O mês de dezembro do último ano marcou o 30º aniversário do colapso da União Soviética. O estado operário deformado mais poderoso estava entrando em colapso enquanto supostos comunistas saqueavam o Estado e seus ativos, aplaudidos pelos imperialistas do Ocidente. O capitalismo mostrou sua cara feia, e os trabalhadores da União Soviética tiveram que pagar o preço.
A natureza da União Soviética
A Revolução Russa de 1917 foi o maior acontecimento da história da humanidade. Pela primeira vez na história, os oprimidos, não apenas se levantaram, mas também tomaram o poder e se mantiveram nele. Mesmo as forças combinadas de todas as nações imperialistas do mundo fracassaram em desalojar o novo Estado dos trabalhadores.
A Revolução Russa deveria ter sido o início da revolução mundial, mas, por motivos que não podemos abordar aqui, isso não aconteceu.
A vitória na guerra civil teve um alto custo. A Rússia nunca foi uma nação rica, mas, depois de uma guerra mundial e uma guerra civil, tanto a indústria quanto a agricultura estavam em frangalhos.
O isolamento da revolução, nessa situação de atraso econômico, lançou as bases para o surgimento da burocracia. No final da década de 1920, o Estado dos trabalhadores degenerou no que Trotsky chamou de estado deformado dos trabalhadores. Dentro do partido e da máquina estatal, a nova burocracia, composta, em grande parte, por inimigos da revolução de 1917, expropriou o poder político da classe trabalhadora e do campesinato.
“Duas tendências opostas estão se levantando das profundezas do regime soviético … Na medida em que, em benefício de um estrato superior, ela [a burocracia] leva a uma expressão cada vez mais extrema as normas burguesas de distribuição, está preparando uma restauração capitalista. Esse contraste entre formas de propriedade e normas de distribuição não pode crescer indefinidamente. Ou a norma burguesa deve, de uma forma ou de outra, se espalhar para os meios de produção, ou as normas de distribuição devem ser conduzidas em correspondência ao sistema de propriedade socialista” (Trotsky, A Revolução Traída)
Essa nova casta burocrática estava vivendo nas costas dos trabalhadores de uma maneira que se assemelhava muito aos capitalistas do Ocidente. Eles tinham vilas, carros luxuosos, casacos de vison, joias, relógios caros. Mas é claro que eles adquiriram sua riqueza, não por meio da propriedade privada, mas por meio do saque dos cofres do Estado.
Foi também por isso que tiveram de sufocar todos os tipos de discussão democrática. Porque, no momento em que a tampa fosse levantada, os privilégios da burocracia seriam alvo de críticas. Os capitalistas, pelo menos historicamente, desempenharam um papel progressista na poupança e no investimento, e recebiam seus lucros em troca. A burocracia, por outro lado, não desempenhou tal papel. Era totalmente parasitária.
Os pequenos burocratas, em todos os níveis da administração, não tinham interesse em desenvolver a economia. Eles estavam apenas interessados em sua própria posição. Portanto, se seus superiores exigissem uma tonelada de pregos, eles entregariam uma tonelada de pregos; se esses pregos seriam úteis para um carpinteiro, era uma consideração completamente secundária. Quanto mais demandas a burocracia fazia, maior se tornava a trapaça.
Uma economia moderna é um organismo delicado, que requer uma alocação equilibrada de recursos entre os diferentes ramos. A burocracia sempre lutou para manter esse equilíbrio, mas, quanto mais a revolução ia ficando para trás e quanto maior a complexidade da economia, pior a situação se tornava.
Em vez de liderar o mundo em direção ao socialismo, a nova burocracia bloqueou o desenvolvimento posterior e até atuou como um freio aos desenvolvimentos revolucionários em outros lugares. A burocracia reacionária do Estado alimentava-se da desmoralização de cada revolução derrotada, o que fortalecia seu domínio do poder. Assim como o burocrata sindical no Ocidente teme mais aos trabalhadores do que aos patrões, o burocrata do Estado na União Soviética temia mais ao trabalhador russo do que aos imperialistas ocidentais.
A burocracia deixou de ser um obstáculo relativo ao desenvolvimento da economia para se tornar um obstáculo absoluto. Ou seja, sob o controle dos trabalhadores a economia poderia ter se desenvolvido de forma mais rápida e sustentável em todo o período. Mas, mesmo sob a burocracia das décadas de 1930 a 1960, houve algum desenvolvimento, às vezes até rápido. Mas, no final da década de 1970, a economia estava estagnada e um colapso estava se aproximando.
