Notas complementares sobre o fim da ordem de Yalta e Potsdam

Para sermos exatos, foram três conferências que reuniram os três líderes das maiores nações em guerra – os EUA, o Reino Unido e a União Soviética. A primeira dessas reuniões, que abriu caminho para os acordos posteriores, aconteceu em dezembro de 1943, quando a URSS já havia derrotado os nazistas em Stalingrado e se preparava para invadir a Alemanha. Ressalte-se que, por exigência dos aliados, Stalin fez aprovar a dissolução da Internacional Comunista (IC ou Comintern) em maio de 1943, formalizando o acordo de fim da luta pela revolução internacional – que, na prática, já havia sido finalizada com a política de “socialismo em um só país” defendida por Stalin desde dezembro de 1924 e aprovada no congresso do Partido Comunista (PC) da União Socialista das Repúblicas Soviéticas (URSS) em 1927, com a Oposição de Esquerda excluída e Trotsky expulso.

Conhecida como Conferência de Teerã, reuniu Roosevelt, Churchill e Stalin. Apesar de não ter nenhum acordo formal, começou a se desenhar neste momento o acordo entre o imperialismo e a burocracia soviética de “divisão do mundo” em esferas de influência e a defesa do status quo existente em cada uma das esferas.

Do ponto de vista proletário e comunista, foi um acordo contrarrevolucionário que, na prática, significava que os partidos comunistas no mundo inteiro se absteriam de organizar e dirigir revoluções contra o capital na esfera de influência do capitalismo, que era a maioria do mundo.

Após esta conferência, reuniu-se a Conferência de Yalta (na Crimeia, sob controle soviético, em fevereiro de 1945). Nela se delinearam, em grandes linhas, o acordo de divisão dos países após a guerra. Entre esses termos, estava a definição de que a Grécia permaneceria sob controle do imperialismo. O resultado foi que, apesar de os guerrilheiros comunistas terem expulsado os nazistas, as tropas soviéticas permitiram que os ingleses invadissem a Grécia e iniciassem o massacre dos comunistas. Posteriormente, apesar de várias tentativas de acordo, os comunistas retomaram a luta armada e começaram novamente a tomar o país, apesar dos ingleses. No entanto, em 1949, Stalin ordenou que depusessem as armas, o que levou à divisão e derrota do partido.

Este acordo é finalizado na Conferência de Potsdam (realizada na cidade alemã de Potsdam, entre julho e agosto de 1945). O resultado não foi um “tratado”, mas uma série de enunciados e declarações que explicitavam a “divisão do mundo” e o acordo entre a burocracia soviética e o imperialismo. Em termos gerais, o fato de a União Soviética ter ganho a guerra (as tropas soviéticas podiam ter ocupado toda a Alemanha, mas não o fizeram em respeito ao acordo efetuado) levou a que obtivessem “ganhos” territoriais com os acordos, como as repúblicas bálticas, o acesso ao Mar Negro, parte da antiga Polônia, entre outros. Mas tudo isso em troca do apoio de Stalin na manutenção do capitalismo na Europa Ocidental e no restante do mundo.

Após a Segunda Guerra Mundial, como antes, o principal “rival” do imperialismo dos EUA era o seu próprio proletariado e o proletariado do mundo inteiro. A guerra aos comunistas, levada a nível mundial, era a forma prática de levar esse combate nos EUA e no mundo. O macartismo praticado de 1950 a 1957, foi o exemplo mais direto dessa política imperialista. As guerras da Coreia e do Vietnã, além do golpe na Malásia com o massacre de centenas de milhares de comunistas, foram seus exemplos externos mais evidentes.

Mas o maior exemplo disso foram as revoluções que se espalharam pelo mundo. Trotsky escreveu em 1938:

“A passagem definitiva da Internacional Comunista para o lado da ordem burguesa e seu papel cinicamente contrarrevolucionário no mundo inteiro, particularmente na Espanha, França, Estados Unidos e outros países ‘democráticos’, criou extraordinárias dificuldades suplementares para o proletariado mundial.

