Yuval Noah Harari escreveu um dos maiores best-sellers de “divulgação científica” atuais. Ele nos apresenta um livro que procura responder todos os mistérios da humanidade (“homo sapiens sapiens”). Se Machado de Assis disse que a única diferença entre seu livro[i] e a Bíblia é que esta ia do começo ao fim e o seu livro fazia o contrário, Harari pretende fazer algo mais ambicioso – quer escrever não só uma “breve história da humanidade” como apontar para ela caminhos e um futuro radioso. Tudo isso em nome da ciência. Mas será que ele consegue entregar o que promete?
Harari é irônico e tem histórias verdadeiramente interessantes. Eu, que sou um leitor voraz, nunca tinha lido ou escutado a seguinte história que me divertiu e muito:
Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin pousaram na superfície da Lua. Nos meses que antecederam sua expedição, os astronautas da Apollo 11 treinaram em um deserto remoto similar aonde viviam várias comunidades indígenas, e existe uma história — ou lenda — descrevendo um encontro entre os astronautas e um dos habitantes locais.
Um dia, enquanto estavam treinando, os astronautas se depararam com um velho índio. O homem lhes perguntou o que eles estavam fazendo lá. Eles responderam que eram parte de uma expedição de pesquisa que em breve viajaria para explorar a Lua. Quando o velho escutou isso ficou em silêncio por alguns instantes e então perguntou aos astronautas se eles poderiam lhe fazer um favor.
O que você quer? — eles perguntaram.
Bem — disse o velho —, as pessoas da minha tribo acreditam que a Lua é habitada por espíritos sagrados. Eu estava pensando se vocês poderiam transmitir a eles uma mensagem importante do meu povo.
Qual é a mensagem? — perguntaram os astronautas.
O homem proferiu algo em sua língua tribal e então pediu que os astronautas repetissem de novo e de novo, até memorizarem corretamente.
– O que significa? — os astronautas perguntaram.
-Ah, não posso lhes dizer. E um segredo que só a nossa tribo e os espíritos da Lua podem saber.
Quando voltaram à base, os astronautas procuraram e procuraram até que encontraram alguém que sabia falar a língua tribal e lhe pediram para traduzir a mensagem secreta. Quando repetiram o que haviam memorizado, o tradutor começou a gargalhar. Quando se acalmou, os astronautas perguntaram o que significava. O homem explicou a frase que eles memorizaram com tanto cuidado queria dizer: “Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras”. (pág. 294-295)[ii]
Se podemos fazer um breve resumo de algo que já se pretende breve, devemos aprender com o velho índio e explicar o que vem fazer Harari – Não acredite em nada do que ele está escrevendo, ele veio mentir e para esconder o horror do capitalismo.
A evolução deturpada
Harari deturpa a teoria da evolução de uma forma descarada. Assim, na página 13 ele reaviva o mito de Adão e Eva, de uma forma “feminista” ao dizer que “uma mesma fêmea primata” teve duas filhas, uma das quais originou os chimpanzés e a outra seria a nossa avó. Um truque de linguagem divertido, mas que destrói o conceito fundamental da evolução das espécies: não se trata de indivíduos isolados que têm “uma modificação” que vai gerar toda uma nova espécie. A evolução necessita de um espaço isolado, aonde espécies que antes eram iguais sofram com condições materiais (clima, população de outras espécies, meio geológico e outros) diferentes que levam a que pequenas modificações ao longo de vários ciclos de nascimento e morte cheguem a diferenças que não mais permitam o reconhecimento mútuo, o acasalamento e a sua unificação. Espécies com ciclo de vida mais rápido têm uma especialização e uma diferenciação mais rápidas que outras. Esse é o fundamento da evolução. Assim, não é um “casal” que dá origem a uma nova espécie, mas uma população que é separada de outra. Isso depois vai levar a novo “erro” sobre a própria evolução da humanidade e porque hoje ela não se acha mais sujeita às mesmas leis que o restante dos seres vivos.
Como bom intelectual, Harari despreza o trabalho manual e não concebe o que impulsionou a evolução do cérebro humano. Para ele (pág. 17), “com exceção de algumas facas de sílex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram pouco proveito disso”. O problema é que ao ter um raciocínio quase cartesiano, talvez um pouco menos elaborado, Harari não consegue compreender que o próprio processo de fabricação dessas facas e varetas constrói o próprio corpo humano (o uso da mão) e o próprio cérebro. O que começa a diferenciar os primatas em geral do “homo sapiens” é o fato do homem conseguir elaborar ferramentas e usá-las para modificar o meio ambiente, ainda que seja somente para caçar ou depois conseguir uma pele para se esquentar. Como um intelectual que despreza o trabalho manual, ele se recusa a pensar na hipótese que foi esse trabalho que construiu o seu cérebro do qual tanto se orgulha.