As tentativas de reforma de Gorbachev
Mikhail Gorbachev tornou-se líder do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) em 1985. Ele refletia uma camada da burocracia que tentava promover reformas para sair do impasse econômico. Gorbachev falou sobre o controle dos trabalhadores e a democracia, mas nada disso poderia ser implementado enquanto a burocracia controlasse a sociedade.
Na verdade, para a burocracia, a escolha entre o controle dos trabalhadores e um retorno ao capitalismo não era difícil. Eles preferiam o capitalismo. Mas, no início, essa não foi uma escolha consciente. Eles ainda estavam pelas reformas para tentar preservar o sistema existente. Gorbachev estava tentando se apoiar na classe trabalhadora na tentativa de conter os piores excessos da casta burocrática, não para derrubá-la, mas para preservar o regime como um todo. Como Ted Grant explicou:
“Esta foi a falha fundamental na posição de Gorbachev. Incentivar uma maior iniciativa e, portanto, maior produtividade dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que defendia os privilégios e vantagens da burocracia, era tentar fazer a quadratura do círculo” (Rússia: Da revolução à contrarrevolução).
Gorbachev enfatizou que os privilégios “legítimos” deveriam ser mantidos:
“Estamos restaurando totalmente o princípio do socialismo: de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com seu trabalho”.
Se você se perguntar de onde vem esse “princípio”, diríamos que é uma bastardização do princípio“de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme suas necessidades”. Isso não é um acidente. Foi a justificativa ideológica para o governo da burocracia.
Cerca de 200 mil funcionários dos mais corruptos foram demitidos, mas isso estava apenas arranhando a superfície da forte burocracia de 19 milhões de membros. Para os trabalhadores, a pressão aumentou. O programa de reforma significou uma piora dos padrões de vida e das condições de trabalho. O alcoolismo tornou-se um problema sério, fazendo com que os trabalhadores se ausentassem por causa do álcool. As tentativas de restringir o fornecimento de álcool criaram um enorme mercado negro de álcool destilado ilegalmente, e tiveram de ser abandonadas. Ao mesmo tempo, a burocracia enriquecia mais e mais.
O monopólio estatal do comércio exterior foi relaxado na segunda metade da década de 1980. Isso proporcionou oportunidades tremendas para mais pilhagens de ativos do Estado. As empresas agora podiam ficar com parte das receitas do comércio exterior. Na prática, isso significava que os gerentes das indústrias de exportação ou intermediários embolsavam uma parte substancial dos rendimentos, que então se financiavam em contas bancárias no Ocidente. A desregulamentação simultânea do sistema bancário ajudou nesse processo.
Khodorkovsky era um conselheiro de Yeltsin com conexões ocidentais. Sua carreira é ilustrativa de muitos da nova classe de oligarcas. Ele trabalhou como para a Komsomol (ala jovem do Partido Comunista) em 1986, então, em 1987, ele iniciou um “Centro para a Criatividade Científica e Técnica da Juventude”, ligado à Komsomol e que negociava com o Ocidente. Em pouco mais de um ano, isso o levou a fundar um banco, o Menatep, com a ajuda de banqueiros ocidentais. Esse banco rapidamente se tornou um dos maiores bancos privados russos e por meio do qual Khodorkovsky obteve o controle da Yukos, empresa de petróleo e gás. No final dos anos 90, Khodorkovsky detinha o controle acionário de 30 empresas e, em 2004, era o 16º homem mais rico do mundo, com US$ 16 bilhões.
A economia conseguiu dar um salto temporário de crescimento, mas então as coisas rapidamente pioraram. A comida apodrecia no campo, o furto e o peculato aumentavam. O mercado negro se tornou a principal fonte de mercadorias para fábricas, lojas e consumidores. As prateleiras estavam vazias e, em 1990, 70 milhões de pessoas viviam da fila do pão. Uma onda de greves atingiu a União Soviética, culminando em uma greve de 300 mil mineiros. Há relatos de trabalhadores assumindo o controle das cidades mineiras durante essas greves:
“O comitê de greve, em essência, passou a ser a autoridade nas cidades. Eles estavam ocupados com questões de comércio, transporte e manutenção da ordem. Da manhã à noite, vinham aos comitês pessoas que por muito tempo não tinham conseguido ajuda ou apoio de nenhuma outra organização. E seus membros investigavam cada problema, consultavam especialistas e ajudavam onde podiam com tratamento médico, reparos, colocação profissional … ” (Trud, 3 de agosto de 1989)
Essas ações dos trabalhadores trouxeram as sementes da revolução política. Porém, a classe trabalhadora não tinha uma organização que pudesse unir suas lutas e permitisse que impusessem suas demandas de classe sobre a situação. Em vez disso, sua luta foi desviada e se tornou um pretexto para novas privatizações.