A orientação das massas se determina, por um lado, pelas condições objetivas do capitalismo em putrefação; por outro, pela política traidora das velhas organizações operárias. Desses dois fatores, sem dúvida, o primeiro é decisivo: as leis da história são mais fortes que os aparelhos burocráticos. Por mais diversos que sejam os métodos dos sociais-traidores (da legislação de Léon Blum às falsificações judiciárias de Stalin), jamais conseguirão quebrar a vontade revolucionária do proletariado. Cada vez mais, seus esforços desesperados de deter a roda da história mostrarão às massas que a crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela IV Internacional.” (Trotsky, Programa de Transição)

Após a Segunda Guerra, com a destruição massiva das forças produtivas e um sofrimento imenso do proletariado, as condições políticas continuavam as mesmas. A vitória do proletariado russo sobre o nazismo – apesar de Stalin – levou ao auge a força política “cinicamente contrarrevolucionária” do stalinismo, do partido comunista da URSS e de todos os partidos satélites em todo o mundo. Em defesa da “pátria socialista”, a ideologia do nacional-comunismo levava a traição de todas as formas. O Exército Vermelho para nas fronteiras da Grécia enquanto o Partido Comunista Grego, que tinha organizado a liberação da Grécia das tropas nazistas, é esmagado pelas tropas inglesas.

Churchill não tinha “forças” para combater o nazismo na Europa, mas fez “frente única” com eles na Grécia contra os comunistas. Um acordo é feito nas Conferências de Yalta e Potsdam, e o Exército Vermelho, em vez de ocupar toda a Alemanha, para e espera a chegada das tropas americanas para “dividir a Alemanha”, conforme acordado.

Nos países ocupados pela Rússia Soviética, por meio do Exército Vermelho, tenta-se organizar “democracias populares” que não seriam socialistas. Contudo, a fuga das burguesias nacionais e a mobilização das massas levam à expropriação do capital nesses países, apesar de Stalin e dos partidos comunistas. Em todo o mundo, revoluções explodem, e os partidos comunistas tentam contê-las a todo custo.

Ted Grant relata (com humor) que o PC Chinês queria, a todo custo, fazer um acordo com o Kuomintang de Chiang Kai-shek, mas não conseguia alcançá-lo porque ele “fugia muito rápido”. O Exército Vermelho e o Partido Comunista de Mao, formado em duros anos de combate contra o Kuomintang, acabam por enquadrar a revolução e formar um Estado burocrático na China, em 1949.

As revoluções anticoloniais explodem por todo o mundo e, na falta de partidos comunistas que as dirigissem, um “nacionalismo” se espalha, refletindo um sentimento anti-imperialista. Em muitos países, o capital foi expropriado; em outros, conseguiu-se apenas a libertação nacional, resultando em países semi-coloniais e semi-independentes – como os regimes que caracterizam tão bem a América Latina, que se tornou formalmente independente no século XIX.

Uma das partes importantes destes acordos foi a fundação do Estado de Israel como um enclave imperialista na região da Palestina para conter e reprimir as revoluções no Oriente Médio, papel que ele vem cumprindo desde então, como mostra o atual massacre sendo perpetrado em Gaza.

O problema é que a 4ª Internacional, decapitada pelo assassinato de Trotsky, sob a pressão da pequena burguesia e dos partidos contrarrevolucionários, abandonou o seu programa e adotou uma política de que a contradição principal era entre o imperialismo e o “campo socialista”. Revisaram Marx e Trotsky e, com isso, os partidos da 4ª Internacional ficaram sem o seu “lugar” histórico. Sua tarefa principal consistia em ajudar o stalinismo (e a socialdemocracia) a cumprir até o fim o seu papel, que deixava de ser “contrarrevolucionário” e passava a ser considerado “bonapartista”  para alguns, mas de toda a forma, precisando defender a “revolução” para não ser esmagado. E ainda diziam que Trotsky havia errado em suas previsões.

Em vez de reconhecer que existia um combate duro e difícil contra o stalinismo reforçado, que só podia ser feito procurando o caminho do proletariado, ajudando-o a superar suas direções traidoras, preferiram o caminho mais fácil: empurrar o stalinismo (ou suas frações) na direção da revolução. A revolução na China e a expropriação do capital nos países do Leste Europeu, para aqueles que haviam esquecido o “Programa de Transição”, eram um “mistério”.

E Trotsky havia escrito no “Programa de Transição”:

“A todos os partidos e organizações que se apoiam nos operários e nos camponeses e falam em seu nome, nós exigimos que rompam politicamente com a burguesia e entrem no caminho da luta pelo governo operário e camponês. Nesse caminho, prometemos um apoio completo contra a reação capitalista. Paralelamente, desenvolvemos uma incansável agitação em torno às reivindicações transitórias que deverão, do nosso ponto de vista, constituir o programa do ‘governo operário e camponês’.