Admirador da hipótese do bom selvagem, transvestida em admiração dos grandes predadores, ele acha que a história da humanidade é cheia de guerras e catástrofes ambientais simplesmente pela rápida “evolução” da espécie. Ele não consegue enxergar que a última vez que a evolução agiu foi quando a nossa espécie (sapiens sapiens) suplantou as demais espécies de homo sapiens e transformou-se na única existente em toda o planeta. Aliás, como bom ignorante da teoria da evolução e provavelmente tendo lido que o que diferencia uma espécie de outra é não poderem cruzar-se, ele fica surpreendido ao ver que existem resquícios de DNA em nossa espécie de outras espécies de homo sapiens (como o homem de Neandertal).
É verdade que essa herança é pequena, mas existe ainda muita coisa a ser descoberta sobre a pré-história da humanidade e como outras espécies desapareceram. O problema é que Harari chega a uma conclusão que não é apoiada em nenhum fato conhecido sobre como o sapiens sapiens venceu – o que construiu o cérebro e a nossa vantagem é a nossa “capacidade” de contar estórias e criar mitos.
Para ele nós Sapiens deixamos a história evolutiva (reservada às plantas e aos animais) e passamos para a evolução “cultural”, e toda a nossa história é a história de nossa evolução “cultural”. Assim, na Revolução Francesa (pág. 41), os franceses da noite para o dia deixaram de acreditar no direito divino e passaram a acreditar em liberdade, igualdade e fraternidade. Essa seria a nossa vantagem como espécie.
Hegel deve estar se contorcendo em seu túmulo ao ver a sua evolução do espírito ser transformada em evolução da cultura e sem o mínimo respeito a qualquer dialética. Como todo evolucionista vulgar, que acha que a evolução tem uma seta em direção ao mais complexo e ao “melhor”, que acha que a história sempre sai de uma situação “pior” para uma melhor, “mais evoluída”, Harari não consegue entender que os saltos da história são consequências de mudanças às vezes mínimas que vão se acumulando até grandes saltos acontecerem (revoluções, quedas de impérios, destruição de povos).
A sua contribuição à teoria da história, transformando a história na “evolução cultural” vai levar na verdade a saltos muito mais estranhos que a dialética em termos de filosofia e à fusão de teorias opostas sem um fundo filosófico comum. Em outras palavras, vamos ver nas próximas seções o ecletismo que hoje predomina nas ciências humanas, ao invés da busca da generalização e do estudo dos fatos empíricos para o aprimoramento ou construção de teorias. Ao invés da ciência, a ironia e as piadas como forma de esconder o vazio de suas explicações.
Mas, é claro, não poderíamos passar para as novas e sensacionais descobertas sem antes pular pelo preconceito puro e simples, presente na página 58, quando Harari explica que a agricultura e a indústria surgiram e abriram espaço para os ignorantes poderem sobreviver e passarem seus genes obtusos para a frente. Esses ignorantes e obtusos poderiam muito bem replicar, se tivessem tempo para ler tal conjunto de patacoadas, que o seu trabalho produz o suficiente para sustentar quem se acha melhor que eles e permite que esses que não produzem uma grama de pão ou uma tecla sequer de seu computador continuem a escrever o que lhes vêm à mente, ainda que isso guarde pouco a ver com ciência. Mas teremos mais tempo para voltar a que interesses Harari serve, nos próximos capítulos do livro.
Olhai os lírios dos campos
Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar algum tempo à jornada da sua vida? E por que andais preocupados quanto ao que vestir? Observai como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Eu, contudo, vos asseguro que nem Salomão, em todo o esplendor de sua glória, vestiu-se como um deles.
(Evangelho de Mateus, Biblia)
O livro de Harari teria poucos atrativos e poucos leitores se ele não contasse histórias interessantes. Assim, depois de explicar que a humanidade foi responsável pela extinção da megafauna (preguiças gigantes, mastodontes e outros animais enormes), Harari passeia pela história explicando que o “bom selvagem”, o caçador coletor tinha imaginação imensa e que o sistema que substituiu essa forma de produção (a agricultura e pastoreio primitivos) era obtuso e impediu a imaginação. Rousseau criou o mito e o explicou em vários livros. Mas o seu uso por Harari é bem diferente.
