O texto de Lênin1 se inicia com uma afirmação basilar para aqueles que entendem o que Marx e Engels apontaram no Manifesto do Partido Comunista, que a história de todas as sociedades é a história da luta de classes2, e sobre esse aspecto o autor é enfático: se as sociedades são assim baseadas “não pode haver ciência social ‘imparcial’”. Seu imperativo a respeito dessa imparcialidade está ancorado no fato de que essa luta de classes, na sociedade capitalista, tem como premissa aquilo que ele chama de “escravidão assalariada”, fato que a ciência oficial e liberal defende e ao que a teoria marxista se posiciona de forma totalmente contrária. Lênin apresentará resumidamente neste texto, os três pontos fundamentais do pensamento de Marx, que são, ao mesmo tempo, fontes e partes constitutivas dessa estrutura, são elas: (i) o materialismo histórico-dialético, cujo desenvolvimento Marx estruturou a partir do materialismo de Feuerbach e de sua compreensão e crítica do complexo sistema filosófico de Hegel; (ii) o estudo do regime econômico, com a continuação das investigações de Smith e Ricardo, e o desenvolvimento de sua teoria da mais-valia como fonte de lucro dos acumuladores capitalistas e (iii) a doutrina da luta de classes, que Marx foi capaz de deduzir em suas incursões históricas, superando as doutrinas socialistas anteriores, consideradas utópicas.
Com a escrita de quem compreendeu perfeitamente a estrutura desse pensamento filosófico e com a autoridade de quem o colocou em prática, Lênin afirma a materialidade do marxismo no sentido de que não é uma doutrina separada da realidade, como uma estrutura de ideias que não se aplica no cotidiano e na vida das pessoas, ao contrário, sua concepção é de que essa é uma doutrina exata e por isso onipotente. A descrição que ele faz parece sugerir à filosofia marxista a estatura de disciplinas como a matemática e a física, às quais não cabe o acréscimo de coisas sobrenaturais. Ele afirma:
A doutrina de Marx é onipotente porque é exata. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção integral do mundo, inconciliável com toda superstição, com toda reação, com toda a defesa da opressão burguesa. (Lênin, 1913)
Ele ainda acrescenta que ela é a sucessora legítima de tudo de melhor que a humanidade criou no século XIX, como a clássica filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês.
Ao expor as três fontes, Lênin começa pelo materialismo, afirmando que essa é a filosofia de Marx. Assim, por ser essa uma base tão firme de análise e exposição das condições da sociedade moderna, que vinha superando “as velharias medievais” e o “feudalismo nas instituições e nas ideias” – ao que podemos pontuar o ensinamento dogmático dos escolásticos e o poder soberano da Igreja Católica –, é que se tentava de todas as formas refutá-la e desacreditá-la, caluniando e defendendo o idealismo filosófico que sempre se reduz “à defesa ou ao apoio da religião”. Lênin chama a esses caluniadores de inimigos da democracia, pois certamente eram eles admiradores de todo tipo de regime absolutista, onde a religião da Igreja de Roma tinha a principal influência e concedia os seus privilégios. O grande revolucionário garante que Marx e Engels defenderam o materialismo filosófico e que eles “explicaram repetidas vezes quão profundamente errado era tudo quanto fosse desviar-se dele” (Lênin, 1913).
Ainda sobre o mesmo tema, Lênin aponta que Marx não se limitou ao materialismo do século XVIII, mas que o enriqueceu com aquilo que adquiriu da filosofia clássica alemã, como a dialética hegeliana (a qual afirmou ser coerente, mas que estava invertida) e o materialismo de Feuerbach, que foi importante para Marx no sentido de teorizar a ideia de Deus, sobretudo o Deus cristão, como uma ideia do próprio ser humano e a representação superlativa de suas maiores qualidades. Lênin afirma que a dialética, “que nos dá um reflexo da matéria em constante desenvolvimento”, foi a principal aquisição dos estudos e conhecimentos de Marx. Neste ponto vale ressaltar que Marx era um estudioso contumaz, que criticou a filosofia de Hegel somente depois de analisá-la inteiramente para, a partir dela, formular o materialismo histórico-dialético, que não é a simples inversão do sistema hegeliano, mas a sua readequação à realidade e à história de todas as sociedades humanas: enquanto Hegel afirmava a predominância da consciência sobre aquilo que é efetivo, Marx ensinou que é o contexto da realidade objetiva que molda a consciência das pessoas.
O conhecimento da natureza, Marx estendeu até o conhecimento da sociedade humana, por meio do aprofundamento do materialismo, ao que Lênin considera como “uma conquista formidável do pensamento científico”. Essa teoria científica, ele julga “notavelmente integral e harmoniosa” e demonstra o desenvolvimento das formas de vida sociais a partir do crescimento das forças produtivas. Além disso, o conhecimento social do ser humano reflete o regime econômico da comunidade em que está inserido e esse regime é a base que dá origem à superestrutura das instituições políticas que, juntamente com outras superestruturas, moldam seus hábitos e costumes, enfim, seu modo de vida. Lênin cita as formas políticas dos Estados europeus como reforço da dominação da burguesia sobre o proletariado e finaliza esse ponto dizendo que “a filosofia de Marx é o materialismo filosófico acabado, que deu à humanidade, à classe operária sobretudo, poderosos instrumentos de conhecimento” (Lênin, 1913).
