Pensar a obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, originalmente publicada em 1844, como atual pode parecer uma contradição, na medida em que se trata de um estudo realizado por Friedrich Engels acerca de um contexto social particular vivido há mais de um século e meio. Se for levada em conta a interpretação de que a classe trabalhadora deixou de existir ou de que o marxismo faliu como método explicativo da realidade, certamente essa grande obra da juventude de Engels estaria superada. Contudo, se o capitalismo for entendido como um modo de produção da vida ainda existente, ou compreendendo que o conteúdo da lógica de exploração dos trabalhadores permanece similar àquele descrito por Engels nos anos 1840, fica evidente a atualidade dessa obra.
Essa atualidade pode ser indicada a partir de dois aspectos. Por um lado, embora escrita em um momento de elaboração inicial das análises de Marx e Engels, a obra aponta, por meio da descrição da situação concreta da classe trabalhadora inglesa, elementos que subsidiam o desenvolvimento das análises econômicas posteriores dos formuladores do materialismo histórico. Tais elementos são perceptíveis em especial no desenvolvimento das explicações acerca das contradições e da dinâmica do capitalismo. Por outro lado, a obra constitui-se em um estudo empírico detalhado da situação da classe trabalhadora, sendo fundamental no sentido de mostrar tanto exemplos das contradições do capitalismo no século XIX, como elementos vigentes ainda no século XXI.
Os trabalhadores na revolução industrial
Engels estudou para sua obra grandes núcleos industriais que passaram por profundas transformações urbanas. Segundo Engels, com a revolução industrial, que transformou a sociedade em seu conjunto, a organização da economia passou das pequenas oficinas caseiras para as grandes indústrias. Antes da introdução das máquinas, a fiação e a tecelagem das matérias-primas tinham lugar na casa do trabalhador. Nessas circunstâncias, as famílias tecelãs viviam, em geral, nos campos vizinhos às cidades e o que ganhavam estava voltado para a sua existência.
Com a introdução do tear mecânico e de outras inovações tecnológicas, os trabalhadores foram agrupados em grandes plantas industriais, paulatinamente diminuindo a quantidade de trabalhadores artesanais. Segundo Engels (2008, p. 48):
“tornou-se possível produzir muito mais fio: se antes um tecelão ocupava sempre três fiandeiras, não contava nunca com fio suficiente e tinha de esperar para ser abastecido, agora havia mais fio do que o número dos trabalhadores ocupados podia processar”.
Os trabalhadores, diante da instalação de grandes indústrias, se viram obrigados a trabalhar para outras pessoas, vendendo sua força de trabalho nas grandes fábricas que surgiam. Em sua obra, Engels explica que:
“Decidiu-se nos principais setores da indústria inglesa a vitória do trabalho mecânico sobre o trabalho manual e toda a sua história recente nos revela como os trabalhadores manuais foram sucessivamente deslocados de suas posições pelas máquinas” (ENGELS, 2008, p. 50).
Nesse processo de dinâmica da produção capitalista, os capitais e a produção foram centralizados em torno da nova indústria, que concentrou a propriedade em poucas mãos. Essa indústria necessitava de enormes capitais, com os quais criou gigantescos estabelecimentos, arruinando a pequena burguesia artesã e colocando a seu serviço as forças naturais, expulsando do mercado os trabalhadores manuais isolados. Uma das consequências desse processo de transformação na organização e divisão do trabalho foi o surgimento das grandes concentrações urbanas. Segundo Engels (2008, p. 64), “o grande estabelecimento industrial demanda muitos operários, que trabalham em conjunto numa mesma edificação; eles devem morar próximos e juntos – e, por isso, onde surge uma fábrica de médio porte, logo se ergue uma vila”. Engels (2008, p. 65) aponta que nas grandes cidades a propriedade foi progressivamente ficando altamente centralizada, fazendo com que “nelas só existe uma classe rica e uma classe pobre, desaparecendo dia a dia a pequena burguesia”.
Em obras posteriores, o tema é retomado tanto por Marx como por Engels. Marx, em uma das passagens mais conhecidas de O capital, analisa a chamada acumulação primitiva, um processo histórico de acumulação de capital. Nessa análise, Marx aponta que os cercamentos de terras concorreram para a expulsão dos camponeses de suas terras e obrigaram-nos a vender a sua força de trabalho. Formou-se, assim, uma massa de trabalhadores desempregados, muitos dos quais precisavam pedir esmolas ou mesmo roubar para sobreviver. Outro aspecto do processo tem a ver com as leis que obrigavam esses setores expropriados de suas terras a trabalharem nas manufaturas, sob penas que variavam da prisão até a mutilação de partes do corpo. O êxodo rural levou muitos camponeses a migrarem para áreas empobrecidas das grandes cidades, onde se aglomeravam os trabalhadores.
Os trabalhadores nas grandes cidades
Na obra de Engels, percebe-se que as chamadas “grandes cidades” têm grande destaque, principalmente Londres, com seus 2,5 milhões de habitantes, considerada então “capital comercial do mundo”. Em sua obra Engels descreve o que via nesta cidade:
“em todas as partes, indiferença bárbara e grosseiro egoísmo de um lado e, de outro, miséria indescritível; em todas as partes, a guerra social: a casa de cada um em estado de sítio; por todos os lados, pilhagem recíproca sob a proteção da lei; e tudo isso tão despudorada e abertamente que ficamos assombrados diante das consequências das nossas condições sociais” (ENGELS, 2008, p. 68-9).
