O movimento operário, ao longo dos últimos séculos, esteve dividido entre duas grandes correntes, os revolucionários e os reformistas. Nesses embates, coube aos grandes revolucionários combater para que a direção dos trabalhadores colocasse no horizonte a derrocada do capitalismo e a luta pela ditadura do proletariado. Isso se materializou no combate contra aqueles que, nas palavras de Lenin, defendiam que a direção dos trabalhadores deveria “se transformar, de partido da revolução social, em partido democrático de reformas sociais”.1
No começo do século 20, embora a corrente reformista estivesse espalhada em diversos países, como Rússia, França e Alemanha, foi Eduard Bernstein, dirigente do Partido Socialdemocrata Alemã (SPD), quem primeiro sistematizou as ideias reformistas. Em seu embate contra os reformistas dentro do SPD, Rosa Luxemburgo afirmou que Bernstein realizou “a primeira tentativa de fundamentar teoricamente as tendências oportunistas no partido”.2 Na época, o movimento operário vivia um grande ascenso, em que os trabalhadores avançavam na conquista de direitos. Essa conquista de reformas sociais criou em um setor da esquerda a ilusão de que se poderia avançar na luta pelo socialismo arrancando direitos por dentro das instituições do Estado. Rosa, assim, denunciava essas perspectiva, defendida pelos reformistas: “os sindicatos, reformas sociais e, como Bernstein ainda acrescenta, a democratização política do Estado são os meios para a instauração gradual do socialismo”.3
O reformismo, apesar de suas diferentes manifestações ao longo do século 20, tem em comum o abandono da revolução para a transformação da sociedade e na ditadura do proletariado como perspectiva estratégica. Outra marca importante do reformismo passa pela completa integração, política e material, das organizações operárias ao Estado burguês.
Contudo, ao longo do século, o próprio reformismo conseguiu ficar pior do que sua matriz teórica do SPD. Na época de decadência do capitalismo, quando as reformas vistas pela geração de Bernstein se tornaram quase impossíveis de serem alcançadas, os reformistas não apenas traem os trabalhadores e semeiam ilusões, como passam a ser parte integrante das ações para salvar o capitalismo e a democracia burguesa. Se antes os reformistas tinham a perspectiva de chegar ao socialismo, ainda que por uma forma pacífica, abandonaram até mesmo essa pretensão, ao longo do século, se adaptaram completamente à lógica da institucionalidade burguesa e se perdendo no labirinto das disputas parlamentares e na própria gestão do Estado.
No Brasil, a principal expressão do reformismo nas últimas décadas foi o PT. Se em um primeiro momento o “socialismo petista”, apesar de reformista, ainda tinha um perfil classista, a integração do partido à institucionalidade burguesa levou o PT a se tornar um dos principais pilares da manutenção do capitalismo no Brasil. Desde o final da década de 1980, a partir da defesa do programa democrático-popular, o PT aprofundou sua política de colaboração de classes e de abandono de reivindicações históricas do movimento operário no Brasil. Em 2003 chegou à presidência da república aliado à burguesia e aplicando um programa de interesse dos capitalistas. Na atual conjuntura, ao vislumbrar a possibilidade do retorno de Lula à presidência, o PT procura em representantes da burguesia um nome que lhe garanta o apoio dos capitalistas.
Outra manifestação recente do reformismo do presente pode ser encontrada nos documentos elaborador pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A resolução de conjuntura nacional do último congresso do partido traz alguns exemplos, como esta passagem:
“é necessário pensar uma radicalização da democracia, combinando formas representativas e participativas de deliberação cidadã, descentralizando o poder e pensando o Estado como representação de uma nova relação de forças que expresse os interesses dos que vivem do trabalho e não aceitam que a tecnocracia determine os rumos do país” (PSOL, “Resolução sobre conjuntura nacional e tática”, 7º Congresso, 2021).