Em 1990, o The Soviet Weekly publicou uma pesquisa que afirmava que apenas 15-20% dos jovens acreditavam no socialismo. A palavra agora fedia, manchada pela burocracia. Os motins se tornaram comuns e as massas foram perdendo o medo do aparato repressivo do Estado, chegando a atacar a polícia e a fazê-la recuar.
O ceticismo generalizado e a desilusão entre as pessoas se refletiam em piadas políticas como “já alcançamos o comunismo real ou o pior ainda está por vir?” Mesmo assim, em 1990, mais de 40% eram a favor do retorno a uma gestão econômica mais centralizada e apenas 25% desejavam um sistema orientado para o mercado. Portanto, a mudança para o capitalismo não era popular.
Mas a burocracia, nesse momento, começou a se mover seriamente em direção ao capitalismo. Eles haviam perdido toda a confiança no “socialismo”, isto é, em si mesmos, e olhavam com espanto e admiração para o Ocidente. Trotsky apontou que os membros da burocracia tentariam assegurar sua posição e a de seus filhos, transformando-se em capitalistas. Foi isso que aconteceu. Burocratas de todos os níveis tentaram agarrar o máximo da pilhagem que conseguiam alcançar com suas mãos. A corrupção era galopante. Um programa de austeridade foi iniciado, incluindo a privatização (inicialmente de pequenos negócios) e a desregulamentação de preços e salários.
Yeltsin entra em cena
Em 1990, o Comitê de Planejamento Estatal (Gosplan) estava alertando sobre um colapso completo da economia. Yeltsin – um ex-membro do Politburo, que foi demitido por denunciar a burocracia e a corrupção – emergiu como o líder da ala pró-capitalista. Ele e sua facção estavam pressionando por “reformas” mais rápidas para resolver a situação.
A desintegração da União Soviética começou para valer e Yeltsin usou sua posição como presidente do Soviete Supremo Russo para aumentar seus próprios poderes (em relação ao governo da União Soviética), criando uma posição de poder rival à de Gorbachev.
Gorbachev e seus ministros não haviam decidido passar para o capitalismo. Eles se detiveram, tentando equilibrar-se entre a ala pró-capitalista e a ala linha-dura da burocracia. Em 1990, Gorbachev voltou a fazer uma série de reformas pró-mercado. Em um discurso, ele atacou a burocracia, mas insistiu que ele e os seus não estavam se movendo para uma economia de mercado. Depois disso, Yeltsin renunciou ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Gorbachev continuou a tentar equilibrar as duas facções, mas a situação estava saindo de seu controle. Havia agora dois partidos legais, abertamente declarados na União Soviética: o velho partido da burocracia, o PCUS, e uma aliança de partidos pró-“reforma”, com Yeltsin à frente.
As reformas de mercado não conseguiram conter o colapso da economia. A produção econômica nos primeiros seis meses de 1991 caiu 10% em comparação ao ano anterior. Houve mais greves nas minas de carvão.
Yeltsin conquistou a presidência da Federação Russa em junho de 1991. Essa foi uma virada decisiva. Ao mesmo tempo, as repúblicas soviéticas menores exigiam independência. Gorbachev foi forçado a redigir um novo tratado da União, para indignação da linha dura. Gorbachev, agora, estava manobrando com Yeltsin contra a facção linha-dura, para aprovar o tratado, que concederia mais autonomia às repúblicas constituintes, incluindo, é claro, a Federação Russa. Teria efetivamente sido o fim da União Soviética.
A linha dura lançou uma tentativa de golpe para impedir a ratificação do tratado. Dado o envolvimento de funcionários do alto escalão, bem como da KGB, eles eram notavelmente mal organizados. Os golpistas parecem ter esperado a adesão de Gorbachev ao golpe ou à sua renúncia em favor de seu vice, mas ele se recusou. Os conspiradores do golpe emitiram um mandado de prisão contra Yeltsin, mas não foram realmente capazes de cumpri-lo. Ele evitou sua prisão.
Em vez disso, Yeltsin aproveitou a situação. Ele se barricou no prédio do parlamento (a Casa Branca) e fez um apelo para que as pessoas se juntassem a ele, o que cerca de 10 mil pessoas fizeram. Os conspiradores do golpe tentaram um ataque à Casa Branca, mas depois que as escaramuças causaram a morte de alguns manifestantes, eles se retiraram. Então a coisa toda se desenrolou e os conspiradores foram presos.