O segundo ponto do texto apresenta o estudo do regime econômico capitalista que se sustenta na extração da mais-valia, que, como aponta Lênin, é a teoria que “constitui a pedra angular da teoria econômica de Marx” (1913). A obra prima da teoria marxista – O Capital, de 1867 – apresenta esse estudo do regime baseado na acumulação de capital, em contraposição ao regime feudal que constituía a materialidade da sociedade antes da atual forma de exploração da força de trabalho e de apropriação dos meios de produção.
Adam Smith e David Ricardo, que fizeram a economia política clássica e foram citados pelo autor do nosso texto, teorizaram os fundamentos do valor-trabalho, porém foi Marx quem aprofundou e desenvolveu essa ideia de forma precisa, apresentando a sua consequência prática na vida das pessoas, quando determinou o que seria aquilo que nomeou como “tempo de trabalho socialmente necessário”, demonstrando como isso estabelece o valor de qualquer mercadoria. Em condições normais de produção, o tempo de trabalho que se gasta para produzir algum produto é o que determina o valor que ele terá na sua finalização e isso impacta o trabalhador diretamente, porque não é o tempo que ele gasta para a produção, mas o tempo de trabalho socialmente necessário e isso é fundamental, segundo Marx, para compreender a exploração da mais-valia no modo de produção capitalista.
As consequências disso são verificadas na exploração da força de trabalho, quando o capitalista procura reduzir o tempo de trabalho necessário na produção de mercadorias, por meio da automação e da intensificação do trabalho, aumentando a sua taxa de mais-valia. Os trabalhadores acabam trabalhando mais horas, em meios de produção mais rápidos, produzindo uma quantidade muito maior de mercadoria e ganhando salários menores. A pressão por aumento de produtividade é outra consequência para o trabalhador, levando a condições de trabalho estressantes e jornadas de trabalhos mais longas, o que afeta sua saúde física e mental.
Além destes pontos destacados, o que a teoria de Marx apresenta como maior agravo à vida dos trabalhadores é a desigualdade econômica e a alienação, pois aquilo que uma pessoa recebe como pagamento pelo seu trabalho corresponde a uma ínfima fração do valor daquilo que produziu, pois quando negocia a venda da sua força de trabalho com o capitalista, acaba aceitando condições que favorecem apenas àquele que tem condições de comprá-la em sua acumulação. É assim que o trabalhador se torna alienado com relação ao seu próprio trabalho, pois não se identifica com aquilo que produz e muitas vezes tampouco conhece a finalidade do que está produzindo. A alienação também se estabelece na ausência de controle do trabalhador sobre os meios de produção de suas mercadorias.
Lênin argumenta, portanto, que através desse estudo, Marx identificou que as relações entre objetos defendida pelos economistas burgueses, na verdade era uma relação entre pessoas e que a troca de mercadorias estabelece a relação entre diferentes produtores onde o dinheiro acaba por assumir a forma de ligação dessa relação. É assim, portanto, que a força de trabalho se torna uma mercadoria, pois, enquanto alguns poucos detêm, por expropriação abusiva, os meios de produção, a imensa maioria acaba por ter apenas a sua força de trabalho para vender e sobreviver.
Nessa troca, o operário emprega uma pequena parte do seu dia para o seu sustento e em todo o restante trabalha gratuitamente para o capitalista, produzindo, assim, a mais-valia, que é a sua fonte de lucro e riqueza. A fim de que se possa visualizar a exploração da força de trabalho na prática, abaixo é possível conferir as tabelas com os dados coletados e compilados em 2021 pelo Instituto Latino-americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE), onde se apresenta as empresas com a maior taxa de exploração do Brasil, aqui reproduzidas apenas em parte.
Apresentamos as 250 empre¬sas com a maior taxa de explora¬ção do Brasil dentre as centenas pesquisadas pelo ILAESE. A taxa de exploração indica a divisão da riqueza produzida pela empresa entre os proprietários e os tra¬balhadores. Assim, uma taxa de exploração de 100% significa que, do total de valor agregado às mer¬cadorias ou aos serviços vendidos, metade foi apropriada pelos trabalhadores e a outra metade apropriada gratuitamente pelos proprietários da empresa e/ou Estado.