Nesta passagem expõem-se a ideia de que o Estado possa ser disputado de tal forma a aumentar as formas de representação e participação. Pela lógica do documento, o Estado poderia ter um novo caráter se fosse ocupado pelas organizações dos que “vivem do trabalho”. Essa ilusão no Estado burguês foi criticada por Rosa em sua polêmica com Bernstein:
“o Estado atual é a organização da classe capitalista dominante. Quando ele, no interesse do desenvolvimento social, encarrega-se de diferentes funções que são de interesse geral, apenas o faz na medida em que esses interesses e o desenvolvimento social coincidem com os interesses da classe dominante em geral”.4
Outro problema dessa argumentação presente na resolução congressual do PSOL passa pela ideia de “cidadão”, mostrando o completo abandono de uma perspectiva classista. A ideia de que “vive do trabalho” é ambígua e aponta para um setor da sociedade bastante amplo, que inclui classes que não apenas os trabalhadores. Para o reformismo clássico, ainda que por meio de métodos pacíficos, eram os trabalhadores que deveriam chegar ao governo. Bernstein, segundo Rosa, defendia a
“orientação geral de que sua atividade não deve ser dirigida para a tomada do poder político estatal, mas sim para a elevação da condição da classe trabalhadora e para a instauração do socialismo não por meio de uma crise política e social, mas, antes, por meio de uma extensão passo a passo do controle social e da realização gradual do princípio das cooperativas”.5
No documento do PSOL, ao apontar a perspectiva de “cidadão”, recua-se para um século antes de Bernstein, fazendo menção a uma condição jurídica característica da sociedade burguesa. Essa ideia de “cidadania”, utilizada no presente, mostra uma perspectiva que consegue ser ainda mais retrógrada que a do reformismo clássico.
Em outra passagem da resolução congressual do PSOL defende-se a necessidade de “apresentar um projeto de reconstrução do país, capaz de aglutinar forças populares, reorganizar a esquerda e disputar o imaginário por um novo projeto de mudança e esperança” (PSOL, “Resolução sobre conjuntura nacional e tática”, 7º Congresso, 2021).
Defende-se aqui não a ideia de lutar por uma revolução dirigida pelos trabalhadores, mas de apresentar um projeto para a reconstrução do capitalismo no Brasil. Essa articulação de forças políticas “populares” e de “esquerda”, segundo o documento, deve estar voltada para uma disputa de “imaginário”, tendo a esperança de mudança, e não na luta pela construção de um poder com base na mobilização e na organização dos trabalhadores. Essa busca por um ideal abstrato de futuro já recebeu a devida crítica de Rosa:
“A maior conquista da luta de classes proletárias em seu desenvolvimento foi a descoberta do ponto de partida para a realização do socialismo nas relações econômicas da sociedade capitalista. Com isso, o socialismo passou de um ‘ideal’ que esteva à frente da humanidade durante séculos a uma necessidade histórica”.6
O debate estratégico do documento do PSOL é complementado pela seguinte passagem:
“Superar o neoliberalismo, construir uma nova hegemonia das classes populares e promover as bases para um socialismo democrático e libertário. Esse é nosso compromisso” (PSOL, “Resolução sobre conjuntura nacional e tática”, 7º Congresso, 2021).