Gorbachev emergiu enfraquecido. A linha dura havia sido derrotada e Gorbachev não podia mais se apoiar nela contra Yeltsin. Ele não podia mais resistir ao ataque. No final do ano, o Tratado da União foi esquecido, a União Soviética foi dissolvida e, com ela, a presidência de Gorbachev.
Yeltsin e sua facção não sofriam da mesma falta de determinação dos golpistas. O PCUS foi suspenso em 29 de agosto, uma semana após o colapso do golpe. Yeltsin, então, começou a desmontar o partido, inicialmente pela nacionalização de todos os seus ativos. Finalmente, o partido foi proibido em 6 de novembro.
Com a queda da União Soviética, Yeltsin havia se tornado incontestado em seu papel como presidente da Rússia, e procedeu rapidamente para “liberalizar” a economia. Ele recebeu poderes emergenciais do Congresso dos Deputados para realizar reformas econômicas, incluindo a desregulamentação.
O fator determinante, neste processo, foi a ausência de um movimento independente da classe trabalhadora. Os trabalhadores não puderam desempenhar um papel independente e, como resultado, toda a batalha foi travada entre as duas alas da burocracia: uma, que lutou com a confiança e o apoio do imperialismo ocidental, e a outra completamente desmoralizada e sem nenhum plano real. Os linha-dura eram os defensores de um status quo que fracassou e em que ninguém mais acreditava.
Os trabalhadores não viam perspectivas em nenhuma das alas. Houve greves e manifestações, mas a confusão era enorme e faltavam alternativas genuínas. Uma chamada de greve geral por Yeltsin teve o apoio da ex-primeira-ministra conservadora britânica, Margaret Thatcher, entre muitas outras pessoas, mas pouquíssimos trabalhadores aderiram a ela. As pessoas que se uniram ao campo de Yeltsin eram estudantes, engenheiros e especuladores que viam uma vantagem material no retorno ao capitalismo. Foi a passividade da classe trabalhadora que permitiu a Yeltsin e a sua ala tomarem o controle.
O golpe de Yeltsin
Embora parecesse que a linha dura havia sido derrotada, não demorou muito para que surgisse uma oposição. Longe de ajudar a situação da classe trabalhadora, as novas medidas agravaram rapidamente o problema. A remoção dos controles de preços em uma situação de escassez significou que a inflação tinha disparado. Os preços aumentaram 300% em um mês e, no final de 1992, a inflação estava em 2.400%.
A Rússia acabou ficando com o pior de todos os mundos: as desvantagens da má administração burocrática combinada ao capitalismo de clientelismo. Os mesmos produtos de má qualidade estavam sendo produzidos, mas agora a preços muito inflacionados. Ao mesmo tempo, os salários não estavam sendo pagos. As indústrias estavam paradas devido à falta de materiais. A situação estava ficando desesperadora. Isso provocou protestos em massa do lado de fora da Casa Branca, forçando o governo a dobrar o salário mínimo e a aumentar as pensões.
Em suas memórias, Yeltsin comenta que seu objetivo era tornar a “reforma” irreversível. Ou seja, ele queria tornar irreversível o retorno ao capitalismo, mas enfrentava oposição. Ficou claro que o Congresso era um sério obstáculo para o progresso das “reformas” de Yeltsin. Na primavera de 1992, Yeltsin teve que bater em retirada parcial sua terapia de choque e demitir seu ministro das Finanças, Gaidar. Esse foi um aviso para Yeltsin. Para prosseguir, precisava dispensar o Parlamento e assumir poderes ditatoriais.
Durante a maior parte de 1992, Yeltsin discutiu com o Parlamento sobre uma nova constituição, mas não conseguiu chegar a um acordo. Em dezembro, o Congresso concordou com um referendo em abril, sobre uma nova constituição, em troca da renúncia do primeiro-ministro Gaidar, que havia retornado em junho. Mas esse acordo não durou. Em março de 1993, Yeltsin decidiu governar por decreto, uma medida que o tribunal constitucional bloqueou, declarando-a inconstitucional. Em vez disso, Yeltsin foi submetido a um processo de impeachment, do qual escapou por pouco.