É possível a criação de tal governo pelas organizações operárias tradicionais? A experiência anterior mostra-nos, como já vimos, que isso é, pelo menos, pouco provável. Entretanto, não se deve negar categórica e antecipadamente a possibilidade teórica de que, sob a influência de uma combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, quebra financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluídos aí os stalinistas, possam ir mais longe do que queriam no caminho da ruptura com a burguesia. Em todo o caso, uma coisa está fora de dúvida: se mesmo essa variante pouco provável se realizasse um dia em algum lugar, e um “governo operário e camponês”, no sentido acima indicado, fosse estabelecido de fato, ele somente representaria um curto episódio em direção à verdadeira ditadura do proletariado.”

Na falta de uma direção revolucionária, esse episódio, sem dúvida, não foi exatamente “curto” — e de hipótese pouco provável, tornou-se exatamente na variante dominante em muitos locais onde a revolução conseguiu tomar o poder (países do Leste Europeu, China, Cuba, Vietnã). Em outros locais, os nacionalistas que dirigiam a revolução conseguiram contê-la nos limites do nacionalismo, pagando caro por isso posteriormente (como Nasser no Egito, o Partido Baath na Síria e no Iraque, etc.).

O “bloco stalinista” não era um verdadeiro “bloco”. Onde existia qualquer vestígio de independência, como na China ou na Iugoslávia, a política do “nacional-comunismo” colocava os “vizinhos socialistas” em feroz oposição entre si. A competição dentro do “bloco” era maior que a “competição” com o imperialismo! Cada qual tratava de montar o seu próprio “aparelho” internacional, com seus próprios partidos “comunistas”, em oposição ao partido “russo” (apelidados de revisionista). E cada um buscava o melhor acordo com o imperialismo que melhor garantisse a sua sobrevivência e seu acesso ao mercado mundial. Assim, não é nada surpreendente a visita de Nixon à China, em 1972, e o começo da abertura do país ao mercado, processo que conduziu à situação atual.

As conferências de Yalta e Potsdam, que selaram o acordo entre a burocracia soviética , organizaram uma nova ordem mundial. Essa ordem dependia, de um lado, do financiamento dos EUA para “reconstruir” o capitalismo, e de outro, da ajuda do stalinismo para conter a revolução. Assim se explica a “Guerra Fria”, que mantinha um “telefone vermelho” em que os presidentes dos dois países normalmente se falavam para evitar que os “conflitos” degenerassem em uma verdadeira guerra.

As guerras localizadas, essas sim, continuavam e serviam, por um lado, para manter a economia funcionando (destruindo continuamente forças produtivas: foram jogadas mais bombas no Vietnã que em toda a Segunda Guerra Mundial) e, por outro, como justificativa política para manter a repressão e a miséria nos “Estados socialistas” que só “sofriam” destes males em virtude da “pressão do imperialismo”. Essa pressão, real, acabaria levando à derrubada do Estado soviético e à maior derrota que o proletariado sofreu em toda a sua história.

Apesar do “crescimento” no pós-guerra (crescimento baseado na destruição massiva das forças produtivas), esse processo ocorreu em detrimento das massas, que reagiram de forma inclusive violenta, por meio de greves e revoluções. A Europa foi sacudida por poderosas greves durante os anos 1950. Nos países do Leste Europeu, as revoltas contra o stalinismo na Hungria, na Polônia e em Berlim Oriental sacudiram o stalinismo.

Os chamados “30 anos gloriosos” do capitalismo são marcados pelas revoltas dos anos 1960, o movimento antiguerra do Vietnã nos EUA, que se combinou com o movimento antirracista (pelos direitos civis), e a construção de partidos negros, como os Panteras Negras, o movimento liderado por Martin Luther King, Malcolm X, entre outros. Tudo isso convergiu para uma revolução mundial em 1968, que só não enterrou o capitalismo devido à traição ativa do stalinismo, o que marcou o início do seu declínio.

O Maio de 1968 na França (com revolta operária e estudantil), a Primavera de Praga (uma revolução política contra o stalinismo), as marchas e ocupações de universidades nos EUA, e as lutas estudantis na América Latina (como a ocupação da Universidade do México, as marchas de centenas de milhares no Brasil em plena ditadura militar, as greves operárias em Osasco e Belo Horizonte) mostravam que não havia um “equilíbrio”, mas um mundo instável no qual o principal “antagonista” do imperialismo (dos EUA, da França, da Alemanha, da Inglaterra, etc.) não era o “bloco stalinista”, mas sim o proletariado mundial.