Novamente aqui o elemento classista é diluído, agora na ideia de “classes populares”, não defendendo uma perspectiva dos trabalhadores. O poder a ser conquistado por essa articulação “popular” tem como perspectiva “superar o neoliberalismo”, ou seja, aquilo que se enxerga como a pior expressão do capitalismo e não o sistema como o todo e em suas contradições fundamentais. Essa abstração cheia de esperanças e sem uma classe como sujeito, segundo o PSOL, poderia promover as bases para o socialismo, citado no documento de forma breve e como uma palavra vazia de conteúdo. Consegue recuar, assim, até mesmo em relação ao reformismo clássico. Lenin criticava:
“Limitar o marxismo à doutrina da luta de classes significa restringir o marxismo, deturpá-lo, reduzi-lo ao que é aceitável para a burguesia. Só é marxista aquele que expande o reconhecimento da luta de classes até o reconhecimento da ditadura do proletariado”.7
Os adversários reformista de Lenin tinham como limite a luta de classes e não chegavam à elaboração estratégica da ditadura do proletariado. Os reformista do presente sequer chegam na ideia de luta de classes. Não se trata de uma mera escolha de caminhos diferentes para chegar ao mesmo lugar. Rosa era clara sobre isso:
“Uma revolução social e uma reforma legal não são fatores diferentes por sua duração, mas pela essência. Todo o segredo das transformações históricas por meio do uso do poder político encontra-se justamente na reversão de mudanças apenas quantitativas em uma nova qualidade, dito de maneira concreta: na passagem de um período histórico, de uma ordem social a outra”.8
Rosa demonstrou que não seria possível chegar ao socialismo por meios pacíficos, que a integração dos revolucionários ao Estado burguês levaria somente ao fortalecimento do próprio capitalismo e que a luta por reformas não poderia significar o abandono de uma perspectiva estratégica de transformação da sociedade por meio de uma revolução. Os reformista do presente demostram aversão a qualquer coisa que possa parecer com algo muito “radical”, demonstrando o abandona dos mais básicos elementos teóricos e políticos do marxismo. Lenin apontava que a guinada dos revolucionários para “o social-reformismo burguês foi acompanhada de uma mudança não menos decisiva no sentido da crítica burguesa de todas as ideias fundamentais do marxismo”.9
Uma das manifestações do reformismo que expressa essa degeneração teórica certamente é o stalinismo. Nos países centrais do capitalismo, ao longo do século 20, os PCs combateram quaisquer ações revolucionárias dos trabalhadores, no máximo se dispondo a dirigir processos políticos para melhor controlá-los e, com isso, evitar ameaças que colocassem em risco o capitalismo. Nos países dominados, como o Brasil, o stalinismo assumiu uma política de colaboração ativa com setores da burguesia, ditos “nacionais” ou “progressistas”, abertamente defendendo a necessidade de desenvolvimento capitalista e colocando a possibilidade de socialismo para um ilusório e distante futuro.
Na comparação entre o reformismo do passado e do presente percebe-se tanto a permanência de alguns elementos, como uma degeneração teórica e política ainda mais profunda. Rosa alertava que, depois da sistematização realizada por Bernstein, deturpando os elementos fundamentais do marxismo para corroborar suas ideias, pouco restaria aos reformistas futuros elaborar algo novo:
“A teoria de Bernstein foi a primeira, mas, ao mesmo tempo, também a última tentativa de dar uma base teórica ao oportunismo. Dizemos a última porque no sistema bernsteineano ele foi tão longe do ponto de vista tanto negativo – na abnegação do socialismo científico – quanto positivo – na junção de toda confusão teórica disponível –, que nada mais lhe restou a fazer”.10
No reformismo do presente, se percebe, em primeiro lugar, a permanência de ideia de lutar por mudanças na sociedade por dentro das instituições burguesas. Em segundo lugar, percebe-se o abandono da luta pela revolução e pela ditadura do proletariado. E, em terceiro, percebe-se que o reformismo do presente, além de abandonar o perfil classista, abandona até mesmo a ideia de socialismo por via pacífica, se limitando a defender a melhoria do sistema capitalista. Cabe aos revolucionários do presente, seguindo os passos de Lenin e Rosa, não apenas lutar pela revolução e pela ditadura do proletariado, como também por desmascarar as ideias reformistas e oportunistas e combatê-las no movimento operário.
1 Vladimir Lenin. Que fazer. São Paulo: Martins, 2006, p. 108.
2 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 82.
3 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 24.
4 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 32.
5 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 7.
6 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 46-7.
7 Vladímir Lenin. O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 57.
8 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 69.
9 Vladimir Lenin. Que fazer. São Paulo: Martins, 2006, p. 109.
10 Rosa Luxemburgo. Reforma social ou revolução? In: Obras escolhidas. São Paulo: UNESP, 2011, Vol. I, p. 85.