No dia 28 de agosto (sábado) será realizada mais uma etapa da Universidade Marxista Brasil (UMB), que dará continuidade aos debates sobre a história das revoluções. Nesta ocasião iremos estudar e debater os ensinamentos da Revolução e Guerra Civil Espanhola. Inscreva-se aqui.
A derrota da revolução espanhola e consequente vitória franco-fascista na Espanha teve como consequência um período de governo de 40 anos de reação em toda a linha contra a classe trabalhadora e de retrocesso em relação às conquistas democráticas mais básicas conquistados. Um dos efeitos mais devastadores foi a acentuação da opressão sobre as diferentes nacionalidades que vivem no Estado espanhol, em especial sobre os catalães, bascos e galegos.A questão das nacionalidades
Catalunha, País Basco, Galícia são diferentes regiões do Estado espanhol. São compostas por pessoas de nacionalidades e línguas distintas das consideradas espanholas, o que implica em compreender profundas diferenças culturais das pessoas dessas localidades em relação a regiões como na capital Madrid.
Durante o século 19, os movimentos das nacionalidades oprimidas tomam corpo, desenvolvem-se literaturas mais aprofundadas elevando o patamar de difusão e construção de uma identidade nacional de cada uma delas.
Na primeira metade do século 20 esses movimentos são compostos e influenciados pelos revolucionários. São parte do processo revolucionário da década de 1930, queda da monarquia e fundação da 2ª República. Exatamente por a opressão nacional ser parte da pauta revolucionária, as nacionalidades oprimidas espanholas foram alvos privilegiados da repressão franquista após a derrota da revolução e o estabelecimento da ditadura franquista.
Os princípios do Ditadura Franquista
O galego (pasmem) Francisco Franco liderou o golpe contra a 2ª República em 1936. Após sua vitória, em 1939, o fascismo franquista atuou para massificar suas políticas nacionais e de opressão ao proletariado espanhol como um todo.
Além de seu teor absolutamente antiproletário e anticomunista, a ditadura franquista se estruturava em torno de dois pilares: o nacionalismo espanhol e o catolicismo. Um fato que exemplifica esse último fundamento do fascismo espanhol é que o Vaticano foi a primeira cidade-Estado a reconhecer e legitimar esse regime assassino1. O desenvolvimento e aplicação política desses dois princípios implicavam uma série de medidas repressivas contra as nacionalidades presentes no Estado espanhol.
Podemos citar alguns marcos jurídicos da repressão às nacionalidades pós-golpe de Franco em 1936 e antes do fim da guerra civil:
- Em 18 de maio de 1938 o Ministério da Justiça proíbe qualquer língua que não o castelhano no registro civil. Ainda naquele ano essa proibição é estendida para registro de pessoas jurídicas;
- Em 1º de março de 1939 o Ministério da Educação impõe como manual escolar “O catecismo patriótico español de Ignácio Menéndez-Reigada”;
- Em 16 de março de 1939 é estabelecida a proibição dos idiomas nacionais que não o castelhano. 1
No manual, que foi obrigatório por décadas nas escolas espanholas, são feitas adjetivações alegóricas sobre o castelhano, tais como: “a língua castelhana é formosa e apta como nenhuma outra das línguas vivas […]”; sobre sua literatura afirma: “a mais formosa e original de todas as modernas literaturas”; e não só afirmam a superioridade absoluta do castelhano, como supõe de modo completamente equivocado o fim gradativo, por exemplo, da língua inglesa: “porque o inglês e o francês […] são línguas tão gastadas, que vão a caminho da dissolução completa”1. Instituía-se quase um rito praticamente religioso em torna língua castelhana e da cultura espanhola.
A imposição da nacionalidade espanhola
Escolas, igrejas e os meios de comunicação foram ferramentas do regime franquista quanto à tentativa de imposição do princípio de “unidade nacional”.