Yeltsin agora colocava todos os seus esforços no referendo. As potências imperialistas estavam apoiando abertamente Yeltsin e, em abril, pouco antes do referendo, US$ 42 bilhões em assistência foi acordado. Isso permitiu que Yeltsin prometesse outro aumento no salário mínimo e nas pensões – um suborno evidente. Yeltsin venceu, por pouco, o referendo, embora o índice de abstenção tenha sido alto e Yeltsin, provavelmente, tenha fraudado a votação. Ainda assim, ele usou o resultado como pretexto para agir contra seus inimigos.
Em setembro, Yeltsin suspendeu o Congresso e prometeu novas eleições sob uma nova constituição escrita por ele mesmo. Imediatamente, o Congresso votou para destituir o presidente e removê-lo do cargo. Yeltsin renomeou Gaidar e tentou obter apoio para a nova constituição. Ele não teve muito sucesso. 148, de 176 líderes regionais, se opuseram às suas manobras, incluindo o conselho municipal de São Petersburgo. O imperialismo ocidental, é claro, apoiou Yeltsin. Eles não estavam tão preocupados com as sutilezas legais ou democráticas, mas sim com a destruição da economia planejada e com as oportunidades de saque às empresas estatais.
Yeltsin sitiou a Casa Branca, onde os líderes do Congresso haviam se barricado. Os oponentes de Yeltsin fizeram um apelo sem entusiasmo às massas. Eles não estavam dispostos a lançar um movimento de massas adequado contra o golpe de Yeltsin. Em vez disso, eles tentaram confiar no exército e no serviço secreto. Eles lançaram o que equivalia a um contra-golpe. Mas não havia mais disposição para defender a velha ordem agora, do que no ano anterior.
Os trabalhadores de Moscou começaram a se mobilizar contra o golpe. Em 3 e 4 de outubro, dezenas de milhares de manifestantes romperam as linhas da polícia e chegaram à Casa Branca. Mas isso não foi suficiente para romper o impasse.
Em vez disso, depois de subornar vários deputados para abandonar seus cargos, Yeltsin atacou a Casa Branca. Ele tentou dar ordens ao exército para fazer isso. De um exército de dois milhões e meio, “nem mesmo um regimento foi encontrado”, Yeltsin lamentou em suas memórias. Por fim, uma força foi montada com uma mistura de oficiais do exército, da KGB e do Ministério do Interior.
A tomada do Parlamento deu um ímpeto poderoso ao movimento em direção ao capitalismo, mas a resistência continuava. Yeltsin proibiu os partidos e jornais da oposição, suspendeu os conselhos locais e demitiu vereadores e governadores. Até o tribunal constitucional foi suspenso. Tudo em nome da “democracia”. A eleição para o Parlamento renomeado (o nome czarista Duma foi restaurado) deveria fornecer uma cobertura legal para as manobras, mas o campo de Yeltsin se dividiu em vários partidos diferentes, e o regime não conseguiu alcançar qualquer estabilidade.
Nos anos seguintes, a situação econômica piorou. Por toda uma década, a economia continuou encolhendo. Em 1989, a produção total da economia valia US$ 1,46 trilhão; no final de 1998, apenas 800 bilhões, uma queda de 44%. A produtividade do trabalhador russo médio era de 30% em relação ao nível dos EUA em 1992, mas apenas 19% em 1999. A restauração do capitalismo foi um desastre absoluto. A única destruição comparável de uma economia foi a das potências derrotadas na Segunda Guerra Mundial. Os salários reais caíram mais da metade. No ano 2000, 29% da população vivia na pobreza.
As contínuas dificuldades econômicas provocaram novos movimentos da classe trabalhadora, mas ela foi traída. Muitos colocariam a data para a restauração do capitalismo na Rússia em 1991, mas a verdade é que o novo regime ainda não havia se estabilizado. Estava cheio de contradições e crises e os trabalhadores ainda resistiam.
Um regime em crise
O Ocidente estava pressionando por mais “reformas”: “mais choque, mais terapia”, “sem retorno para a Rússia”, era a mensagem. Yeltsin e sua camarilha ficaram felizes em obedecer, desde que, é claro, enchessem seus próprios bolsos no processo. Algumas das negociações mais sujas foram reveladas nos tribunais do Reino Unido, enquanto os oligarcas lutavam pela propriedade de várias empresas. The Guardian, em sua reportagem, descreve como Yeltsin “praticamente deu ativos do Estado a um pequeno grupo de empresários bem relacionados” em compensação por sua ajuda em manipular a eleição presidencial de 1996. Yukos, a gigante do petróleo no valor de US$ 3 bilhões, foi para as mãos de Khodorkovsky pelo valor de US$ 100 milhões, por exemplo.
