Superliga europeia: a nova fase do capitalismo no futebol

O futebol, assim como qualquer outro elemento social e a própria força de trabalho humana, é uma mercadoria na sociedade capitalista. Portanto, de início, é preciso esclarecer que não há um “processo de mercantilização do futebol” ou outro reclame feito por reformistas e aqueles que se assustam com a real natureza do capitalismo. Tudo é mercadoria neste modo produtivo e partimos desta compreensão, distinta das demais análises que a esquerda vem apresentando sobre o caso da Superliga europeia. Dito isso, está claro que o esporte mais popular do mundo está passando por uma histórica crise institucional e econômica, um reflexo da crise do sistema. Neste sentido, o futebol, tal como o conhecemos no continente que inventou este jogo, está prestes a passar por uma ruptura que altera seu caráter esportivo e joga no lixo a sua própria história.

Explicamos. No último domingo, 18 de abril, 12 dos clubes que mais lucram na indústria deste jogo (Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madrid, Liverpool, Manchester City, Chelsea, Manchester United, Tottenham, Arsenal, Juventus, Inter de Milão e Milan) anunciaram a criação da Superliga Company, um novo campeonato europeu desfiliado das entidades que controlam o esporte[1].

Imagem: BBC

Alguns destes clubes e seus novos donos

É recorrente uma análise torpe sobre os clubes europeus. Isso ocorre quando não se compreende tais clubes além das corporações bilionárias que hoje controlam estas agremiações. De fato, estes clubes se tornaram tubarões para os clubes menores. Entretanto, ao nos debruçarmos sobre o desenvolvimento histórico desses mesmos clubes, veremos que eles se assentam sobre uma profunda base operária e convivem, atualmente, em um cabo de guerra, que apresenta um caráter dialético. Ao mesmo tempo que se desenvolvem como mais uma célula do mercado, são expressões de toda uma classe, de um determinado grupo ou até mesmo de todo um povo, que, por vezes, só possuem o espaço da arquibancada para se manifestarem.

Mandatários dos 12 clubes dissidentes da Superliga Europeia. Imagem: Infografia ge

Dentre os 12 clubes, podemos nos atentar, por exemplo, ao Manchester United, oriundo do seio da classe trabalhadora, em especial, um grupo de operários dos armazéns da Lancashire and Yorkshire Railway, fundado em 1878, com nome de Newton Heath L&YR Football Club. Em pouco tempo, este obteve a realização de seus jogos transformados em reuniões da classe trabalhadora da cidade. Mesmo que ainda em seus primeiros anos tenha sido comprado pelo empresário da região e mudado seu nome para Manchester United Football Club, durante os anos vindouros continuou tendo na classe trabalhadora seu eixo. Os trabalhadores de Manchester não se faziam presentes apenas nas arquibancadas no clube, mas também no elenco de jogadores. Nos anos 1950, o lendário treinador Matt Busby levou ao clube a política que guiou o United por suas décadas mais vitoriosas: estabelecer que o clube, como fruto da classe trabalhadora, deveria buscar seus atletas na própria classe que o sustenta. Assim, foi formado um dos maiores times da história inglesa, constituído de jovens trabalhadores, que ficaram conhecidos como os Busby Babes.

Contudo, o Manchester United, este clube histórico do operariado de Manchester e maior campeão inglês, foi se tornando, gradativamente, propriedade da família Glazer, a partir de 2005. Primeiro pelo pai Malcolm e atualmente pelo filho, Joel Glazer. Esta é uma família norte-americana, alheia à história dos Red Devils, que controla, além do clube, a holding imobiliária First Allied Corporation, a holding financeira e petrolífera HRG Group (fundada por George W. Bush) e os Tampa Bay Buccaneers, time de futebol americano. A aquisição do clube pela família Glazer gerou uma onda de manifestações contrárias entre os torcedores, com a frase “Love United Hate the Glazers” e com as cores verde e amarela que remetem ao antigo Newton Heath L&YR Football Club. A ala mais radical dos torcedores iniciou um movimento que reivindicava que o clube fosse devolvido para os torcedores, literalmente, refundado. Esse movimento acabou levando essa camada de maioria trabalhadora a romper com o United e fundar um novo clube, criado e gerido pelos trabalhadores de Manchester. O clube fundado por esses torcedores, o United of Manchester, aglutina todos aqueles que compartilham do ódio pelo futebol moderno.