Essa revolução foi afogada em sangue e fogo. A universidade do México é invadida e ocorre um massacre. Líderes estudantis são presos e a UNE é dissolvida no Brasil. Martin Luther King, Malcolm X, os líderes dos Panteras Negras e até Robert Kennedy, que buscava se candidatar à presidência prometendo a paz no Vietnã, são assassinados nos EUA. A Primavera de Praga é esmagada pelos tanques soviéticos. A revolução na França recua com o apoio do Partido Comunista ao general De Gaulle.

Maio de 1968 na França

As organizações trotskistas vivem o seu auge, mas, infelizmente, sua política é determinada não por buscar as massas para construir uma direção revolucionária e operária, mas pela lógica de que o maior adversário do imperialismo é o “bloco stalinista”, transformando-se assim, em meras auxiliares do stalinismo, ou derivando para o guerrilheirismo, sobretudo na América Latina. Ao abandonar o método e a política do “Manifesto Comunista” e do “Programa de Transição”, tornam-se folhas ao vento, prisioneiras das pressões da pequena burguesia.

A revolução de 1968 encerra o período que se abriu com o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir de então, as greves operárias da década de 1970, como a da Polônia, já não podiam mais ser sufocadas em sangue e balas. Ao final, o sindicato Solidariedade é “legalizado” sob controle da Igreja, dada a ausência de um partido ou organização trotskista.

Na Nicarágua, o grupo guerrilheiro sandinista toma o poder e, imediatamente, começa a repressão contra o pouco que tinha de movimento operário organizado, inclusive contra uma fração trotskista (os morenistas) que organizava a tomada de terras.

No Brasil, nas manifestações que prenunciavam a derrubada da ditadura, o grito de guerra que unificava os trotskistas e ganhava as massas, em oposição aos stalinistas, era: “Brasil, Polônia, América Central: a classe operária é internacional”.

As ditaduras militares na América Latina começam a ser derrubadas. Nas eleições da Constituinte de 1978, no Peru, a Frente Operária Camponesa Estudantil e Popular (Focep), que reunia trotskistas, maoístas e também organizações estudantis e camponesas, conseguiu 15% de votos em meio a uma greve geral e mobilizações de massa que levam à derrubada da ditadura.

No Brasil, as greves e manifestações estudantis de 1977 abrem caminho para as greves operárias de 1978 e 1979, a fundação do PT e da CUT, e, por fim, a derrubada da ditadura com o movimento das “Diretas Já”, que levou milhões às ruas de todo o país.

A pressão econômica e política do imperialismo, por outro lado, a incapacidade de manter a produção separada do mercado mundial e a pressão do comércio exterior, de forma geral a incapacidade de manter o equilíbrio com as exigências novas do imperialismo, levaram à queda da burocracia na URSS. A pressão das massas leva à derrubada do Muro de Berlim, revoltas varrem todo o Leste Europeu e a falta dos partidos trotskistas, a inexistência da 4ª Internacional, levam a um dos lados da equação de Trotsky na revolução traída, a derrubada do país dos soviets será a pior tragédia política para o proletariado. E foi.

A transição para o capitalismo não foi “a frio”. As revoltas na Rússia foram afogadas em sangue. O massacre da Praça da Paz Celestial em Pequim marca a entrada definitiva do capital na China. E, se na Rússia os restos do PC assumem o poder para pilhar a propriedade coletiva em seu próprio nome, na China o Partido Comunista depurado mantém firme o controle de uma ditadura burocrática. Na maioria dos países, os partidos burgueses assumem o poder, e a unificação da Alemanha se faz sob o domínio do Partido Conservador.

É uma nova era na luta de classes? Sim, mas não a era de que os EUA se tornam a potência dominante sem que haja disputa dessa liderança. O que houve foi a regressão da consciência de classe a nível mundial, a destruição dos sindicatos, a destruição dos partidos stalinistas e a regressão dos partidos social-democratas por toda uma geração, processo que começa a mudar no novo século.

