Foto: Evandro Teixeira

O golpe de 1964 e as heranças do reformismo

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 09, de 25 de junho de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Há alguns anos que a política da esquerda reformista tem tomado como base a defesa da democracia, priorizando a luta dentro das instituições pela manutenção do regime burguês construído na Nova República. Enquanto a maior parte dos trabalhadores rejeita essa democracia, a esquerda reformista se dispõe a salvar a qualquer custo esse regime, sempre colocando no horizonte uma ameaça que nunca encontra concretude na realidade, como a suposta ameaça fascista. Essa estratégia faz com que construam alianças junto a setores amplos que defendem a democracia, sejam partidos de direita ou mesmo setores da burguesia, a exemplo do manifesto “Estamos Juntos”, que, além de parlamentares e lideranças de partidos como PT, PCdoB e PSOL, tem entre seus signatários os ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o empresário Luciano Huck e a deputada Tábata Amaral (PDT).

O regime democrático que a esquerda reformista e setores da burguesia defendem foi produto do pacto entre ditadores e a oposição legalizada, no período final da ditadura, como parte do processo que ficou conhecido como “transição lenta, gradual e segura”. Esse processo teve como pano de fundo a intensa mobilização dos trabalhadores, em que foram construídos instrumentos de luta como o PT, a CUT e o MST. Essas mobilizações – que geraram uma situação de instabilidade que poderia ter ameaçado o processo de transição segura pretendido pela burguesia e pelos militares – fizeram com que o novo regime incorporasse reivindicações parciais dos trabalhadores, conseguindo garantir algumas liberdades democráticas na Constituição de 1988. Contudo, esse mesmo texto mantém elementos que garantem à burguesia o pleno uso da repressão e da coerção como forma de preservar a propriedade privada de qualquer ameaça.

O regime construído nas últimas décadas contou, desde sua formação e estabilização, com a atuação fundamental da esquerda reformista por meio de sua política de conciliação com a burguesia. Um exemplo claro se deu no Fora Collor, quando Lula e o PT foram favoráveis à posse do vice-presidente Itamar Franco. A política da esquerda de conciliação de classes e de defesa da ordem burguesa foi o que levou à derrota dos trabalhadores diante do golpe de 1964. Nesse processo, a quase totalidade da esquerda defendia não apenas o governo João Goulart diante da ameaça de golpe, como também compartilhava com esses setores da burguesia uma estratégia nacionalista e de desenvolvimento do capitalismo. O PCB, bem como o recém-criado PCdoB, ambos stalinistas, e outros grupos menores se colocavam como parte de um bloco com a burguesia e direcionavam a luta dos trabalhadores não para a luta independente por seus direitos ou mesmo para um governo próprio da classe, mas de adesão política ao governo João Goulart.

Joao Goulart havia sido eleito defendendo o programa centrado nas “reformas de base”, que colocou como prioridade das ações do governo quando assumiu a presidência após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961. Tratava-se de um conjunto de medidas que tinham como objetivo reestruturar as instituições políticas, jurídicas e econômicas do país. Entre as principais reformas estavam a agrária, a administrativa, a constitucional, a eleitoral, a bancária, a tributária (ou fiscal) e a universitária (ou educacional). Eram propostas de reforma do capitalismo dentro de uma perspectiva nacionalista. No Comício da Central, em 13 de março de 1964, João Goulart afirmava: “O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada pela realidade dos momentos em que vivemos”.

As “reformas” que propunha Goulart podiam ser qualquer coisa, mas certamente não eram o caminho para a “paz social”. As empresas imperialistas instaladas no Brasil não estavam dispostas a ceder e pagar o preço que Goulart propunha. Muito menos os latifundiários estavam dispostos a entregar suas terras, e havia uma perspectiva de guerra no campo. Boa parte da burguesia nacional industrial estava junto com o imperialismo, do qual dependia, e também se confundia com os latifundiários. Assim o programa de Goulart, ainda que o presidente não o desejasse, era uma declaração de guerra e só poderia ser aplicado derrotando a burguesia imperialista e a burguesia compradora e latifundiária na luta de classes. Mas não era esse o caminho de Goulart.

O PCB, dentro de sua perspectiva de “revolução por etapas” e de que no Brasil ainda existia um modo de produção com características feudais, defendia que era preciso defender as “reformas de base” com um caráter estratégico. Luís Carlos Prestes, principal liderança do partido, afirmava em março de 1964, depois do Comício da Central: “lutar pelo socialismo é lutar pela vitória da revolução nacional e democrática e acabar com os obstáculos que impedem o progresso de nosso país, é lutar pela expulsão de nossa terra dos monopólios imperialistas, é lutar pela revolução agrária. Temos consciência que é assim que estamos lutando pelo socialismo”. Portanto, para o PCB e para a maioria das organizações de esquerda, era preciso fazer uma revolução nacional que consolidasse o Brasil como nação capitalista e, numa etapa posterior, lutar pelo socialismo. Por isso o PCB tentava uma aliança com setores da burguesia que, concretamente, estavam do outro lado da barricada, desarmando politicamente os trabalhadores e o campesinato. As greves aconteciam e o PCB manobrava para que elas não fossem até o fim. A luta radicalizada da juventude era contida pela direção.

