Lula, o capitalismo e a adaptação do MST

Na entrevista de Lula ao Jornal Nacional, realizada no dia 25 de agosto, um dos temas que acabou ganhando projeção foi uma rápida menção ao MST. Criticando ações do passado feitas pelo movimento, em especial as ocupações de terra, a apresentadora do Jornal Nacional, Renata Vasconcellos, procurou associar a figura de Lula e do PT às ocupações promovidas pelo MST. Lula respondeu:

“O MST está fazendo uma coisa extraordinária: está cuidando de produzir. Não sei se você sabe, o MST, hoje, tem várias cooperativas e o MST é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. Você tem que visitar uma cooperativa do MST, Renata. Você vai ver que aquele MST de 30 anos atrás não existe mais”.

Durante os governos Lula e Dilma, ao mesmo tempo que houve a queda na efetivação de novos assentamentos de reforma agrária, observou-se também a prioridade ao financiamento e políticas públicas benévolas ao agronegócio exportador e à regularização dos transgênicos.

No caso do MST, observou-se de fato um giro em sua postura, minimizando o papel da mobilização política, para um foco na produção dos assentamentos por ele organizados. Tratou-se de uma adaptação à lógica econômica capitalista existente e à busca por caminhos de financiamento institucionais. Essa transformação é explicada por um de seus principais dirigentes, João Pedro Stédile, quando afirma:

“No início do MST, durante a crise da década de 1980, a meta principal do movimento era terra para trabalhar e criar as famílias. Naquele âmbito a visão era até um pouco ingênua: terra para quem nela trabalha. É um princípio justo, porém insuficiente para resolver os problemas da produção de alimentos. Na medida em que o MST foi evoluindo, fomos adequando nosso programa, fomos incorporando a agroecologia”.

A mudança tem como consequência colocar o MST no sentido de se ocupar com a concorrência no mercado com os grandes produtores do agronegócio. O setor de produção do MST organiza-se principalmente em cooperativas e associações, que possuem agroindústrias de pequeno e médio porte. Embora muitas dessas cooperativas e associações ainda se organizem em torno de pequenas propriedades e mesmo da agricultura familiar, há também a aposta em grandes empreendimentos.

O MST se adaptou ao processo de concentração fundiária, não mais se ocupando de combatê-lo. Um exemplo disso foi a entrada de cooperativas ligadas ao MST no mercado de capitais, com o registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de fundo baseado em “Certificados Recebíveis do Agronegócio”.

Trata-se de uma espécie de “papéis” de mercado futuro das safras e da produção das cooperativas, com títulos que podem ser negociados na bolsa. Nesse processo, gerenciado por uma corretora, os interessados podem comprar os títulos e tem, como retorno, uma remuneração pré-fixada paga com o lucro da venda dos produtos agrícolas.

Transformação do MST

Fundado em 1984, o MST foi uma resposta ao processo de transformação capitalista que vinha ocorrendo no campo, tendo como principal reivindicação a reforma agrária. Essa luta, por um lado, tinha um caráter reivindicativo para suprir necessidades imediatas dos trabalhadores. Por outro, tratava-se de questionar a forma de propriedade do campo sustentada pelos interesses do capital financeiro.

Era um movimento que adquiriu caráter de massas, operando com base nas profundas contradições da relação entre a cidade e o campo no Brasil. No entanto, com o passar dos anos, o MST passou a se adaptar aos limites impostos pelo Estado e a enfrentar as consequências da profunda transformação social ocorrida no campo com o desenvolvimento do agronegócio. Parte importante desse processo ocorreu sob os governos Lula e Dilma, que por um lado frearam a luta pela reforma agrária, e por outro incentivaram o desenvolvimento do capital financeiro no campo.

Dessa forma, o MST passou a ser cada vez mais um gerente de assentamentos, cooperativas e interesses de pequenos proprietários. Sua principal bandeira do passado, a reforma agrária, passou assim a ser considerada demasiada “ingênua”, como nos esclareceu João Pedro Stédile.

Reforma agrária e desenvolvimento desigual e combinado

O MST declarava a partir de seu 1° Encontro Nacional, em Cascavel, em 1984:

“Queremos ser produtores de alimentos, de cultura e conhecimentos. E mais do que isso: queremos ser construtores de um país socialmente justo, democrático, com igualdade e com harmonia com a natureza”.

