O estrondoso movimento de protestos de Hong Kong está entrando em seu segundo mês. Apesar da crescente pressão de Pequim e do governo de Carrie Lam, o movimento ainda cresce em termos de militância. Está se elevando dos métodos liberais burgueses ao método da luta de classes. De alguma forma, quando Carrie Lam emergiu da obscuridade para responder à greve geral, ela estava correta ao dizer que o movimento de Hong Kong está caminhando por um “caminho sem volta”.
As massas de Hong Kong estão avançando para superar as agudas contradições sociais criadas pelo sistema capitalista, apesar da grande quantidade de confusão introduzida por todos os tipos de elementos nefastos. No entanto, sem uma liderança política marxista, uma perspectiva de luta de classes e um programa socialista, os grilhões reacionários introduzidos pelos líderes liberais burgueses e reformistas se transformarão em uma barreira absoluta ao avanço dos interesses das massas trabalhadoras de Hong Kong como um todo.
Na segunda-feira, 5 de agosto, as massas de Hong Kong se esforçaram para fazer história em sua tentativa de realizar uma greve geral. A última greve geral plenamente realizada na cidade ocorreu em 1925 contra o calcanhar de ferro do imperialismo britânico.
Desenvolvimentos históricos e circunstâncias materiais, junto à traição dos estalinistas e reformistas, privaram gerações da classe trabalhadora de Hong Kong de uma experiência de luta e organização por um longo período. Nessa etapa inicial de busca por um método e uma estratégia, o movimento atual, infelizmente, encontrou-se em uma perigosa e desorientadora confluência com as palavras de ordem, perspectivas e interesses das figuras públicas imperialistas pró-Ocidente.
O curso da luta até este ponto evidencia a necessidade urgente de que se produza uma acentuada diferenciação de classe.
As circunstâncias históricas que rodearam a greve geral de 5 de agosto
O ritmo histórico de desenvolvimento das potências imperialistas ocidentais proporcionou às suas classes dominantes o tempo, a vitalidade e a capacidade de previsão para criar um sistema de ditadura burguesa, que lhes proporcionou uma ampla gama de ferramentas para salvaguardar sua posição. Isso se agregou ao sistema de democracia burguesa, com poucas variações, mas todas assegurando, em última instância, a absoluta santidade da propriedade privada, do Estado-nação e do “Estado de direito” para manter o livre mercado e a acumulação capitalista, baseados na exploração da classe trabalhadora.
As instituições da democracia burguesa proporcionam à classe dominante um barômetro útil do estado de ânimo das massas, permitindo-lhes avaliar seu espaço de manobra. Como Engels explicou em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado“:
“Enquanto a classe oprimida – em nosso caso, o proletariado – não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala de extrema-esquerda. Na medida, entretanto, em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe trabalhadora”.
Direitos democráticos são exatamente o que o regime de Pequim opta por evitar. O regime está tentando desesperadamente reprimir qualquer tentativa de organização independente da classe trabalhadora. A burocracia do PCC como um todo, a fim de impedir uma revolução da classe trabalhadora chinesa, ou sua própria evisceração por parte das forças imperialistas ocidentais adversárias, só pode assegurar sua própria sobrevivência estabelecendo a contrarrevolução capitalista em seus próprios termos, sem proporcionar quaisquer direitos democrático-burgueses à classe trabalhadora.
Essa é a base não só do governo do regime do PCC sobre Hong Kong, como também, o que é mais importante ainda, a base da classe capitalista local. Esta última desempenha um papel significativo na economia capitalista global da China e proporcionou a injeção inicial de capital na China que levou ao desmantelamento da economia planificada e à restauração do capitalismo. O regime de “Um país, Dois sistemas” em Hong Kong está principalmente preocupado em manter a ditadura da classe capitalista de Hong Kong sobre a cidade, bem como o acesso do mercado chinês ao capital financeiro ocidental. Para a burocracia de Pequim, nunca esteve em questão a outorga de mais concessões às massas de Hong Kong, pois prejudicaria sua necessária ditadura sobre a classe trabalhadora chinesa como um todo.