Quanto à repressão religiosa, são registrados assassinatos de ateus ou pessoas que se recusam a participar das liturgias religiosas; nas escolas é estabelecida a proibição total de línguas alheias ao espanhol desde o golpe em 1936 e há inúmeros relatos de violência e ridicularização dos alunos com elementos culturais das outras nacionalidades que vivem na Espanha1.
Os meios de comunicação passaram a só realizar publicações e transmissões em espanhol. As campanhas publicitárias eram violentamente contrárias às diferentes nacionalidades no território espanhol. Tentava-se incutir a ideia de que falar bem, era falar espanhol. De que ser patriota e, consequentemente, não ser bárbaro, começa pela adesão à língua espanhola1. É quase uma retomada da caracterização da Roma antiga quanto aos bárbaros, onde, fundamentalmente, não saber o latim era o suficiente para ser considerado bárbaro.
O galego, por exemplo, que Franco renunciou, quando começa a ser reutilizada nos meios de comunicação a partir da década de 1960, aparecia somente em anedotas humorísticas, em programas de humor, como língua jocosa, não oficial, não importante.
Como ferramentas para a imposição do nacionalismo espanhol, foram instituídos novos feriados nacionais, que saudavam a hispanidade (12/10), o dia do levante contra a 2ª República (18/07) e mesmo eventos futebolísticos neste sentido. Quanto a esse último aspecto, há indícios que apontam a interferência direta da ditadura franquista na ascensão do então modesto time do Real Madrid. Como parte da política de construção da unidade nacional em torno dos espanhóis e contra as demais nacionalidades, fazia sentido que o principal time de futebol da capital espanhola se construísse como o principal time de futebol do país6.
A não utilização do castelhano implicava desde o impedimento legal e social a cargos e responsabilidades oficiais até a morte. Para conseguir um emprego era necessário o uso obrigatório da língua oficial e os estabelecimentos públicos e privados, para funcionar, deveriam fazer uso obrigatório da língua nacional:
“[…] proibição de utilização de termos não espanhóis em hospedarias, rótulos, anúncios, o exercício da profissão docente e a absorção por parte do Estado de todas as escolas municipais (ao serem precisamente onde mais dano se fez à unidade da pátria), todos os instrumentos de organização e regime do tabelionato, a projeção de filmes, os nomes dos barcos.”1
Historiadores catalães afirmam que o regime não tinha limites para a opressão nacional:
“[…] o projeto era acabar com qualquer concepção de identidade coletiva diferente, em termos linguísticos e culturais. O Estado autoritário e centralizador teve papel fundamental na garantia deste projeto nacional. […] o aparelho repressivo não tinha limites, instaurou-se a tortura, campos de concentração, fuzilamentos e exilou-se qualquer um que fosse contra, inclusive militares.”2
A brutal repressão do regime franquista, contudo, não só não foi capaz de anular o anseio da classe trabalhadora das nacionalidades oprimidas espanholas, como em alguns casos, as fortaleceram e intensificaram um sentimento de unidade contra o regime.
Resistência das nacionalidades oprimidas
Em determinadas situações o chicote da contrarrevolução faz avançar e acelerar o processo revolucionário. Ao contrário de fator unificador, como almejavam os franquistas, a brutal imposição dessa nova roupagem da ditadura franquista impulsionou o desenvolvimento de movimentos de resistências, em especial na Catalunha e no País Basco.
As formas de resistência se organizavam tanto dentro da Espanha em meio ao regime, quanto pelos exilados. Escritores e intelectuais das nacionalidades oprimidas intensificaram suas discussões e debates sobre o tema o que posteriormente viria a passar para o terreno organizativo de luta. Em 1954, por exemplo, o grupo Torras i Bages realizou assembleia popular com entidades para retomada das demandas dos catalães2.