Para melhor visualização dos resultados, a taxa de exploração é indicada, também, da forma de trabalho não pago em uma jorna¬da de 8 horas. Se este trabalho não pago é, por exemplo, de 6 horas em uma dada empresa, significa que, durante uma jornada de 8 horas, em média, duas horas de trabalho foram usadas para pagar o salário e os benefícios dos trabalhadores, enquanto as outras 6 horas foram apropriadas pela empresa sem qualquer contrapartida. Este dado é apresentado em série história, de 2014 a 2020 (ILAESE, 2021, p. 27).
Ao suprimir a força de trabalho do pequeno produtor, os capitalistas aumentam potencialmente a capacidade produtiva de seus meios de produção, criando uma horda de desempregados e reunindo “centenas de milhares e milhões de operários” (Lênin, 1913) em sua rede de acumulação. A grande força do trabalho unida é gerada pelo aumento da acumulação, quando mais e mais trabalhadores se tornam dependentes do capital que, por sua vez, se encontra nas mãos de uma mínima parte de vagabundos expropriadores.
Lênin conclui essa segunda etapa afirmando que “o capitalismo venceu no mundo inteiro, mas esta vitória não é mais do que o prelúdio do triunfo do trabalho sobre o capital” (1913). Isso nos faz perceber a sua competência visionária, baseada totalmente na filosofia marxista que, por sua vez, afirma que o capitalismo é a pré-história da humanidade e que a sua consequente superação representará a concretização da liberdade real dos trabalhadores.
A terceira e última parte do texto se dedica à breve apresentação do que significa a luta de classes que, como já foi citado, constitui a história das sociedades humanas. Foi no apagar das luzes do regime feudal, quando os indivíduos se viram livres das amarras dos regimes absolutistas, é que emergiu uma nova classe social, a burguesia, e com ela um novo sistema de opressão e exploração dos trabalhadores. Foi assim, no bojo do surgimento de um novo sistema, que surgiram diversas doutrinas socialistas. Porém, as primeiras dessas teorias foram consideradas utópicas, porque apresentavam críticas ao regime capitalista, acreditando que apenas isso convenceria os capitalistas da “imoralidade da exploração”. Essas utopias não eram capazes de indicar um caminho consistente de solução para a opressão, tampouco explicavam a origem e a leis que geriam a escravidão dos assalariados no capitalismo. Pior do que isso, não eram aptas a identificar qual era a “força social capaz de se tornar criadora de uma nova sociedade” (Lênin, 1913).
Todas as revoluções que se sucederam na Europa, após a queda do feudalismo, demonstravam que a luta de classes era aquilo que movia o desenvolvimento. Lênin afirma:
Nenhuma vitória da liberdade política sobre a classe feudal foi alcançada sem uma resistência desesperada. Nenhum país capitalista se formou sobre uma base mais ou menos livre, mais ou menos democrática, sem uma luta de morte entre as diversas classes da sociedade capitalista (1913).
Foi Marx quem teve a capacidade de identificar a luta de classes e teorizá-la a ponto de identificar suas leis, seu germe e qual ente constituinte dela poderia vencê-la definitivamente. Nesse sentido não podemos nos enganar, a classe burguesa nunca foi e nunca será vitoriosa pois ela apenas segue resistindo à pressão que exerce sobre si a classe dos explorados e oprimidos. Diante disso, é importante que saibamos que aqueles que resistem demonstram que a pauta da luta está sendo apresentada pela parte que os faz resistir.
A alienação é o trunfo da classe dominante – dominante, mas não vitoriosa. As pessoas precisam, segundo o que nos mostra Lênin, aprender “a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe” (1913, grifo do autor). É por esse motivo que a educação e a organização são prementes, para que possamos encontrar, por meio da consciência de nossa própria situação social, “a força capaz de varrer o velho e criar o novo” (Lênin, 1913).
O proletariado não precisa mais procurar, pois é na teoria marxista que pode encontrar os meios de vencer a escravidão espiritual a que está submetido. “Só a teoria econômica de Marx explicou a situação real do proletariado no conjunto do regime capitalista” (Lênin, 1913).
Para finalizar, Lênin enfatiza a força das organizações independentes do proletariado, que se organizam pelo mundo inteiro. É por meio dessas organizações que se torna possível educar e instruir os trabalhadores a respeito da luta de classes; é assim que se pode realizar a libertação dos preconceitos da sociedade burguesa e alcançar uma coesão cada vez maior, medindo o alcance de suas conquistas, aumentando as forças em conjunto e crescendo “irresistivelmente”.
Notas:
1 Texto de Lênin, publicado em março de 1913.
2 Conforme nota escrita por Engels nas versões subsequentes à original do MPC, quando se fala em “história de todas as sociedades” trata-se do período da história escrita, após a dissolução das comunidades primitivas que fazem parte da pré-história humana (Max, Engels, 1998, p. 9).
Referências:
ANUÁRIO Estatístico do ILAESE: trabalho & exploração. v. 1, nº 03, outubro, 2021
São Paulo: ILAESE, 2021.
LÉNINE, V. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm Acesso em: 14 out. 2023.
MARX, K. ENGELS, F. O manifesto comunista. Tradução: Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.