Compreender as perspectivas acima delineadas é de importância vital para a classe trabalhadora de Hong Kong à medida em que ela entrar em qualquer forma de luta. Qualquer luta por ganhos genuinamente democráticos e econômicos coloca inevitavelmente a necessidade de métodos baseados na classe, e para espalhar a luta à China continental.
O caminho sinuoso à greve de 5 de agosto
As figuras públicas liberais do atual movimento não têm tal compreensão, mas gozam de muita atenção e cobertura na mídia burguesa. Ainda pior, a liderança trabalhista reformista, supostamente “anti-establishment” (em Hong Kong, isso significa “anti-Pequim”) buscou negociar uma tática que satisfaça tanto o Estado de direito estabelecido por Pequim e pela classe capitalista de Hong Kong, quanto os interesses do imperialismo ocidental. Eles refletem o fato de que os burgueses de Hong Kong têm interesses em comum com os burgueses chineses em manter a implacável exploração dos trabalhadores de Hong Kong e do continente.
Durante a erupção inicial do atual movimento, no início de junho, que teve inevitavelmente uma natureza espontânea, a convocação de uma greve geral já estava presente. Sua influência se viu reforçada pela recusa terminante de Carrie Lam de recuar diante das manifestações pacíficas de milhões de pessoas em junho. Até a presente data, mesmo antes das greves de 5 de agosto, as massas de Hong Kong já haviam desferido golpes tangíveis nos patrões. De acordo com o Financial Times, as atividades comerciais do setor privado da cidade já caíram ao ponto mais baixo desde a última crise financeira mundial.
Diante de um apelo tão forte à luta de classes, em vez de organizar seriamente uma greve geral, a Frente Civil de Direitos Humanos, de caráter liberal, apoiou duas vezes a convocação de uma e depois retirou seu apoio. A Confederação de Sindicatos de Hong Kong (HKCTU), sob a liderança de Carol Ng, arvorando-se como uma “genuína liderança sindical” contra a Federação de Sindicatos de Hong Kong (HKFTU) controlada por Pequim, preferiu caracterizar repetidamente a greve geral como um “dia de feriado em massa”, isto é, os trabalhadores necessitavam da permissão de seus empregadores para fazer greve. Esta é a mesma explicação que a HKCTU ofereceu à classe trabalhadora no período que antecedeu à tentativa de greve geral de 5 de agosto.
No final da greve de 5 de agosto, Carol Ng disse que 35.000 trabalhadores aderiram à greve, o que, segundo ela, correspondia a 1/3 de seus membros. No entanto, a filiação da HKCTU, desde 2017, parece ser de 140.000 membros. Embora o número não seja insignificante, a HKCTU não conseguiu mobilizar a grande maioria de suas forças. Para mudar isso, é necessário não só convencer mais trabalhadores sindicalizados e desorganizados para que se unam, como também para que formem um partido de massas da classe trabalhadora com um programa socialista de luta, claramente oposto ao capitalismo e aos patrões, e disposto a lutar além dos limites das leis estabelecidas pelo PCC e pelos capitalistas de Hong Kong.
Perspectivas suicidas dos liberais
As figuras estudantis mais liberais e pequeno-burguesas, como Joshua Wong, o mais famoso co-fundador do Partido Demosisto, desempenharam um papel ainda mais destrutivo, convocando repetidamente a intervenção estadunidense, europeia e japonesa. E isso apesar de Trump ter caracterizado abertamente o movimento de Hong Kong como “motins”, provavelmente para aplacar momentaneamente a China na atual guerra comercial. Wong, além disso, agradeceu abertamente a Presidente Democrata da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, por suas declarações endossando a “Lei dos Direitos Humanos e da Democracia de Hong Kong”, patrocinada por Chris Smith (R-NJ) , que é um imperialista reacionário antiaborto e anti-LGBT.