Destruição da estátua de Stalin em Budapeste, 1956

A derrota que foi a derrubada do país dos sovietes foi prenunciada por uma série de derrotas da classe operária, a partir de uma ofensiva da burguesia contra os direitos dos operários, na qual a mais significativo foi a derrota da greve dos mineiros ingleses de 1984/1985, que levou ao fechamento das minas na Inglaterra. Com isso, se abriu um novo período de ataque aos direitos operários e dos trabalhadores, conhecido pela burguesia e pela “esquerda” como “neoliberalismo”, mas que representava, no fundo, o ataque aos direitos conquistados no período de 1945-75.

A derrubada do país dos sovietes e a restauração do capitalismo na ex-URSS, na China e nos países do Leste Europeu foi o marco desse período em que a classe operária perdeu direitos em todo o mundo. Os combates contra as privatizações e contra a perda de direitos, principalmente da previdência, que se seguiram no final dos anos 80 e nos anos 90 levaram, na maioria dos casos, a derrotas.

A derrubada dos Estados operários burocratizados na Rússia, na China, em todos os países do Leste Europeu e na Ásia (particularmente no Vietnã) abriu ao capital um “novo mundo” para o investimento. Isso levou à depredação do parque industrial soviético na Rússia, à exploração do setor de petróleo e gás, particularmente pelo capital alemão, e à transformação da China, e depois do Vietnã, no “chão de fábrica” do mundo, com ditaduras que impunham salários baixos e permitiam a produção com condições de trabalho extremamente precárias. Esse foi o segredo da “recuperação milagrosa” das décadas de 1990-2000 até 2007. O fim desse período é marcado pela crise de superprodução decorrente dessa política em 2007. A “globalização” e o “neoliberalismo” foram apelidos dados pelos economistas burgueses para aquilo que queriam esconder: a pilhagem da propriedade estatal nos países onde o capital tinha sido expropriado e a destruição massiva de direitos dos trabalhadores, que já sofriam com o desemprego e ataques (desde a greve derrotada dos mineiros de 1984/85 na Inglaterra) e agora enfrentavam a concorrência da mão de obra quase escrava da China e do Vietnã. A destruição dos Estados operários burocráticos levou, evidentemente, à queda do monopólio do comércio exterior e, com isso, à abertura de mercados e ao aumento do comércio em uma taxa espetacular neste período.

Esses anos determinaram uma ofensiva do capital contra a classe operária e abriram uma era de crises, de greves e inclusive de revoluções. O ponto mais alto deste período foi a Revolução Venezuelana e todos os avanços que sacudiram o mundo a partir daí. Essa revolução e sua liderança pequeno-burguesa tentaram ir muito além do que se previa. A publicação, por Chávez, das obras de Trotsky e de outros marxistas mostrava isso, assim como a sua proposta de fundar uma “5ª Internacional”. Por outro lado, Chávez não expropriou a burguesia o que levou, posteriormente, ao recuo dessa proposta e da revolução. 

Relembrando: este período é marcado por um ressurgimento das lutas operárias, da derrubada de governos burgueses e do nascimento ou “renascimento” de antigos líderes reformistas que, de repente, se “radicalizam” e “vão muito além do que pensavam”, mas que recuam imediatamente quando veem que as massas se agarram a isso e pretendem ir muito além do que é aceitável para um reformismo, ainda que de esquerda. A falta de um partido revolucionário, de uma internacional, levou ao fato de que o recuo dessas lideranças não resultou na construção de uma fração “de esquerda”, mas sim na desmoralização e posterior crescimento da “nova direita”.

O período que se abre, após a restauração capitalista e a derrota das principais lutas contra as privatizações e a derrubada de direitos operários no mundo, inicia-se com a Revolução Venezuelana e vai terminar com a decisão de Chávez de não convocar a fundação de uma 5ª Internacional. A nossa Internacional (então CMI) cumpriu um papel fundamental, se fortaleceu e cresceu com a política de “Tirem as Mãos da Venezuela” que levou à realização de atos, criação de comitês, novos contatos e novas seções em muitos países do mundo. É nessa campanha, que incluiu a defesa das fábricas ocupadas no Brasil e na Venezuela, que a seção brasileira, expulsa da internacional de Lambert, encontra os camaradas da CMI. A expulsão se deu quando os lambertistas passaram a defender uma política “nacionalista” (o auge dessa política se dá quando o candidato do PT francês, lambertista, se apresenta na TV com a faixa da República, simbolizando a defesa da República burguesa em vez do comunismo) e se opuseram ao “apoio a Chávez” (eles classificavam Chávez como um Kerensky e diziam que ele devia ser derrubado). Nossa posição era de uma frente única, no momento que Chávez chamava à ocupação de fábricas.