Além disso, ao colocar o caçador coletor como o principal agente da extinção da megafauna, Harari coloca nesse seu bom selvagem redivivo uma tinta de herói maldito que não existia na imagem original. E o torna atrativo. Ao fazer imagens do poder desse modo de produção, como a mulher sozinha que pode com duas pedras incendiar uma floresta e se defender de todos os tigres dentes de sabre existentes, ele recria a mulher maravilha e coloca as mulheres num pedestal que não ocorreria aos escritores dos séculos anteriores. Sim, Harari é eficiente.
E, novamente, ele mantém sua explicação sobre a cultura como explicação da história, da imaginação como a fonte do “poder”. Para Harari a construção das obras antigas que necessitavam de cooperação, como sistemas de irrigação, silos coletivos, aldeias e cidades, nasciam não da divisão da sociedade em classes sociais diferentes, com “tarefas” diferentes e com antagonismos entre elas, mas como fruto da imaginação que criava “entes imaginários” que, por todos acreditarem neles, passavam a ter uma existência real. Real que poderia ser dissolvido em minutos, desde que todos deixassem de acreditar. O que ele não explica é como a crença continuava e que, ao invés de criar “descrentes”, criava mais e mais crentes.
Como todo bom idealista, Harari acredita que não é o mundo real que cria as ideias, mas as ideias que criam o mundo. Assim, são as “criações culturais”, a “ordem imaginada” que criaram o mundo tal qual ele é e não o mundo que existia que criava as ideias. Muito antes dos homens criarem a ideia de que os imperados e reis tinham sido nomeados ou designados por Deus, houve a história real de criação das aldeias, da divisão de trabalho, da necessidade da defesa (ou do ataque para conseguir escravos), da eleição de reis, imperados ou ditadores por períodos curtos de tempo (basta reler a história de Atenas, de Esparta e de Roma, para ver este período) e depois, quando do declínio da própria cidade, a eternização dos reis (Roma da República ao Império) e por último a existência de uma religião para justificar a sua existência.
Um historiador que “esquece” essa história fica, como Harari, impressionado sobre como uma seita obscura nascida numa província sem importância do império Romano se tornou a religião dominante de Roma, no período do seu declínio. Harari não compreende que quando Roma progredia, quando o seu desenvolvimento leva a um tipo de progresso e permitia que ela crescesse mais e mais, ela poderia tolerar todo tipo de deuses e religiões diferentes. Quando a massa de homens cresceu além do tolerado, quando o número de escravos superava muito o de homens livres, quando já não existiam legiões de camponeses formados no trabalho duro aptos a servirem os exércitos romanos, outro tipo de força se fez necessária para unificar tudo e tentar salvar o que não vai ser salvo – uma religião que se sobreponha a tudo e a todos, que explique o direito divino do imperador de mandar, que explique que alguns devem ser escravos e outros ricos. E já existia essa religião, que servia para consolar os escravos, depois que foi domesticada – a religião cristã. Bastava normatizá-la como a religião de todo o império. Ela salvou o império do desastre iminente e serviu para manter unido o Império Romano de Constantinopla depois. Sim, as ideias podem se transformar em matéria, mas nascem das necessidades materiais bem presentes e não como ficções culturais, histórias que contamos aos nossos filhos durante a noite em torno das fogueiras.
Harari faz a história como a história dos mitos, em que um mito substitui o outro. Um passo a mais em sua explicação. E, novamente, atropela sem nenhuma cerimônia a teoria da evolução e coloca que ao invés do homem criar o trigo, o trigo domesticou o homem. Sim, nosso intelectual tem revelações bombásticas que deixam qualquer um de queixo caído.
Harari leu a Bíblia e provavelmente se impressionou muito com ela. E leu Darwin. E também se impressionou. Mas a sua junção dos dois livros ficou um pouco fora da realidade, para sermos condescendentes.
Harari chega à conclusão que o trigo (e outros vegetais e animais) domesticaram os homens ao invés da humanidade ter construído o trigo. Ele juntou a teoria da evolução, do qual um dos postulados é a sobrevivência dos mais aptos, com a observação dos lírios. E concluiu que o trigo domesticou o homem porque ele conseguiu sobreviver e fazer o homem trabalhar por essa sobrevivência.