Na ocupação, em junho, do prédio do Conselho Legislativo, onde a bandeira colonial britânica foi hasteada, Wong afirmou que foi uma medida desesperada porque “estávamos tentando tudo”. Como hastear a bandeira colonial poderia ajudar ninguém sabe. Esperavam eles que os imperialistas britânicos iam enviar a marinha para proteger os direitos democráticos em Hong Kong? Como evidenciam as declarações de Trump, os direitos do povo de Hong Kong são apenas um pequeno detalhe na luta entre potências imperialistas. Além do mais, eles não haviam “tentado tudo”. Não fizeram nenhuma tentativa séria de mobilizar a classe trabalhadora. Isso foi antes de que se tentasse a greve geral.
A experiência da greve de 5 de agosto
A greve geral de 5 de agosto foi finalmente realizada através do prisma distorcido da liderança liberal. Os esforços mais valentes devem ser atribuídos aos trabalhadores do aeroporto. 3.000 comissários de bordo, trabalhadores da logística em terra e outros tomaram um dia de licença por enfermidade em massa para paralisar o aeroporto internacional de Hong Kong. Foi esta a conquista mais significativa do dia e deveria ter sido encorajada muito além de se observar um dia de licença por enfermidade. Deveria ter sido intensificada para se tornar uma greve ativa que ignorasse os interesses dos empregadores, culminando na ocupação e controle das instalações pelos trabalhadores.
Foi feita uma tentativa de fechar as estações do metrô, mas com resultados mistos. É verdade que vários trabalhadores do MTR fecharam as estações onde trabalhavam, e apareceram manifestantes individuais, que não trabalham nas estações, que interrompiam o fechamento dos vagões para deter os trens. A crédito desses manifestantes, horas de trabalho de propaganda preparatória foram realizadas nas estações, mas fracassaram em ganhar a maioria dos trabalhadores do metrô. Isso era necessário para fechar completamente o MTR e dar à greve a legitimidade necessária a todos os trabalhadores que se deslocam diariamente. O fracasso em fazê-lo recai mais uma vez na falta de esforços da liderança do sindicato com relação à discussão e preparação para um voto pela greve no local de trabalho.
O fracasso da liderança trabalhista em assumir de forma consistente a ação consciente, militante e organizada da classe significou que o papel da ação militante recaiu sobre os jovens, que não tinham familiaridade com os métodos e palavras de ordem da luta de classes. Diante da brutal repressão policial, das duras balas de borracha e dos gases lacrimogêneos, a palavra de ordem “Recuperar Hong Kong, a Revolução de nosso tempo” se popularizou. Essa palavra de ordem ambígua, no entanto, tem alguma história. Foi levantada inicialmente pelo “localista” de extrema-direita, anti-chinês, Edward Leung, durante sua candidatura a um assento no Conselho Legislativo em 2016. A utilização da palavra de ordem proporcionou munição ao regime do PCC. Na segunda conferência de imprensa realizada pelo Escritório de Assuntos de Hong Kong e Macau do Conselho de Estado, o porta-voz Yang Guang aproveitou essa ambiguidade e perguntou “para quem essas pessoas estão reclamando Hong Kong?” Estava sugerindo que o movimento buscava submeter Hong Kong ao imperialismo ocidental mais uma vez. Isso, junto a alguns indivíduos que estavam pintando com spray palavras odiosas como “Gafanhotos” e “locustas”, apenas aprofunda a percepção da classe trabalhadora chinesa de que todo o movimento é antagônico ao povo chinês como um todo, jogando-a nas mãos de Pequim.