Essa era a natureza da nova classe dominante na Rússia. A desigualdade de riqueza é, atualmente, a maior entre as principais economias mundiais. O 1% mais rico em 2000 possuía 54% dos ativos na Rússia. Nos Estados Unidos, esse grupo censitário possuía apenas 33%. Hoje, os oligarcas russos aumentaram ligeiramente sua participação no bolo, e possuem 58%.
Isso não passou despercebido aos trabalhadores, que tiveram que pagar o preço pelo desastre econômico. O desemprego não aumentou tão rapidamente, mas isso ocorreu, em parte, porque as empresas mantinham os trabalhadores registrados. Eles simplesmente não os pagavam. Meses e meses de salários atrasados não foram pagos e foram reduzidos pela hiperinflação. Isso preparou o caminho para uma nova onda de luta.
As eleições de 1995 foram uma grande derrota para os partidos pró-capitalistas, que perderam cerca da metade de seus assentos. O Partido Comunista da Federação Russa (CPRF) ganhou muito, e a esquerda ficou com quase a metade dos assentos na Duma. Este foi um sinal de que o clima estava mudando na sociedade. A eleição presidencial seguinte, em 1996, foi, provavelmente, fraudada e, mesmo que não tivesse sido fraudada, o Ocidente interveio fortemente em favor de Yeltsin, incluindo o fornecimento de fundos em um momento crucial da campanha eleitoral. Mas isso não alcançou a tão desejada estabilidade política.
Uma onda massiva de greves se seguiu no outono de 1996, incluindo a criação de “comitês de salvação”, que eram soviéticos em tudo, exceto no nome. As fábricas foram ocupadas e passaram a funcionar sob controle operário. O movimento voltou em 1998. As pesquisas mostraram grande oposição às reformas de mercado. Em janeiro de 1997, uma pesquisa mostrou que 48% consideravam o socialismo preferível ao capitalismo para a Rússia, com 27% pensando o contrário. Se houvesse um Partido Comunista presente, digno desse nome, esse movimento poderia ter se generalizado na Rússia, e os trabalhadores poderiam ter tomado o poder, mas a liderança do CPRF tinha outras ideias.
O CPRF era massivo e tinha amplo apoio, mas sua liderança era formada por resquícios da velha burocracia e, como a linha dura de 1991-1993, não tinha realmente uma alternativa ao capitalismo. Esses dirigentes não tinham experiência de trabalho em massa, acostumados a intrigar nos corredores do poder. A última coisa que sua liderança queria era que os trabalhadores estivessem no comando. Portanto, eles não poderiam fornecer nenhuma alternativa para os trabalhadores em busca de uma saída.
Em 1991, a restauração estava longe de ser certa e poderia ter sido revertida. Com o fracasso do Partido Comunista e a falta de um fator subjetivo que pudesse ter levado os trabalhadores ao poder, o regime conseguiu encontrar essa estabilidade em um novo líder, Putin.
A peculiar ascensão de Putin
Em 1998, Yeltsin era uma força esgotada. Para coroar o desastre da situação econômica e a forma como os ativos do Estado eram vendidos a preços de banana, a família de Yeltsin foi envolvida em um escândalo de corrupção. Ele foi incapaz de manter seu próprio governo unido e seu apoio nas pesquisas de opinião ficou em torno de 3%.
Os sucessores de Yeltsin disputaram a posição e, mais uma vez, havia um risco real de que o líder do Partido Comunista, Zhuganov, vencesse as próximas eleições presidenciais. Embora Zhuganov se apresentasse como um par de mãos seguras, opondo-se à propriedade estatal, a oligarquia não confiava que ele pudesse conter os trabalhadores.
Putin emergiu nesta situação. Ele era um funcionário menor da KGB que se retirou do serviço ativo em 1991 e começou uma carreira, supostamente civil, junto ao prefeito de São Petersburgo, lidando com as relações exteriores da cidade. Estima-se que 80% de todas as joint ventures com o Ocidente incluíam oficiais da KGB. Em São Petersburgo, ele se envolveu em um escândalo de corrupção envolvendo US$ 100 milhões em matérias-primas que haviam sido exportadas pela cidade, supostamente em troca de alimentos, que nunca se materializaram. A suspeita era, é claro, de que Putin e outros funcionários haviam sido pagos pessoalmente, sem a entrega dos alimentos.