A evolução explica que os organismos e espécies não sobrevivem sozinhos. Se o peixe palhaço (o que limpa os dentes do tubarão) é um exemplo de uma dependência mútua e clara, na verdade, todos os seres dependem de outros seres. Não existem girafas sem árvores altas, tigres sem animais que podem ser caçados e comidos, beija-flores sem flores, abelhas sem plantas, plantas sem abelhas e outros animais polinizadores. Todo o sistema é na verdade um ecossistema complexo, de interações múltiplas e cruzadas de milhares de formas e jeitos. Qualquer pequena alteração traz alteração ao ecossistema e às espécies ali existentes. Milhares delas podem continuar a existir quase sem modificação e outras se modificam de forma perene no espaço de poucas gerações. A história da agricultura e do pastoreio é um exemplo disso.
Demorou até várias espécies de plantas e animais serem “domesticadas”, ou seja, evoluírem de forma a poderem ser melhor utilizadas pelo homem. Em muitos casos não houve essa domesticação. E, uma vez uma espécie diferente tendo sido domesticada, ela poderia (ou não) ser repassada para outras culturas. Algumas, como trigo, cavalos, cães e gatos, praticamente se espalharam por toda a humanidade (exceção da América) ainda na pré-história. Outras (como abacate ou bananas) foram “descobertas” pelos portugueses durante o século das grandes navegações e foram espalhadas pelo mundo por eles. O certo é que o homem, através do seu trabalho, modificou essas espécies, e por isso falamos no termo “domesticação” ao invés de “evolução”. Mas para o “sapiens sapiens” que detesta o trabalho manual e quer esconder a luta de classes, pegaria mal admitir que o que diferencia as espécies domésticas de outras espécies de animais e plantas é justamente o trabalho humano. O intelectual que tem ojeriza ao gene estúpido herdado de camponeses e operários, tem mais ojeriza intelectual ao produto do trabalho humano que ele ingere alegremente no seu café da manhã. Mateus ficaria contente por ver que não pregou em vão e Isaac Azimov, se vivo fosse, poderia lembrar que os antepassados da maioria de nossos intelectuais eram camponeses e escravos, ou seja, herdeiros dos genes estúpidos preservados pela agricultura e pela indústria.
Não existe justiça nas universidades
Na página 141 Harari dá a explicação mais completa sobre a sua filosofia de história:
Não existe justiça na história
Entender a historia humana nos milênios que sucederam à revolução Agrícola se resume a uma única questão: como os humanos se organizavam em redes de cooperação em massa, uma vez que careciam de instintos biológicos para sustentar tais redes? A resposta sucinta é que os humanos criaram ordens imaginadas e desenvolveram sistemas de escrita. Essas duas invenções preencheram as lacunas deixadas por nossa herança biológica.
No entanto, o aparecimento de tais redes foi, para muitos, uma vantagem duvidosa. As ordens imaginadas que sustentavam essas redes nunca foram neutras nem justas. Elas dividiram as pessoas em pretensos grupos, dispostos em uma hierarquia. Os níveis superiores desfrutavam de privilégios e poder, enquanto os inferiores sofriam discriminação e opressão. O Código de Hamurabi, por exemplo, estabelecia uma ordem hierárquica formada por homens superiores, homens comuns e escravos. Os superiores ficavam com todas as coisas boas da vida. Os homens comuns ficavam com o que sobrava. Os escravos ficavam com uma surra, se reclamassem.
Apesar de sua proclamação da igualdade entre todos os homens, a ordem imaginada constituída pelos norte-americanos em 1776 também estabeleceu uma divisão. Criou uma hierarquia entre homens, que se beneficiavam dela, e mulheres, que ficaram desprovidas de autoridade. Criou uma hierarquia entre brancos, que desfrutavam de liberdade, e negros e indígenas, considerados humanos de uma espécie inferior, não compartilhando, assim, dos direitos igualitários dos homens. Muitos dos que assinaram a Declaração da Independência eram senhores de escravos. Eles não libertaram escravos depois que assinaram a Declaração nem se consideraram hipócritas. Em sua visão, os direitos dos homens pouco tinham a ver com os negros.
Assim, sabemos que Harari considera injusta a ordem existente, que condena os racistas e condena esses absurdos da “ordem imaginada”. Mas o que Harari teria que explicar ele não explica: de onde surgiram essas “ordens imaginadas”? Por que a ordem imaginada que surgiu não era neutra nem justa? De onde surgiu a injustiça, os ricos e os pobres?