Tão relevantes quanto aos catalães, e talvez expressando maior ódio em relação aos espanhóis, estão os bascos. Diferentemente das outras nacionalidades oprimidas, a língua basca (ou o euskera) não tem raízes latinas. Suas origens são desconhecidas. Apesar disso, os movimentos nacionalistas na região dedicaram grande esforço em construir uma identidade nacional à região de meados do século 19 até o início do século 20. E isso começa justamente com o aumento da produção literária e as demandas políticas para que o euskera fosse ensinado nas escolas. Ocorre, contudo, que a principal alavanca deste processo foi justamente a ditadura franquista3.O movimento nacionalista basco passou três gerações desde o século 19 em seu desenvolvimento. Inicialmente, embasados pelo pensador Sabino Arana, era defendido sob uma perspectiva racista, de soberania dos bascos contra os inimigos espanhóis. Defendia-se a mudança dos nomes dos bascos, o catolicismo e a manutenção da pureza da raça dentre outras medidas próprias de ideologias racistas. A segunda geração é a composta pelos derrotados na guerra, com alguma influência dos ideais revolucionários, mas que, contudo, amargavam a derrota ao franquismo. É da terceira geração, chamados de os “netos da ira”, que surgirá uma das mais conhecidas expressões organizadas contra a ditadura franquista, o ETA3.
ETA é a sigla para Euskadi Ta Askatasuna. Considerando que EUSKADI significa País Basco, a sigla completa pode ser traduzida como Euskadi Pátria e Liberdade. Foi fundado em 1959 como a principal expressão organizado dos bascos contra o regime franquista e pela separação do País Basco da Espanha. Diferentemente dos movimentos nacionalistas da primeira geração e da segunda, o ETA trata-se de um movimento não atrelado ao catolicismo, reivindicando-se laico; nele vemos uma mistura de ideologias anarquistas e nacionalistas; e não exigia mais sobrenome basco para ser considerado como tal3. Essa organização política, bastante pautada em táticas de terrorismo individual e incapaz de se conectar com as massas proletárias, e impotente frente ao aparato repressivo espanhol, declarou-se dissolvida em 2018. Até hoje, contudo, segue viva a luta do País Basco por sua autodeterminação e direito à separação do Estado espanhol.
Quanto à Galícia, a resistência contra o golpe durou alguns dias após 1936 e que, nem por isso, os fascistas foram mais piedosos. Mantiveram a brutalidade que dedicaram à demais nacionalidades oprimidas e aos proletários em todo o Estado espanhol. Apesar disso, foram organizados movimentos internacionais de denúncia e tentativas de criação de governos galícios frente à violência franquista, em especial por exilados, enaltecendo o galego, sua literatura e cultura1.
Em linhas gerais, vemos que apesar da brutal política de “unidade nacional” contra as nacionalidades oprimidas, os movimentos nacionalistas intensificaram sua organização. Com diferentes matizes de atuação, dentro e fora do Estado espanhol, potencializaram suas ações frente à repressão e tentativa de genocídio cultural das nacionalidades distintas da espanhola.
A continuidade da luta contra o capitalismo, o real opressor das nacionalidades.
O capitalismo espanhol poderia ter sido derrubado no processo de queda de luta contra a ditadura franquista, não fosse a traição das direções políticas espanholas. Para não perder os dedos, contudo, a burguesia cedeu alguns anéis aos trabalhadores e às nacionalidades oprimidas por meio dos Estatutos de Autonomia.
Em termos legais, no País Basco, Galícia e Catalunha as línguas específicas de cada região, de transmissão praticamente oral no período fascista, passaram a ser obrigatórias nas escolas junto ao castelhano. O respeito às culturas passou a ser estabelecido em lei, assim como os meios de comunicação não mais teriam que utilizar somente do castelhano. Apesar dessa vitória momentânea, o problema central continuou em voga, assolando a classe trabalhadora em todos os países e de todas as nacionalidades: a manutenção da propriedade privada dos meios de produção e, portanto, do capitalismo.
Apesar dos estatutos de autonomia, com a manutenção da sociedade capitalista, as estruturas do sistema seguem intactas. Assim, a base estrutural da opressão nacional continua. Os indicativos sociais não se alteraram de modo significativo da década de 1980 até os dias atuais, percebendo-se, inclusive, a degradação das condições de vida em curso, mesmo nas regiões consideradas “economicamente estáveis” como a Catalunha7.