Yeltsin nomeou Putin para sua equipe presidencial em 1997 e, um ano depois, como chefe do FSB, o sucessor da KGB. Por outro lado, um ano depois, ele era o primeiro-ministro. Isso deveria levantar algumas sobrancelhas. Claro, toda a sociedade russa estava em crise, o que abriu novas formas de ascenso para pessoas como Putin e outros que tinham uma falta particular de escrúpulos morais. Também revela a falta de pessoas confiáveis no topo do regime.
Mesmo assim, Putin estava claramente bem conectado e, provavelmente, nunca deixou, de fato, o serviço da KGB ou, posteriormente, do FSB. Exatamente o quão próximo ele estava do serviço secreto seria revelado logo depois que ele foi elevado ao cargo de primeiro-ministro em 1999.
O conflito checheno forneceu combustível útil para o sentimento patriótico. Uma série de misteriosas explosões de bombas abalou a Rússia em setembro de 1999, há apenas um mês de Putin assumir o poder. Além das explosões, uma bomba foi descoberta e desarmada, mas o FSB afirmou que fazia parte de um exercício de treinamento. O presidente da Duma anunciou um dos atentados três dias antes de sua ocorrência. Algum agente da inteligência havia confundido as datas dos atentados de Moscou e Volgodonsk.
Os apelos para um inquérito independente foram bloqueados e todos os supostos perpetradores foram mortos ou condenados em tribunais secretos. Uma comissão informal, criada por um membro da Duma, Kovalev, foi interrompida quando dois de seus membros foram assassinados e um preso. Litvinienko, agente desertor do FSB, assassinado em Londres em 2008, foi uma das testemunhas da comissão.
As explosões foram atribuídas aos islâmicos e coincidiram com uma invasão do Daguestão (a república vizinha). Putin ordenou, imediatamente, o bombardeio de Grozny em retaliação. A coisa toda foi uma propaganda massiva de Putin, que recebeu elogios generosos da imprensa russa, que, é claro, era controlada pelos oligarcas.
Nas semanas seguintes, a popularidade de Putin disparou. Yeltsin renunciou em dezembro, o que tornou Putin presidente interino, e desencadeou eleições em março, em vez de junho. Putin ganhou a maioria no primeiro turno. No entanto, ele não tinha maioria na Duma, mas o CPRF escandalosamente deu-lhe os votos necessários.
O regime de Putin
O que Putin representou foi a consolidação do regime capitalista na Rússia. Sem dúvida, alguns liberais sonhavam com uma democracia ao estilo ocidental, mas qual seria a base de tal regime?
Houve muitas tentativas de se embelezar o regime de Yeltsin, mas não era muito diferente do regime de Putin. Como vimos, Yeltsin não hesitou em pisar na constituição e nas assembleias eleitas, quando lhe convinha. Ele baseou seu governo em uma pequena camarilha de oligarcas extremamente corruptos, a quem entregou grandes quantidades de propriedades do Estado. Ele estava determinado a restaurar o capitalismo na Rússia, e recebeu o apoio do Ocidente para esse propósito. Mas o regime de Yeltsin era de crise. Não tinha futuro a longo prazo.
Quando Putin assumiu o poder, ele começou a limpar o pior dos excessos dos anos de Yeltsin. Ele prendeu alguns dos oligarcas e quebrou parte de seu controle sobre a mídia. Claro, não para entregá-la aos trabalhadores, mas aos seus próprios comparsas, ou sob seu próprio controle. Mas esses movimentos para punir os oligarcas eram muito populares na época.
As potências ocidentais presumiram, erroneamente, que a Rússia voltaria ao capitalismo como uma colônia do Ocidente: um retorno à Rússia pré-1917. Foi isso, essencialmente, o que eles conseguiram em grande parte da Europa Oriental. Mas a nova oligarquia russa tinha seus próprios interesses e estava começando a ganhar confiança. A Rússia ressurgiu no cenário da política mundial, não como uma nação empobrecida, mas como uma potência imperialista, faminta por recuperar suas esferas de influência que haviam sido perdidas com o colapso da União Soviética.
Essa também não foi uma missão pessoal de Putin. Yeltsin concordou plenamente com a subjugação da Chechênia e também sugeriu que as antigas repúblicas soviéticas pudessem redesenhar suas fronteiras (em favor da Rússia). A nova oligarquia russa estava começando a encontrar sua autoconfiança e, com a recuperação da economia nos anos subsequentes, essa confiança cresceu.
O regime estava se remodelando. Nada de fundamental estava mudando, mas algo precisava ser feito para remover a imagem medonha dos anos de Yeltsin. Desaparecera a obediência servil aos ditames do FMI e de Washington. Claro que Putin não estava preparado para abolir o capitalismo, mas estava bastante interessado em reabilitar o status de grande potência da Rússia. Depois de uma década de humilhação nacional, isso era popular.