Para entendermos isso um pouco melhor, os leitores hão de nos perdoar, teremos que falar um pouco sobre a filosofia da história, de sua origem histórica e de onde vem a filosofia da história de Harari e porque ela não consegue enxergar além dela.
A primeira filosofia da história vem do primeiro historiador conhecido (podem ter existido outros, mas este autor que vos fala não os conhece), que foi Heródoto. Para ele a história era a história dos grandes homens, que faziam a história através de seus feitos. Depois encontramos a história como emanação de Deus. Para Santo Agostinho, a história aconteceu porque Deus assim o quis. Reconheçamos que esse tipo de história é antes de tudo monótona – não precisamos explicar nada. Apenas narrar os fatos e explicar que Deus quis que Roma acabasse e os pagãos vencessem. Porquê Deus assim o quis, é algo que não nos cabe especular.
A história que começa na Idade Média e vai para o Renascimento já se torna uma pouco melhor – são os fatores históricos que determinam os acontecimentos. Estamos acostumados com essa história – o clima, as disputas religiosas, a disputa por petróleo, a disputa por território, enfim, um ou vários fatos intervieram na história e explicam a guerra, a paz, o desenvolvimento ou mesmo o desaparecimento de nações e civilizações. O primeiro homem que rompeu com este tipo de história foi Vico. Para ele, a história é feita pelo movimento das massas humanas. Mas, porque as massas se mobilizam, o que as leva a tais e tais feitos, como a construção das pirâmides, não é explicado.
Hegel vai enxergar a história de outra forma. Para ele, a história é historia da filosofia e a filosofia é filosofia da história. E toda a história é a história da auto modificação do espírito, que acumula conhecimento e desenvolve-se a si próprio. De determinada forma, a teoria de Harari é, digamos, um ramo da teoria de Hegel. Ao invés do espírito que se auto ilumina, temos a cultura humana que evolui. Para o bem ou para o mal, essa é a história e não nos cabe julgar se ela foi justa ou injusta, se foi cruel ou boa, ela é e pronto. Sim, Harari reconhece a injustiça, mas quando vai julgar os impérios que foram criados pela história, Harari explica justamente isso – não nos cabe julgar, hoje todos somos cria desses impérios e principalmente do império criado pela cultura europeia. Lembremos, não importa que estejamos na África, na Ásia, que sejamos contra ou a favor do “euro-centrismo”. Se podemos falar em “euro-centrismo”, se podemos falar de racismo, se temos esses termos, eles nasceram deste império, do império da cultura europeia (atenção, o imperialismo tem suas armas, seu domínio econômico, mas no final de tudo trata-se da “ordem imaginada” europeia, que foi imposta ao mundo e sobre a qual nos movemos – capitalistas, comunistas, católicos, budistas, muçulmanos…).
Para Harari, as religiões – e ele inclui nas religiões o capitalismo e o comunismo – são apenas mais uma das ordens imaginadas, dentro da grande ordem europeia que sobreviveu a todas as outras anteriormente existentes.
Assim, a história é a história dos impérios em choque e de sua ascensão e queda. Mas a visão de Harari encontra falhas lamentáveis que ele passa por cima e não cuida de explicar:
- Por que a cultura do Império Romano foi destruída? Harari deixa isso de lado, como deixa de lado o fato do Império Mongol também ter caído.
- Os astecas e incas foram simplesmente derrotados por uma cultura superior e não pelas armas de aço e pelos germes que mataram mais de 90% dos indígenas das Américas?
- Por que os impérios europeus venceram a disputa com os impérios muçulmanos?
- Por que a China não foi a vencedora na batalha dos impérios e foi fragorosamente derrotada pelos europeus? Por que o Japão teve que abrir seus portos para o “Ocidente”?
O problema da explicação de Harari é que ele não leva em conta as condições materiais da existência da espécie humana. Ao não entender a diferença entre economia e cultura, entre ordem imaginada e ordem real, ao achar que a ideia é que comanda o mundo, ao invés do mundo criar as ideias, Harari se acha num beco sem saída. Assim, antes de chegarmos à última parte do seu livro, onde Harari vai explicar os possíveis desenvolvimentos da humanidade e a sua relação com a ciência, vamos explicar um pouco do que realmente move a humanidade e como se construiu a história.
[i] Assis, Machado – Memorias póstumas de Braz Cubas
[ii] Harari, Yuval Noah – Sapiens, uma breve história da humanidade, Ed. L&PM, 24ª edição.