Outro grande time, o Liverpool Football Club, fundado em 1898 por um empresário que buscava um modo de usar seu estádio vazio, se tornou a maior expressão da classe trabalhadora no futebol inglês. Durante os anos de ataques aos trabalhadores ingleses, perpetrados pelo governo de Margareth Thatcher, na década de 1980, as cidades do noroeste do país eram o coração industrial da Inglaterra, e foi das cidades de Manchester e Liverpool o centro da insatisfação contra o governo. Eram nas arquibancadas do clássico de North West Derby que torcedores rivais se uniram em ódio ao Estado burguês britânico.

No mesmo processo de domínio das grandes corporações, o Liverpool FC tornou-se propriedade da Fenway Sports Group, uma empresa esportiva também norte-americana, fundada em 2001 em Delaware. Além do Liverpool, este grupo privado controla o Boston Red Sox da MLB, liga de beisebol estadunidense e outros clubes esportivos variados, sendo propriedade de John W. Henry e Tom Werner.

O Chelsea, do oeste de Londres, sempre foi um clube intermediário da Inglaterra. Se a Superliga fosse criada no início dos anos 1990, certamente não teria sido convidado para compor o novo império da bola. Entretanto, em 2003, tornou-se propriedade do russo-israelense Roman Abramovich, um dos bilionários oriundos da queda do muro de Berlim. Abramovich é dono da empresa de investimentos privados Millhouse LLC, com um patrimônio líquido de US$12,9 bilhões (2019).

O Arsenal, do distrito de Highbury em Londres, tradicional clube inglês, hoje pertence à Kroenke Sports & Entertainment, uma empresa de entretenimento de Denver, no Colorado (EUA). Fundada em 1999, esta empresa tem outras seis franquias profissionais de esportes, três estádios, quatro canais de televisão, além de braços em meios digitais.

Quanto aos italianos da Superliga, vemos outro clube intimamente ligado à classe trabalhadora, que o usou como seu objeto de expressão e luta. A Internazionale Milano foi a expressão não só dos trabalhadores regionais, mas do sentimento de pertencimento e solidariedade de uma classe que não respeita as fronteiras. Sendo fundado em 1908, o clube tinha como missão representar e acolher todos os trabalhadores do mundo, indo contra o clube rival da cidade, o A.C. Milan, que só aceitava em seu interior os italianos. O nome da Internazionale traduz sua bandeira. Porém, atualmente, a Inter é de propriedade do imperialismo chinês, a partir da empresa privada Suning Holdings Group, do bilionário Zhang Jindong, o 9° homem mais rico da China. Esta é uma empresa que faz múltiplos investimentos para o Estado chinês, de infraestrutura a cultura, tecnologias, esportes e do mercado financeiro.

Os 12 clubes possuem suas histórias, contradições e seus novos donos, processos que valem ser profundamente conhecidos pelos que acompanham semanalmente futebol. Isso nos mostra o enraizamento destas agremiações na classe trabalhadora europeia e o cabo de guerra que os torcedores realizam com as diretorias capitalistas destes clubes.

A Superliga Company

 Esta companhia é encabeçada pelo presidente do Real Madrid, o engenheiro, político e presidente da ACS (império da construção civil espanhol), Florentino Pérez. Segundo o El País[2], com o aporte de diversos grupos imperialistas, como o banco JPMorgan (um dos responsáveis pela miserável crise imobiliária de 2008 nos Estados Unidos) e a financeira Key Capital, a promessa de Pérez e da cúpula da Superliga é distribuir, inicialmente, 3,525 bilhões de euros (cerca de 23,58 bilhões de reais) entre os clubes da competição. A distribuição, caso sejam 15 participantes (os 12 fundadores mais os três convidados) ficaria assim: 350 milhões de euros para seis clubes, 225 milhões para quatro, 112,5 milhões para dois e 100 milhões para três clubes. A intenção da corporação é iniciar a competição em 2022. Comparativamente, a premiação que a UEFA (União das Associações Europeias de Futebol) oferece ao campeão do principal campeonato de clubes do mundo, a UEFA Champions League, é de 150 milhões de euros.

Quanto aos direitos de transmissão, a Superliga geraria cerca de 4 bilhões de euros. Esse montante seria distribuído em 65% para os clubes fundadores, 20% por méritos esportivos no torneio e 15% para a distribuição comercial. Os clubes da Superliga receberão, ao menos, cerca de 60 milhões de euros pela participação e o vencedor levaria pouco mais de 250 milhões de euros. A investigação dos jornais espanhóis também afirma que será a plataforma de streaming DAZN que comprará os direitos de imagem.