O hino nacional soviético foi retomado em 2000, com uma nova letra, apesar da oposição de pessoas como Yeltsin, que argumentava que não se devia seguir cegamente os caprichos das massas (um reconhecimento tácito de que o hino era popular). Putin também continua falando sobre a União Soviética, incluindo Lenin e Stalin, em palavras positivas. Mas, é claro, ele também menciona alguns dos czares em termos semelhantes.
No entanto, as ideias, de alguma forma, devem corresponder à realidade. Putin afirmou representar uma mudança em relação a Yeltsin, mas as mudanças superficiais que ele realizou teriam sido insuficientes, se não tivessem sido combinadas com um boom na economia. Putin não falava apenas para ter o que falar, mas quando falou em reviver a Rússia, isso também foi notado na situação econômica. Claro, isso não tinha muito a ver com ele, mas sim com a mudança na sorte dos preços do petróleo. Cerca de 60% das exportações da Rússia são produtos de petróleo e gás.
Essa combinação do desastre dos anos de Yeltsin com a subsequente recuperação econômica, do início dos anos 2000, deu ao novo regime uma aparência de estabilidade. A classe trabalhadora estava desmoralizada e atomizada, primeiro pelos anos de stalinismo sob a União Soviética, depois pelo papel desastroso do CPRF no movimento 1996-1998. Esse foi outro ponto importante, tanto da recuperação econômica, quanto do regime de Putin.
Como acontece com muitos regimes bonapartistas, Putin também depende muito do jogo contra o inimigo externo. Ele precisa de guerras bem-sucedidas para continuar. A guerra na Chechênia foi um exemplo, em que ele esmagou brutalmente os chechenos. Em seguida, ele esmagou o exército georgiano, em 2008, seguido pela guerra na Ucrânia, em 2014, depois pela guerra na Síria, em 2015-16.
No entanto, essas tentativas de ganhar popularidade, estimulando o nacionalismo, estão tendo cada vez menos efeito. E é muito caro. Os gastos militares russos são, agora, maiores do que os dos EUA como parcela do PIB, em 3,9%, o que é mais do que o dobro do Reino Unido.
O regime de Putin vive um tempo emprestado. Putin costumava alcançar de 60% a 70% de popularidade nas pesquisas, mas agora caiu para 40%. Nunca houve eleições livres na Rússia, mas a última eleição parlamentar foi a mais fraudulenta de todas. A perseguição se intensificou, assim como a fraude eleitoral. Talvez metade dos 28 milhões de votos do partido Rússia Unida de Putin sejam falsos. Em 2007, no auge da popularidade de Putin, o Rússia Unida conquistou 315 cadeiras, com 49% dos votos. Esse ano, as pesquisas de opinião deram ao Rússia Unida 35%. Mesmo assim, eles ainda conseguiram 50% nas eleições, o suficiente para garantir 324 assentos, o que, por acaso, corresponde a apenas 4 assentos a mais do que a maioria de dois terços exigida para as mudanças constitucionais. Claramente, o regime garantiu que eles tivessem votos suficientes para assegurar esse índice.
Em uma democracia burguesa normal, as eleições e os protestos são como uma espécie de válvula de escape, onde os vários partidos sobem e descem em popularidade, conforme muda o clima, particularmente, entre a classe trabalhadora. Os resultados das eleições e os números das greves são como um barômetro, por meio do qual se pode avaliar o humor da classe. Quando se trata de um regime como o da Rússia, isso é muito mais difícil. Ainda pior é a inutilidade da oposição parlamentar. A repressão e a fraude empurram o descontentamento para baixo do tapete, mas isso apenas significa que ele emergirá ainda mais explosivo quando chegar.
Dada a crise que está ocorrendo em escala mundial e o desastre em que a Rússia se encontra, o momento para tal ajuste não está longe. Porém, a solução não pode ser mais a mesma miséria com uma máscara democrática. O fracasso total da oposição liberal mostra exatamente isso. Ninguém está interessado nos lacaios do imperialismo norte-americano ou em um retorno aos anos de Yeltsin. Nem é possível ou desejável retroceder 30 anos no tempo e reintroduzir uma economia burocraticamente mal administrada. Os trabalhadores procuram uma alternativa genuína. Isso deve significar inevitavelmente um retorno às ideias da Revolução de Outubro. Esse continua sendo o único caminho a seguir.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM