conjunto residencial da USP ( CRUSP) e algumas exceções. Dessa forma, muitos estudantes continuam sem acesso às atividades remotas.
O Departamento de Letras Modernas (DLM) da FFLCH, no dia 27 de abril, iniciou uma tentativa de estender o primeiro semestre de 2020 até o início de setembro, ou seja, ampliando-o em 60 dias. O Conselho Técnico Administrativo (CTA) reunido, reafirmando a necessidade de serem ministradas atividades remotas, permitiu estender o primeiro semestre a fim de manter a base curricular de cada disciplina, sendo o segundo a ser iniciado durante o mês de setembro. Entretanto, isso também não garante acesso às atividades, apenas um tempo a mais para realizá-las. Da maneira como as coisas estão, são dois meses a mais excluindo grande parte dos estudantes.
Outro ponto decidido pelo CTA foi referente ao trancamento de matrícula, que foi estendido até o dia 20de junho (de acordo com o calendário da USP). Foi permitido que estudantes cursem menos de 12 horas aula/semana, ou seja, que estejam matriculados em menos de 12 créditos-aula neste semestre e também ingressantes, isto é, alunos que ainda não cumpriram 24 créditos, podem realizar trancamento total do curso. Especificamente para o curso de Letras foi decidido que, aos calouros, o ranqueamento apenas levará em conta as notas do segundo semestre.
Entretanto, essa flexibilização de possibilidade de trancamento de matrícula pode gerar consequências para os próximos anos. Além de muitos alunos poderem vir a desistir da graduação, já que a necessidade de fazer mais um ano de graduação não é compatível com a realidade de muitos estudantes. Ademais, quando as aulas presenciais retornarem, as salas de aulas estarão ainda mais lotadas, o que prejudica o aprendizado.
A questão do ranqueamento na Letras é muito importante. Os calouros entram em Letras ABI (área básica de ingresso) e, durante o primeiro ano, cursam todos as mesmas matérias. No final deste, escolhem uma segunda habilitação (língua estrangeira ou linguística) e são ranqueados de acordo com a média ponderada obtida. Sendo assim, um segundo vestibular. Este processo, em tempos normais, já bastante excludente com alunos que não possuem estrutura ou tempo para dedicar-se à graduação e pretendem seguir as habilitações mais concorridas (exemplos são inglês e linguística), diante da pandemia, é agravado neste cenário, haja vista que muitos sequer conseguem acessar as atividades remotas.
As mães do CRUSP
Outro grupo de estudantes excluídos é constituído pelos moradores do CRUSP. A estrutura dos prédios é bastante precária há anos devido ao descaso por parte do poder público com aqueles que ali moram. Entretanto, a situação atual é ainda mais difícil para eles. Exemplo é a cozinha de lá, que basicamente não funciona e atualmente também não poderia ser utilizada pois geraria aglomeração. Diante disso, a única opção é a alimentação fornecida em marmita pelo Restaurante das Químicas, o qual fica a mais de um quilômetro dos prédios do CRUSP.
O grupo mais vulnerável destes moradores é o das mães. Oficialmente, a USP considera a existência de 12 famílias com criança, mas na realidade este número é aproximadamente quatro vezes maior, segundo relato de uma representante do “Bloco das Mães”³. Interessante que a solidariedade de classe aqui é o único paliativo possível para o completo menosprezo do Estado. Muitos são os estudantes que moram no CRUSP de maneira “clandestina” hospedados nas unidades de outros que foram contemplados. E muitas estudantes mães estão nesta condição. Para elas, é inviável ir retirar os kits de internet ou pegar a marmita nas químicas, uma vez que implicaria em deixar os filhos (na maioria da vezes pequenos) ou sozinhos ou expostos à Covid-19. Apenas as famílias oficializadas, contam com apoio da Guarda Universitária para receber alimentação.
Professores também foram excluídos
Por outro lado, os professores também não receberam nenhum tipo de preparo para ministrar aulas online. A universidade também não disponibilizou nenhum método ou plataforma pela qual fosse possibilitado o contato com os alunos. Dessa forma, cada professor teve que se adaptar às pressas e com pouquíssimo apoio às atividades remotas. Há casos de professores que simplesmente não “apareceram” online para dar aula até o momento. E não falamos aqui de professores irresponsáveis, mas de pessoas com uma vida dedicada à docência, abandonados à sua sorte e que sofrem neste momento.
Qual o papel do Movimento Estudantil nesta situação
O Centro Acadêmico de Estudos Linguísticos e Literários (CAELL) apresenta uma posição muito abstrata acerca da situação. Não se sabe quanto tempo tudo isso pode durar. Pronunciar-se definitivamente sobre se devemos ou não ter aulas online pode colocar a universidade toda em risco de ser totalmente paralisada se a situação prolongar-se por demais. E sabemos que com a condução dada pelos governos nos diversos níveis, podemos supor que levará algum tempo para voltarmos a “normalidade”. É um fato, porém, do jeito que está sendo feito é inaceitável. Voltamos aqui ao ponto em que estávamos antes da pandemia, quando havia a tal normalidade, que não era outra coisa senão a exclusão “normal” da classe trabalhadora, que agora se tornou mais visível. A situação exige retomarmos um programa emergencial, que vá à raiz da questão, que exija ao governo que aloque os recursos necessários para garantir vagas para todos, para garantir uma universidade pública, gratuita e para todos.
A questão não simplesmente é ser favorável ou contrário ao EAD, mas sim defender o acesso de todos alunos – sem exceção – às atividades remotas neste momento. Que a universidade forneça meios (computador, internet, plataforma de ensino, acesso aos livros necessários online, estrutura para os professores) pelos quais os alunos possam se manter em seu curso.
Diante de tantos erros e tanta exclusão, se defendemos não deixar nenhum estudante para trás, torna-se impossível não colocar em questão a suspensão do calendário. As atividades remotas excluem uma massa de estudantes. É preciso uma medida emergencial.
Mas acima de tudo é necessário lembrar que, nestes moldes, a FFLCH continuará a ser excludente para os filhos mais pobres da classe trabalhadora mesmo após a quarentena e que a solução para isso reside numa ruptura com este atual sistema.
Quando em nível federal, estadual e municipal, a dívida pública sangra os orçamentos públicos, tirando dinheiro que poderia ir para a educação e enchendo os bolsos dos parasitas especuladores do mercado financeiro, não se pode parar na exigência de estender o semestre, fornecer chips de internet etc.
É preciso que o movimento estudantil se some à luta pelo fim do pagamento da Dívida Pública; dinheiro público para a educação pública; fim das terceirizações; contratação de professores em regime de dedicação exclusiva, bolsas de auxílio para todos os estudantes de baixa renda; vagas para todos os que precisam morar; restaurante universitário de baixo custo a todos os que precisam comer; pelo fim do vestibular (antes e depois de entrar na universidade) e pelo fim de todo o tipo de ranqueamento ou medida meritocrática.
Isso tudo não pode ser obtido sem, antes de tudo, derrubarmos este governo. Falamos aqui tanto de Bolsonaro quanto de seu títere “arrependido”, João Doria.
- Fora Doria, Fora Bolsonaro, por um governo dos trabalhadores sem patrões e nem generais!
Artigo escrito a partir dos debates do Comitê Fora Bolsonaro – Universidades Públicas.