Tratava-se de uma organização cujo centro estratégico sempre esteve no desenvolvimento econômico por dentro das instituições. Apesar disso, o caráter de massas que adquiriu e a iniciativa que demonstrava em suas mobilizações despertou o desespero dos capitalistas do campo e da cidade.

Tratava-se de uma contradição que determinou a sorte do MST. A reforma agrária é uma reivindicação democrática, ou seja, uma tarefa assumida pela burguesia nos processos revolucionários que classicamente a levaram ao poder da sociedade. Com essa medida, essa classe buscava estabelecer os suprimentos necessários para alimentar as cidades e garantir as condições para a produção de tipo capitalista.

Acontece que o Brasil não é um país capitalista e nem tem uma burguesia de tipo clássicos. Trata-se isso sim de uma nação com a economia dominada desde sua independência. Primeiro pela Inglaterra e depois pelos EUA. E sua classe dominante nunca se desenvolveu como uma burguesia independente e imperialista, sendo, pelo contrário, sempre subserviente aos capitalistas europeus e americanos e temerosa das massas populares.

A esperança do MST de promover a reforma agrária por vias estatais e pacíficas esbarrou justamente em sua incompreensão do caráter da economia brasileira e do tipo de classe dominante do país. O caso brasileiro, conforme explicado por Leon Trotsky quando se refere aos países dominados, se enquadra na lei do desenvolvimento desigual e combinado, em que cabe ao proletariado realizar as tarefas democrático-burguesas que a própria burguesia é incapaz e tem horror de realizar.

Capitalismo como horizonte

Para o MST, essa luta sempre esteve limitada justamente ao desenvolvimento econômico, com um forte viés nacionalista, ainda que eventualmente colocasse o socialismo em uma perspectiva distante. Ainda assim, mesmo essa perspectiva etapista se viu limitada pela subordinação à dinâmica do capitalismo brasileiro por parte do MST.

Em meados dos anos 1990, o MST passou a buscar a viabilidade econômica dos numerosos assentamentos conquistados nas suas lutas. Essa perspectiva exigiu do movimento esforços no sentido de pensar a forma de produção agrícola e pecuária, paulatinamente colocando em segundo plano o combate ao problema da distribuição fundiária. Essa perspectiva significou adaptar sua atividade a coordenação a produção de seus assentamentos diante das pressões do mercado internacional de commodities.

Nesse sentido, MST se contrapõe ao paradigma agroexportador defendendo a produção de alimentos pela agricultura familiar, de forma agroecológica. Se tratava, então, de criticar as ideias e a prática trazidas pela “Revolução Verde”, com uso de agrotóxicos, sementes híbridas e transgênicas e monoculturas. O debate principal passa a ser a qualidade do produto a ser produzido para a venda, não mais a exploração capitalista e seu impacto sobre a vida dos trabalhadores no campo.

O MST passa a apostar no crescimento da formalização institucional com a criação de pessoas jurídicas que viabilizem as negociações comerciais e de compras governamentais, como as cooperativas e associações de assentados. O enfrentamento organizado ao latifúndio torna-se um elemento quase retórico no programa da organização do MST, esvaindo-se como principal objeto da organização do movimento. Essas ações, amplamente desenvolvidas durante os governos petistas, mostram a opção pela lógica da “economia solidária”, adaptada aos nichos de mercado, inseridos na lógica capitalista e sem ameaçá-la.

Uma tarefa da revolução socialista

Portanto, o MST alterou seu eixo da luta pela reforma agrária para o eixo de buscar espaço no mercado para seus negócios. Diante da institucionalização dos assentamentos, ao contrário de um confronto, busca-se lutar por políticas estatais que contribuam para a viabilidade econômica dentro da economia capitalista atual. Até mesmo as ações políticas do movimento passam a estar sujeitas às pressões do mercado.

Lula acertou ao afirmar na sabatina do Jornal Nacional que o MST de décadas atrás não existe mais. Essa constatação precisa ser analisada pelos trabalhadores brasileiros, do campo e da cidade. A adaptação do MST ao mercado financeiro e à economia solidária evidenciam que a luta pela reforma agrária passa pela ruptura com o capitalismo e com a conciliação de classes.

Se Lula e João Pedro Stédile consideram a reforma agrária “ingênua” demais, esse é um problema deles. Essa ainda é uma tarefa fundamental para a superação da dominação imperialista e para a luta contra o capitalismo. A reforma agrária no Brasil se trata de uma tarefa da revolução socialista, a ser realizada pelas mãos trabalhadores do campo e da cidade.