Memórias sobre a Ditadura Militar e a questão da anistia ontem e hoje

O evento “Roda de Conversa: Memórias Sobre a Ditadura Militar e a Questão da Anistia Ontem e Hoje” foi um surpreendente sucesso. Trinta pessoas se reuniram na Autoria Casa de Cultura, no Centro de Juiz de Fora, no último sábado de maio (31). O espaço foi palco de um intenso bate-papo a partir das memórias e reflexões atuais de Colatino Soares Lopes Filho, uma das vítimas de crimes de Estado durante os anos de chumbo no Brasil.

O evento foi introduzido por Colatino Soares Lopes Filho, de 76 anos. Ele foi presidente da União Juizforana de Estudantes Secundaristas (Ujes) aos 16 anos, em 1966. Na época, filiou-se ao PCB. Porém, no ano seguinte rompe com a política de imobilidade desse partido e, com outros estudantes, une-se à Aliança Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella.

Sob a direção de Mariguella, montaram duas células guerrilheiras em Minas Gerais, uma em Juiz de Fora e outra em Belo Horizonte. Produziram dois jornais na época, “O Porrete” e “A Luta”, que distribuíram aos operários nas fábricas, e mobilizaram os secundaristas. Em 1968, Colatino participou da “Marcha dos 100 mil” no Rio de Janeiro. No mesmo ano, as células caem, ele e seus camaradas são torturados por meses e, depois, Colatino é condenado a um ano de prisão.

Mesmo depois de libertado, Colatino continuou monitorado e assediado pelo regime dos militares até a Lei da Anistia de 1979. Só então pôde realizar novamente uma atividade política livre, ainda que tendo que conviver com torturadores e apoiadores da Ditadura Militar que andavam também livre e impunemente pelas ruas e estabelecimentos de Juiz de Fora.

Após o relato de Colatino e de suas reflexões sobre o pedido de anistia que os bolsonaristas promovem hoje, seguiu-se um intenso debate. O evento foi mediado por Guto Cardoso, professor de inglês em Juiz de Fora e um dos organizadores do evento. As contribuições ao debate foram de variadas vertentes políticas. 

Houve aqueles que argumentaram sobre a maturidade da “democracia” brasileira e a impossibilidade de um golpe ser vitorioso hoje. Também foram feitas contribuições que problematizaram o fato de que, no período recente, a direita tem conseguido retroceder direitos democráticos e aumentar o caráter repressivo do Estado sem a necessidade de golpes. 

Ao vencerem os processos eleitorais com uma plataforma demagógica, figuras da direita – tanto a bolsonarista quanto a dita moderada – valem-se de mandatos obtidos nas urnas para promover contrarreformas sociais e constitucionais, e para validar a repressão e a criminalização de movimentos sociais e dos setores mais desorganizados da classe trabalhadora.

Outra contribuição para o debate, apresentada por Johannes Halter durante o evento, destacou que, longe de ser uma democracia madura, o que vive-se no Brasil é uma semi-democracia, com uma série de aspectos autoritários e antidemocráticos, que servem para os ricos, seus políticos e colaboradores manterem-se no poder. Isso deve-se à forma como se pactuou a atual Constituição de 1988 e a atual Nova República, saídas ambas de uma conciliação em 1979, onde não apenas anistiou-se os torturados e perseguidos, como também os torturadores e seus apoiadores desde 1964.

São os herdeiros políticos e econômicos dos torturadores, de seus agentes e de seus apoiadores aqueles que utilizam do mandato nas urnas para agir contra os trabalhadores e jovens. São eles também que, quando não conseguem vencer nas urnas e por mil truques, tentam a via dos golpes de Estado.

Por isso, uma das ideias centrais acumuladas no debate foi a importância de exigir a condenação dos golpistas de 08 de janeiro de 2023. Não deve-se cometer o mesmo erro de 1979, quando perdoou-se os torturadores e seus apoiadores, os mesmos que estiveram envolvidos e que foram o modelo dos golpistas de 2023. Não pode-se cair no erro de 1955, quando o então presidente JK concedeu anistia aos que tentaram o golpe naquele ano e que depois o realizaram em 1964.

Outra ideia muito forte debatida foi a importância de evitar a armadilha de defender a Nova República, suas instituições e a constituição saída do pacto da Lei da Anistia de 1979. Isso porque são produtos da conciliação com os torturadores e os empresários que os apoiaram. Não há nenhuma obrigação de apoiar o status quo para condenar os bolsonaristas.

O que há de positivo na constituição deve ser defendido, mas sem a necessidade de defender junto o que há de negativo e contra os trabalhadores. E o que há de positivo são algumas liberdades democráticas e direitos civis, os quais todos dias a direita busca limitar e destruir, quando estão fora e quando estão dentro dos governos. Tanto a direita que se apresenta como radical quanto a dita moderada. São duas faces da mesma moeda, e uma se alimenta da outra.

Justamente porque rejeita-se os aspectos da transição da Ditadura para a Nova República que pode-se exigir com muito mais força que os golpistas sejam condenados. A atual República, suas instituições e sua constituição cumprem o papel de garantir os interesses dos patrões e dos bilionários contra a maioria trabalhadora.

Não apenas isso: com essa postura radical e de ruptura, os trabalhadores e os estudantes podem dizer que querem outra constituição e outra república. Uma constituição e uma república que – diferente das atuais – não concilie com os golpistas e com os capitalistas, que sempre usam de golpes quando seus negócios estão ameaçados.

Uma constituição e uma república baseadas não em um pacto entre as lideranças dos capitalistas e as lideranças dos trabalhadores – como a atual -, em que os interesses dos trabalhadores sempre são subordinados aos interesses dos bilionários, mas sim nos interesses da classe trabalhadora e dos explorados, contra os interesses dos capitalistas e dos bilionários.

Tal constituição e tal república apenas são possíveis rompendo com os capitalistas, rompendo com os milicos que são seus agentes, rompendo com as instituições que eles montaram para explorar a maioria do povo trabalhador. Portanto, tal constituição e tal república passam necessariamente pela ruptura com o status quo e por uma revolução comunista no Brasil e no mundo.

Uma conclusão do evento foi de que essa convicção levou a fração mais radicalizada da esquerda da década de 1960 a romper com o imobilismo e o reformismo do PCB. Foi o que levou um jovem de 16 anos de Juiz de Fora, Colatino Soares Lopes Filho, a liderar a juventude da cidade contra a Ditadura e os capitalistas, quando presidiu a União Juizforana dos Estudantes Secundaristas (Ujes). Foi o que o levou depois a aderir à luta armada e a uma das células da ALN de Carlos Marighella.

Se a tática de guerrilha aplicada durante a Ditadura não foi e não é uma alternativa que leve à vitória, a geração de trabalhadores e jovens de hoje precisa escolher a melhor forma de enfrentar os bilionários, seus apoiadores e suas ferramentas de dominação. Assim como a juventude da década de 1960, é preciso em primeiro lugar romper com o imobilismo político. Se na época da Ditadura Militar essa postura era expressa pelo PCB e sua política de conciliação com os capitalistas e de reforma do capitalismo, hoje o imobilismo se expressa pelas políticas do PT, do PCdoB e do PSOL que integram o governo de união nacional com a burguesia liderado por Lula e subordinam os interesses dos trabalhadores aos dos patrões.

Diante dessa situação, é preciso transformar o senso de urgência sobre a gravidade da situação em um maior nível de organização, de articulação e de radicalidade política entre aqueles que querem romper com a sociedade atual para construir uma sociedade sem explorados e sem exploradores.