Se se permite que essa percepção continue, e figuras reacionárias estão sendo incessantemente apoiadas a falar em nome do movimento, então as preciosas lições e experiências organizacionais que as massas de Hong Kong obtiveram da luta cotidiana contra o poder estatal (ou seja, como lidar com o gás lacrimogêneo, como evitar o reconhecimento facial utilizando lasers e assim por diante) não se espalharão para além das fronteiras da cidade e não beneficiarão a classe trabalhadora do mundo em suas lutas futuras. Simplesmente serão desperdiçadas.
É precisamente através desses desenvolvimentos que Pequim emitiu sua proibição de informar sobre Hong Kong dentro do continente. Servem para melhorar sua propaganda de que o movimento em Hong Kong, como um movimento patrocinado pelo imperialismo ocidental, odiando os chineses, é completamente antagônico aos interesses da classe trabalhadora chinesa.
Um caminho para a vitória ou um caminho para a derrota
O governo chinês está tentando evitar uma intervenção direta do EPL [Exército Popular de Libertação] por enquanto. Isso arriscaria espalhar o movimento ao continente, que é precisamente o que Pequim quer evitar. No entanto, é improvável que Pequim vá optar por fazer concessões econômicas e políticas ao movimento. Durante a segunda conferência de imprensa do HKMAO, um porta-voz do PCC atribuiu a grande presença de jovens nos protestos de Hong Kong, não às terríveis contradições econômicas, mas à “pobre educação patriótica” ou à “falta de interação dos jovens de Hong Kong com o restante da China e do mundo”. Isso é necessário porque a ficção de que “Um país, Dois sistemas” trouxe prosperidade às massas de Hong Kong necessita ser mantida. A China tampouco pode se dar ao luxo de dar um exemplo de concessão de reformas democrática ou de bem-estar social a Hong Kong quando o capitalismo também está mergulhando o restante do país nas mesmas contradições sociais que acontecem em Hong Kong.
A polícia de Hong Kong será provavelmente o punho blindado contra o movimento quando este mostrar algum sinal de declínio. O governo de Hong Kong já comprou caminhões antimotim da França, equipados com canhões d’água. A polícia de Hong Kong, dirigida em conjunto pelo superintende-chefe de origem britânica, Rupert Dover, está anunciando abertamente o uso de uma tecnologia de coloração em seu Facebook oficial para avisar que qualquer manifestante pode ser manchado com tinta que ajudaria a polícia a identificá-lo nos dias seguintes.
Assim, Pequim e o governo de Hong Kong aguardarão o seu momento, aumentando constantemente a pressão através da polícia de Hong Kong, e contando com as figuras públicas liberais e com a falta de liderança na luta de classes para conduzir o movimento à confusão e desmoralização. Depois disso, uma feroz repressão política será desencadeada.
A única forma de se sair desse cenário é ampliando o movimento à China continental. Os marxistas acolhem os apelos por mais greve e a disposição das massas de continuar a luta, mas a luta necessita não somente alcançar um nível mais alto de organização, com a formação de um comitê de greve de representantes eleitos por todos os trabalhadores e jovens de Hong Kong que estão participando da luta, mas também ser ampliada ativamente além de Hong Kong.
Quaisquer democratas consistentes, jovens e socialistas em Hong Kong devem começar imediatamente a propaganda, em mandarim chinês, dirigida às massas chinesas mais amplas, para combater as calúnias do governo, e incluir claramente as necessidades econômicas diárias dos trabalhadores chineses do continente em seu próprio programa e demandas. Também necessitam criticar abertamente e marginalizar sua atual liderança liberal e reformista, para conduzir o movimento a uma luta de classes consistente com um programa socialista que forneça uma solução para moradia, renda e todas as crises econômicas que afligem o povo trabalhador do leste da Ásia. Todos os sentimentos anti-chineses, anticomunistas ou pró-imperialistas ocidentais devem ser imediatamente repudiados e descartados, pois apenas levarão o movimento à destruição.
Tradução de Fabiano Leite.