A solidariedade prestada pelos camaradas da CMI aos líderes da ocupação de fábrica em Joinville (que foram processados pelo governo Lula), estreitou nossos laços e culminou com a entrada da seção brasileira na CMI. Isso se deu com base na intervenção comum na luta de classes e na compreensão que temos em comum sobre o papel da classe operária e do marxismo na construção da Internacional, rejeitando todos os atalhos (“novas vanguardas”, “feminismo”, “identitarismo racial”, etc.). Fizemos juntos a campanha em defesa da Venezuela e constatamos que, apesar de trajetórias bem distintas, tínhamos muitos pontos em comum.

Esta situação é atravessada pela crise econômica de 2007/2008, uma crise clássica de superprodução que atingiu o mundo inteiro. A resposta à crise foi o aumento brutal da retirada de direitos em todo o mundo, além da concessão de créditos governamentais para sustentar a maioria dos grupos capitalistas que eram “grandes demais para quebrar”, segundo o governo dos EUA (Bush era o presidente então). O resultado disso é a situação econômica atual, em que as crises vêm em “conta-gotas”, e a burguesia tenta cada vez mais jogar esta crise nas costas da classe operária. Os líderes “radicais” da “esquerda” que surgem neste período (Mélenchon na França, Podemos na Espanha, Syriza na Grécia…) conseguem captar a indignação das massas num primeiro momento, mas depois cedem ao capital. Alguns vão mais longe que outros (Petro, por exemplo, na Colômbia, que chama manifestações contra o Congresso de maioria direitista) enquanto outros cedem desde o começo.

A virada com o surgimento de “candidatos a Bonaparte”, que rugem contra o sistema para melhor governar para a burguesia (como Bolsonaro no Brasil, Milei na Argentina e Trump nos EUA), é um episódio curto que pode levar a uma ditadura aberta de caráter bonapartista ou ser derrotado e virar um sistema “híbrido” que aprofunda a crise. Por exemplo, no Brasil, o STF e seu juiz “principal” Alexandre de Moraes assumem cada vez mais um caráter bonapartista: atacam a extrema-direita e defendem a “democracia” contra os “fascistas” e contra os grandes burgueses que controlam as redes sociais; ao mesmo tempo, o STF vem realizando julgamentos que derrubam direitos sociais e trabalhistas sem resistência por parte das centrais sindicais e dos sindicatos.

É nesta situação que o imperialismo dos EUA é obrigado a intervir em várias guerras regionais para impedir que a situação saia do controle e que algum tipo de governo ou regime nacionalista (como o de Chávez) ou operário burocratizado possa surgir. Esse é o sentido das intervenções e guerras no Iraque, no Afeganistão, na Iugoslávia e, em menor escala, em outros países (por exemplo, na Argélia). Entretanto, a derrota sofrida no Vietnã em 1972-75 não foi “curada”, e sua capacidade de intervenção permanece bastante limitada. A derrota no Afeganistão, a invasão do Iraque sem que pudesse controlar o resultado, a Líbia, a Síria… não puderam produzir regimes estáveis sob seu controle ou sob o controle de qualquer imperialismo diretamente. Os regimes políticos que sucedem ou são o caos, ou são regimes fundamentalistas que não abrem um caminho para a solução dos problemas das massas.

A necessidade de uma Internacional se coloca de forma mais urgente que nunca. “As condições objetivas para a revolução estão maduras e, mais que isso, estão começando a apodrecer.”

O texto aprovado pelo CC da OCI sobre a situação mundial explica a situação atual, de marcha em direção ao caos, impulsionada pela política de Trump, que rompe unilateralmente todos os acordos comerciais e políticos anteriores. Ele não os rompe com o objetivo de ter um “acordo global” frente aos “imperialismos” da China e da Rússia. Pelo contrário, ele os rompe com o objetivo de obter mais vantagens comerciais e políticas com todos os países, inclusive seus tradicionais aliados.

O que faz Trump é romper esses acordos e exigir “novos acordos” com todos os países (imperialistas ou não) que deixem de “roubar os EUA” e passem a ter uma “relação justa” (onde “justa” significa que os interesses da burguesia ianque venham em primeiro lugar frente a todos os outros). A taxa “básica” de 10%, o novo “mínimo”, a tarifa geral sobre alumínio e aço de 25% e, depois, as tarifas do “dia da libertação” são a expressão de uma guerra aberta que joga todas as instituições construídas nos acordos de Yalta e Potsdam, e no acordo de Bretton Woods, no lixo.