Em suma, os donos dos 12 clubes estão em busca de maiores taxas de lucros, em meio a pandemia que afeta seus cofres, mas também de maiores poderes políticos no mundo da bola. Com isso, a Superliga traz em seu regulamento a impossibilidade da disputa desportiva entre estes clubes contra os intermediários e os menores. Assim, será vetado o rebaixamento dos fundadores e o ingresso de clubes que não forem convidados por Pérez e seus pares.

Por isso, compreendemos a Superliga como expressão de uma nova fase do capitalismo no futebol. Esta nova fase, que começou a ganhar força a partir de 1990, significa o fim de qualquer controle social dos clubes. Embora as torcidas ainda sejam o coração deste esporte, elas deixaram de ter qualquer relevância organizacional, primeiramente nos grandes clubes europeus e, como efeito dominó, nos demais clubes pelo mundo.

Anteriormente, mesmo com os problemas de gestões e os clubes financiados por pequenos e médios empresários, que aportavam financeiramente por uma devoção ao time, os clubes possuíam caráter associativo, tal como foram criados. Em nosso tempo, os clubes passaram a ser controlados por um grande dono, seja um sheik árabe ou um industrial americano, ou por conglomerados e acionistas dos mais variados. Além da questão passional, sempre levantada pelos torcedores, que atacam esses proprietários de não terem qualquer raiz na comunidade onde vive o clube e sequer conhecerem a história da associação, a fundamental problemática é a transformação total dos clubes em fantoches imperialistas para seus donos. Isto é, a abertura de novos mercados, como o asiático e o estadunidense; os acordos com os grupos de comunicação que transmitem as partidas; e todos os contratos comerciais, desde as empresas de material esportivo às empreiteiras, que derrubam os antigos estádios – muitas vezes tombados pelo patrimônio cultural – para a construção de novas arenas multiuso, onde a entrada dos trabalhadores é proibida pelo preço dos ingressos. Tudo isso compõe o universo de interesse das novas diretorias dos clubes, nesta nova fase do capitalismo no futebol. O campo, a bola, a comunidade e a paixão pelos clubes estão apenas nas vidas dos torcedores anônimos.

Se antes tais empresários da comunidade de cada clube tinham suas participações em pequenas ações, como donos pulverizados entre milhares de sócios com cotas individuais, sendo estes, em sua maioria, trabalhadores da região, hoje esse controle é total dos capitalistas locais e estrangeiros. Este é um fato que se confere com mais clareza na Inglaterra, mas que se replica em todas as principais ligas europeias. O modelo da Superliga torna-se, então, a expressão esportiva disso, copiada pelos seus donos dos campeonatos do esporte norte-americano, como NBA e NFL, que são altamente lucrativos. Esses clubes, e agora sua liga, são exemplos da megalomania imperialista do capitalismo e enormes lavanderias de dinheiro no futebol.

A declaração do ex-lateral direito inglês, Gary Neville, sintetiza esse complexo de questões:

Superliga ou UEFA: uma falsa oposição

A FIFA, entidade máxima do esporte, embora tenha, inicialmente, se colocado contrária, agora está aberta ao diálogo. Já a UEFA está travando guerra contra os 12 clubes e se pronunciou afirmando que excluirá os clubes de suas competições e da federação, transformando-os em piratas no mundo da bola. Além disso, a UEFA também definiu que proibirá os jogadores que atuarem na Superliga de representarem as suas seleções nacionais, tanto nas competições europeias, como a Eurocopa e a Nations League, quanto nas da FIFA, como a Copa do Mundo. Se isso se efetivará, não sabemos, mas será realmente possível a UEFA se manter sem estes clubes em seus campeonatos? E sem Cristiano Ronaldo jogando por Portugal, De Bruyne jogando pela Bélgica e Toni Kroos jogando pela Alemanha? Arriscamos dizer que não!

Evidentemente, não se deve ter ilusões nos interesses da UEFA ou dos clubes que não foram convidados para o grupo dos 12, que se transformará em 15 ou 20 com os demais convidados. Os interesses da UEFA, das ligas nacionais e das diretorias dos clubes que ficaram de fora não se sintetizam na defesa do futebol democrático, como estão pregando. Seu ódio contra a Superliga é meramente econômico e político, como não poderia ser diferente. Estão vendo escorrer pelas suas mãos não só os clubes mais rentáveis do mundo como o próprio esporte, pois, como dissemos, a própria Champions League não existe sem Real Madrid, Barcelona, Milan, Liverpool, Manchester United e companhia. Não existe esportiva e, principalmente, financeiramente.