O resultado dessa política foi que, após o golpe, uma boa parte do setor de juventude rompeu com o PCB e, sem outra perspectiva política, assumiu o caminho da guerrilha e foi massacrada pelo aparato militar. O trabalho operário do PCB se perdeu e o domínio que o partido tinha nas fábricas, desde os anos 1920 e 1930, foi destruído e, quando a ditadura acabou, o PCB era um setor marginal do movimento sindical.

O que esse tipo de análise parece ignorar é o fato de que o Brasil vinha passando por um processo de desenvolvimento econômico e industrial nas décadas anteriores. Embora sem fazer uma revolução burguesa aos moldes dos países europeus, o Estado brasileiro cumpriu o papel de fomentar a industrialização e diversificar os diferentes ramos da economia, tendo como marco a chamada “revolução” de 1930. Com isso, no Brasil que chega a 1964, convivem formas de produção das mais diversas, com regiões e ramos da economia atrasados ao lado de uma indústria com setores bastante avançados. Como consequência, o desenvolvimento desigual e combinado colocava para o Brasil tensões internas que se chocavam com os interesses imperialistas.

Como discutimos em texto anterior, mesmo essas limitadas reformas ou mesmo a defesa de um desenvolvimento autônomo capitalista frente ao imperialismo eram considerados ameaças pela maior parte dos setores da burguesia. O fantasma da Revolução Cubana – além das lutas anti-imperialistas que ocorriam em outras regiões do planeta – era um fenômeno muito presente e que deveria ser controlado. O golpe em 1964, com os militares à frente, parece ter sido, pelo menos por alguns anos, a melhor solução para a burguesia e para o imperialismo. E, para manter politicamente a ditadura, além da repressão foram adotadas medidas que eram estigmatizadas como “de esquerda”. As refinarias e todo o setor de petróleo, bem como a energia elétrica e as telecomunicações, foram estatizadas. Os ditadores necessitavam que essa parte “funcionasse” para que o capital continuasse sua tarefa de exploração. Como o controle não estava nas mãos dos trabalhadores, mas sim de uma burocracia civil e militar, a corrupção corria solta e fez a fortuna de muitos generais e de suas famílias.

Nesse cenário, mesmo que mobilizando os trabalhadores, a esquerda optou pela adesão política a um amplo bloco composto por segmentos da burguesia, defendendo com esses setores um projeto nacionalista e capitalista. Prestes dizia, às vésperas do golpe: “Estamos, portanto, diante de um processo de polarização de forças, e o presidente Goulart, que se apoiou nas massas para tomar essa atitude, diante da unificação das forças reacionárias, do desespero que será crescente dos reacionários, mais do que nunca necessitará do apoio do povo, do apoio popular para enfrentar a reação”. Neste caso se confunde a necessidade de defender a manutenção do mandato de João Goulart, uma luta pelas liberdades democráticas, com a adesão à sua política e estratégia, portanto, propondo aos trabalhadores não que centrem força em sua auto-organização contra o golpe, mas na mera solidariedade com o presidente ameaçado, confiando no pretenso caráter democrático das Forças Armadas.

Erros muito parecidos se colocam para a esquerda atualmente, ainda que no atual contexto defendam a democracia falida nascida do pacto do final da ditadura. Em 1964, a defesa era por um projeto de nação que, mesmo sob o capitalismo, garantiria ampliação de conquistas e direitos aos trabalhadores. No atual contexto, relembram os anos do governo Lula como uma espécie de paraíso, associando uma suposta ruptura institucional a uma piora nas condições de vida dos trabalhadores. Nesse sentido, bastaria reverter ações que ferem a democracia, como a perseguição a Lula ou o impeachment de Dilma, para que tudo volte a ser maravilhoso como supostamente teria sido antes. Os ataques aos trabalhadores promovidos pelos governos do PT, como expressão do pacto com a burguesia pela governabilidade, são esquecidos nessa narrativa mentirosa.

No atual contexto, mesmo diante de um governo capenga como Bolsonaro, que a própria burguesia encara como um sério problema, a esquerda aponta para a necessidade de superação da crise da democracia burguesa não pela sua derrubada, mas por meio de sua estabilização. Os trabalhadores não são chamados a derrubar o regime burguês apodrecido, mas são convidados pela esquerda reformista a fazer unidade com os mesmos setores da burguesia que os atacam cotidianamente. Os trabalhadores precisam se colocar na ofensiva, não apenas derrubando Bolsonaro, mas também superando as velhas direções políticas e construindo novos instrumentos de organização.