O resultado disso não é um mundo “multipolar”. É a velha luta de classes, em que o proletariado é o primeiro atingido. As taxas gerais se comportam como um imposto sobre consumo, levando à desvalorização do dólar e de todas as moedas dos países atrasados, e ao aumento do valor das moedas imperialistas, como o euro, a libra e o iene japonês. O proletariado de todos os países, em geral, pagará por isso com aumentos de preços (inflação, ou seja, desvalorização geral de todas as moedas frente ao conjunto das mercadorias), sem que os aumentos salariais correspondam a esta inflação.

Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia levou à expropriação do subsolo ucraniano pelo capital ianque, e o massacre de Gaza caminha, agora, para a proposta feita por Trump: matem ou expulsem os palestinos, e vamos transformar Gaza em um lindo resort / Imagem: Ministério da Defesa da Ucrânia, Wikimedia Commons

Quanto tempo isso será tolerado? A primeira vítima da “guerra comercial” de Trump contra o mundo são os proletários. Depois, os países que são forçados a acordos comerciais, um por um, sem que consigam, devido a seus próprios conflitos inter-imperialistas, ter uma resposta unificada. Isso aparece de forma mais clara na Europa, que não consegue uma resposta; na Comunidade Inglesa, onde a Inglaterra corre para fechar um acordo com os EUA, deixando no fogo o Canadá, que continua ameaçado de anexação; ou nos países latino-americanos, que voltam a ser reduzidos ao “quintal” dos EUA.

A resposta aparentemente forte da China (a única que o fez) vai na direção de uma capitulação. Após repetirem o seu mantra — “só negociamos com a retirada das tarifas” —, os chineses são obrigados, pela quebra de empresas e da “falta de mercado” substituto ao maior mercado do mundo (EUA), a irem para a mesa de negociação na Suíça. O resultado: tarifas de 10% da China sobre os produtos dos EUA, tarifa de 30% dos EUA sobre produtos chineses; e, para produtos de baixo valor (inferior a US$ 800), a tarifa será de 54%!

Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia levou à expropriação do subsolo ucraniano pelo capital ianque, e o massacre de Gaza caminha, agora, para a proposta feita por Trump: matem ou expulsem os palestinos, e vamos transformar Gaza em um lindo resort. E, como em qualquer país em que começa a existir um poder bonapartista que se alça acima dos outros, o maior beneficiário desta “proposta” será a família de Trump, que já se propôs a construir o resort! Assim, ele cobra, e caro, os seus serviços à oligarquia financeira dos EUA.

EUA abandonando o mundo? Pelo contrário. É a diplomacia do poder do dólar, do poder do comércio, do poder financeiro que, se necessário, vai ser apoiada por armas. Para celebrar o acordo da Ucrânia, Trump ordena a transferência de mais uma bateria de mísseis de defesa Patriot para a Ucrânia. E a Rússia sofre a humilhação de ter que fechar os aeroportos de Moscou no dia da celebração da “vitória” sobre os nazistas.

Sim, a “indústria” dos EUA está em relativo declínio frente a outros países. Mas a guerra comercial de Trump não busca resolver isso. Aliás, qualquer fábrica que voltasse aos EUA não criaria os empregos que Trump prometeu. Seriam fábricas altamente robotizadas, como são as fábricas que fabricam o iPhone na China, na Índia e nos EUA. A maior parte da mais-valia é extraída não na montagem do aparelho (fase final), mas sim na fabricação de cada um dos seus componentes, que envolve mais de 50 países.

A reabertura de uma mina de antimônio, patrocinada por Biden e mantida por Trump, levará à fantástica quantia de mais 500 empregos (proposta original feita há dois anos), com a maioria das atividades de mineração feita por máquinas e robôs, e os empregos concentrados nas áreas de administração e de comercialização! Ou seja, a “era dourada” à qual Trump se refere foi há muito tempo destruída pelo aumento do capital constante.