Já a revolta das torcidas, jogadores, ex-jogadores e de todo apaixonado pela bola é, na realidade, o fato da Superliga simplesmente mandar a história deste jogo para o lixo em nome de mais lucros para os 12 escolhidos pelos deuses do futebol. Para muitos, isso significa jogar a sua própria história no lixo, pois essas pessoas vivem sua comunidade, seu local de trabalho e estudo, toda a sua vida, em torno destes clubes e campeonatos.

Todas as torcidas dos 12 clubes da Superliga estão se manifestando contra suas diretorias, como fizeram os torcedores do Liverpool FC.

Portanto, além de todos os fatores econômicos e políticos, estas disputas entre as frações burguesas, visto a influência que a indústria do futebol tem nos Estados nacionais e nos mercados pelo mundo, mexem com a subjetividade dos aficionados, a passionalidade desse jogo. Ela dará fim a magia do imponderável que o futebol promove a cada temporada, quando, por exemplo, um clube menor consegue ganhar uma copa nacional ou estar entre os melhores da liga, tendo o direito de disputar um campeonato continental. Isso significa o fim da troca entre as torcidas, o acesso ao espetáculo não apenas do jogo, mas da experiência social que é vivida em um estádio de futebol. Isso também foi expresso por alguns atletas, como o alemão Mesut Ozil e o português, melhor do mundo em 2001, Luís Figo:

As crianças crescem sonhando em ganhar a Copa do Mundo e a Liga dos Campeões – não uma Superliga. O prazer dos grandes jogos é que eles acontecem apenas uma ou duas vezes por ano, não todas as semanas. Realmente difícil de entender para todos os fãs de futebol lá fora.

A chamada «Superliga» é tudo menos «Super». Este movimento ganancioso e insensível seria um desastre para as nossas bases, para o futebol feminino e para a comunidade futebolística em geral… apenas para servir os proprietários interessados, que há muito deixaram de se preocupar com os seus fãs, e com total desrespeito pelo mérito desportivo. Trágico.

É importante frisar que não há reais paralelos para esta ação. Mesmo que alguns possam comparar com a Lei Bosman de 1995, que deu o passe contratual ao atleta, ou com a Copa União de 1987, no Brasil, não se trata da mesma questão. A Copa União, por exemplo, surgiu da impossibilidade da CBF em realizar o campeonato brasileiro daquele ano e, mesmo com restrições aos clubes menores, não excluía todos para a formação de um grupo dos mais ricos. Isso quem faz é a Superliga Company.

Diante de tudo isso, é evidente que as posições contrárias à Superliga não podem significar uma ideia de que os moldes tradicionais da disputa do futebol ou o antigo modelo de gestão dos clubes são os que defendemos. O saudosismo ao futebol de outrora existe porque, de fato, era melhor jogado, com mais craques em campo, principalmente no Brasil. Existe porque o ingresso era acessível ao povo trabalhador, que lotava as arquibancadas de cimento em todo o mundo. Mas os problemas eram também brutais.

O futebol foi, continua e seguirá sendo uma mercadoria do capitalismo, até que toda a sociedade deixe de ser o reino da necessidade e passe ao reino da liberdade, quando este sistema for derrotado para a construção do socialismo internacional. Só desta maneira teremos a verdadeira democratização de todos os esportes, das artes, da cultura, da ciência e da educação em geral. O futebol faz parte disto, não só pela paixão que gera, mas pelo processo civilizacional que impulsiona, como aponta a sociologia do esporte.

Por isso, se revoltar contra a Superliga europeia ou contra qualquer outra ação elitista dos clubes e das entidades ligadas à FIFA não pode ser em um sentido romântico ou reformista. Este jogo carrega os aspectos de todo o estágio da economia burguesa e da luta de classes. Ou seja, nenhuma proposta que não se conecte com a destruição do capitalismo pode servir para a existência popular do jogo. Ignorar isso, achando que o futebol é um mundo à parte ou chamando os problemas por outros nomes, não muda a realidade. O futebol que queremos virá no futuro, no seio da sociedade socialista, em um mundo sem classes sociais e sem propriedade privada, sem o controle de homens como Florentino Pérez ou Aleksander Ceferin – presidente da UEFA – em nosso jogo.

[1] Redação do GE e AFP. Doze grandes clubes da Europa anunciam a criação da Superliga em comunicado, 18/04/21. Disponível em: <https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/doze-grandes-clubes-da-europa-anunciam-a-criacao-da-superliga-em-comunicado.ghtml>. Acesso em: 19 de abril de 2021.

[2] MOÑINO, Ladislao J. Guerra total no futebol europeu: nasce a Superliga, 18 de abril de 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/esportes/2021-04-19/guerra-total-no-futebol-europeu-nasce-a-superliga.html>. Acesso em: 19 de abril de 2021.