Exemplo da instabilidade política da Catalunha e a manutenção da luta pelo direito à autodeterminação, em 2017 vimos mobilizações massivas na Catalunha pela independência e direito à autodeterminação. Essas mobilizações foram duramente reprimidas pelo governo espanhol, contabilizando mortos, feridos e presos políticos. Isso não desmobilizou os catalães, que continuaram em marcha.
A Corrente Marxista Internacional (CMI), em artigo publicado em 2019, explica um pouco como, na prática, os Estatutos de Autonomia, fora a língua, não incluem as principais demandas das nacionalidades oprimidas:
“O direito à autodeterminação da Catalunha é proibido – assim como um referendo sobre a monarquia é proibido, assim como a reforma trabalhista do PP e sua lei da mordaça são declaradas intocáveis, e como é proibido investigar e processar o rei emérito, apesar das evidências suficientes de seu envolvimento na cobrança de propinas financeiras e na evasão fiscal, depositando seus fundos no exterior.”8
Vale ressaltar ainda: até hoje o governo espanhol proíbe o acesso de historiadores aos registros sobre os crimes do fascismo franquista10. Assim, a “retomada democrática” nem sequer permitiu acesso aos dados reais sobre a extensão dos crimes da ditadura franquista. Isso evidencia ainda mais o compromisso da classe capitalista com a ditadura franquista. E deixa ainda mais claro que a luta contra a opressão nacional não pode estar dissociada da luta contra o próprio sistema.
A classe trabalhadora da Espanha poderia ter representado uma saída revolucionária à Europa e quiçá à humanidade no processo de derrubada da ditadura franquista. Infelizmente, por conta da traição dos dirigentes políticos, a revolução não triunfou e o regime pós-1978 manteve o capitalismo intacto no país. Isso representa, além da continuidade da exploração assalariada que assola todos os espanhóis, a impossibilidade de uma real autodeterminação das nacionalidades oprimidas na Espanha. Com explica outra excelente contribuição da CMI:
“A questão nacional permanece como uma úlcera sangrenta na história política espanhola e assim permanecerá até que a classe trabalhadora não se proponha abertamente a lutar por sua emancipação como classe, resolvendo os problemas democráticos pendentes pelo caminho, tais como a mencionada questão nacional catalã, basca e galega e a formação de uma república democrática”.9
Longe de resolvida, a questão nacional segue sendo um dos pilares da luta da classe trabalhadora na Espanha. E cabe aos revolucionários defenderem o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas no país, incluindo aí a demanda de formação das repúblicas democráticas, contudo, explicando que somente com a revolução socialista é que seus direitos e demandas efetivas poderão ser definitivamente conquistados.
Fontes e referências:
1 A repressão franquista na língua galega. A desfeita de uma realidade linguística, cultural e nacional. (Matías Rodríguez da Torre; Xosé Manuel Baamonde Silva, 2016).
2 A recuperação do catalanismo durante a ditadura franquista (Lucas de Oliveira Klever, 2018).
3 Estragos do discurso – notas sobre a violência no País Basco (Iñaki Viar Echevarria, 2000).
4 La repression franquista em andaluzia (Francisco Cobo Romero, 2012).
5 Julián Casanova, Francisco Espinosa, Conxita Mir, Francisco Moreno Gómez. Morir, matar, sobrevivir. La violencia en la dictadura de Franco. Editorial Crítica. Barcelona. 2002.
6 https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2015/02/28/como-a-ditadura-fez-o-modesto-real-madrid-se-transformar-num-gigante.htm
7 VIII Informe sobre exclusión y desarollo social em espana, 2019.
8 https://www.marxismo.org.br/viva-a-greve-geral-na-catalunha-liberdade-para-os-presos-politicos/
9 https://www.marxismo.org.br/espanha-a-questao-nacional-e-a-catalunha/
10 CARMEN REMÍREZ DE GANUZA (29 de março de 2015). «Los historiadores, contra Margallo por negarse a abrir los archivos». ELMUNDO)