Ao transferir a fabricação dos países imperialistas para a Ásia, primeiro para a Coreia do Sul, depois China, Vietnã, Malásia, Taiwan etc., a primeira vítima são os próprios empregos. A superprodução atual, que atinge toda a economia (as fábricas no mundo inteiro operam, no máximo, com 50% a 70% de sua capacidade), é resultado do aumento brutal do capital constante (robotização, se preferimos as palavras bonitas do capital e de seus ideólogos), o que leva a Coreia do Sul a ter o maior número de robôs por operário no mundo (mais de três vezes o valor da China e quatro ou cinco vezes o dos EUA).

Assim, algumas afirmações sobre o “poderio militar da Rússia” são meras distrações diante da realidade atual. Para fabricar os drones de que precisa, a Rússia teve que importar tecnologia e técnicos do Irã e da Turquia. Para manter seus mísseis e aviões funcionando, contrabandeia chips… dos EUA! Mas o principal: o seu exército só funciona como um exército de mercenários, o que levou a conflitos internos e à morte do dono e dirigente do principal exército de mercenários — ou, então, pelo alistamento forçado de jovens condenados à prisão por qualquer coisa — seja um roubo, uma conduta errada, um passo em falso.

O que faz Trump é romper esses acordos e exigir “novos acordos” com todos os países (imperialistas ou não) que deixem de “roubar os EUA” / Imagem: Gage Skidmore, Flickr

Isso não cria um “exército poderoso”, mas um exército que teme lutar, que combate sob ameaça de corte marcial e que, para retomar um pedaço de território tomado pela Ucrânia, teve que recorrer a tropas da Coreia do Norte. A podridão do regime da Rússia, oriundo da destruição do Estado operário, expressa-se da maneira mais explícita possível exatamente em seu exército.

Assim, durante a guerra da Ucrânia, quando seu aliado mais próximo, a Síria, pediu ajuda, Putin nada pôde fazer, e o governo sírio caiu como um castelo de cartas. Esse é o “poder da Rússia”: podre até a medula.

A “militarização” da Europa é, antes de tudo, resultado da pressão ianque para abrir os mercados da Europa às suas empresas. Isso significa retirar as milhares de regulamentações que protegem a população (os trabalhadores em geral) das agressões do capital em todos os sentido, produtos com agrotóxicos, remédios não testados ou cujos efeitos não são exatamente os descritos, carros poluentes, indústrias poluentes, indústrias de aplicativos invasivas etc. Para fazer isso, é necessário quebrar por completo o “estado de bem-estar social”, ou seja, os direitos trabalhistas e previdenciários conquistados a duras penas pós-Segunda Guerra. A ameaça “militarista”, a “defesa nacional”, é a desculpa perfeita para estes ataques.

É nesse aspecto que a campanha da Internacional “Saúde ao invés de armas” é a resposta perfeita para esta situação. Lembremos também que o aumento do armamento é, ao mesmo tempo, uma oportunidade, praticada no mundo inteiro, de destruição de setores inteiros da economia, de uma parte do capital produtivo, como uma forma de sair da crise. A própria Volkswagen, que tentou fechar fábricas na Alemanha como “resposta” à concorrência “chinesa”, encontrou uma saída melhor: transformar uma ou mais fábricas em fábricas de armamentos, financiadas pelos novos créditos e pelo endividamento aprovado pelo novo governo. Essa situação, que ocorre no mundo inteiro, levará, cedo ou tarde, ao agravamento da crise e à irrupção desta de forma violenta. Afinal, mais dia, menos dia, o capital exigirá ser remunerado por estes “empréstimos”. E os ataques aos direitos da classe operária sempre encontrarão resistência, que se expressará, tanto mais os sindicatos “negociam” medidas “paliativas”, em explosões como a que acontece hoje na Sérvia.

Lembremos que, para salvar as “empresas que não poderiam quebrar” durante a crise de 2007/2008, os Estados capitalistas abriram créditos, na maioria dos países, para sustentar essas empresas. E isso cobra o seu preço em forma de dívida pública, que aumenta sem parar e sem que se tenha uma solução (capitalista, é claro) sobre o que fazer. A única saída é atacar os direitos dos trabalhadores e operários, é expropriar inclusive a pequena burguesia para satisfazer a sanha do capital financeiro, ou a revolução proletária que pode interromper esse ciclo vicioso.

Nossa resposta a isso é a campanha “Fora o imperialismo, abaixo o capitalismo”, que procuramos desenvolver e, a partir dela, retomar a campanha “Você é comunista? Organize-se!”. Este é o eixo do nosso combate no próximo período, e é a partir dele que deveremos organizar nossa intervenção em todas as lutas e setores em que atuamos.