Essa situação não ocorria apenas em Londres, mas também em Manchester, Leeds e outras grandes cidades, onde, segundo Engels (2008, p. 69), travava-se uma “guerra social” em que “as armas de combate são o capital, a propriedade direta ou indireta dos meios de subsistência e dos meios de produção”. O ônus dessa situação recaia sobre os trabalhadores. O desemprego era uma condição permanente entre as populações pobres, e aquele que conseguia trabalho recebia “salário apenas suficiente para o manter vivo” (ENGELS, 2008, p. 69). Em uma situação de maior desespero, alguns desempregados se arriscavam em roubos; mas a muitos nada restava além de “morrer de fome, caso em que a polícia tomará cuidado para que a morte seja silenciosa para não chocar a burguesia” (ENGELS, 2008, p. 69).
Nessas grandes cidades poderiam ser encontrados “bairros de má fama”, onde estavam concentrados os trabalhadores. De forma geral, era designada para os trabalhadores “uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinho” (ENGELS, 2008, p. 70). Esses bairros tinham “as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular” (ENGELS, 2008, p. 70). Nesses bairros “as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgoto ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos” (ENGELS, 2008, p. 70). Engels descreve com detalhes muito vivos uma situação vivenciada pelos trabalhadores.
Engels aponta em sua obra casos noticiados pela imprensa que descrevem situações dramáticas vividas pelos moradores dessas áreas. Um dos casos trata de dois meninos que “famintos, haviam roubado numa loja um pedaço de carne bovina meio cozida, que devoraram imediatamente” (ENGELS, 2008, p. 74). O juiz, recolhendo mais informações sobre o caso, descobriu que, “viúva de um antigo soldado, que depois servira à polícia, a mãe dos meninos, após a morte do marido, vivia na miséria com os dois filhos” (ENGELS, 2008, p. 74). Descreve então a situação de uma família, constituída por seis crianças, que vive “literalmente empilhada” em um cômodo minúsculo, sem móveis, e com quase nada para comer. Conforme descreve Engels, “a pobre mãe contou que, no ano anterior, vendera a cama para comprar comida; os lençóis, deixara-os empenhados na mercearia – em suma entregara tudo em troca de pão” (ENGELS, 2008, p. 74).
Essas são tão somente situações ilustrativas, havendo alguns trabalhadores em situações um pouco melhores, bem como outros em situações ainda piores. Havia, por exemplo, em Londres, cerca de 50 mil pessoas que não tinham onde morar. Os alojamentos pagos estavam, segundo Engels (2008, p. 75): “cheios de camas, de alto a baixo: num quarto, quatro, cinco e seis pessoas, quantas caibam e, em cada cama, empilham-se quatro, cinco ou seis pessoas, também quantas caibam – sadias ou doentes, velhos e jovens, homens e mulheres, sóbrios e bêbados, todos misturados”.Aos que não tinham como pagar esse tipo de alojamento restava dormir “em qualquer lugar, nas esquinas, sob uma arcada, num canto qualquer onde a polícia ou os proprietários os deixem descansar tranquilos” (ENGELS, 2008, p. 75). Diante desse quadro, Engels chegou à seguinte conclusão:
“As grandes cidades são habitadas principalmente por operários, já que, na melhor das hipóteses, há um burguês para dois, muitas vezes três e, em alguns lugares, quatro operários; esses operários nada possuem e vivem de seu salário, que, na maioria dos casos, garante apenas a sobrevivência cotidiana. […] Por regra geral, as casas dos operários estão mal localizadas, são mal construídas, mal conservadas, mal arejadas, úmidas e insalubres; seus habitantes são confinados num espaço mínimo e, na maior parte dos casos, num único cômodo vive uma família inteira; o interior das casas é miserável: chega-se mesmo à ausência total dos móveis mais indispensáveis” (ENGELS, 2008, p. 115).
Concorrência e emprego
Outro ponto abordado por Engels nessa obra, e que posteriormente seria destacado no conjunto das produções marxistas, tem a ver com o que aparece no texto como concorrência, ou seja, “a expressão mais completa da guerra de todos contra todos que impera na moderna sociedade burguesa” (ENGELS, 2008, p. 117). Essa guerra “não se trava apenas entre as diferentes classes da sociedade, mas também entre os diferentes membros dessas classes”, ou seja, “os operários concorrem entre si tal como os burgueses” (ENGELS, 2008, p. 117). Dessa forma, segundo Engels (2008, p. 117-8), “o tecelão que opera um tear mecânico concorre com o tecelão manual; o tecelão manual desempregado ou mal pago concorre com aquele que está empregado ou é mais bem pago e procura substituí-lo”.
Pode-se descrever com mais detalhes a situação do proletariado, que se encontra, nas palavras de Engels (2008, p. 118), “desprovido de tudo”, afinal, na sociedade capitalista, “a burguesia se arrogou o monopólio de todos os meios de subsistência, no sentido mais amplo da expressão”, ou seja, “aquilo de que o proletariado necessita, só pode obtê-lo dessa burguesia, cujo monopólio é protegido pela força do Estado”. Essa situação reflete-se inclusive na educação dos filhos. Segundo Engels (2008, p. 119), “ao operário fabril é preciso garantir um salário que lhe permita educar os filhos para um trabalho regular – mas apenas o suficiente para que não possa dispensar o salário dos filhos e não faça deles algo mais do que operários”.
O capital encontra também mecanismos para diminuir os salários, o que passa pelo emprego da força de trabalho infantil e feminina. Engels apresenta a seguinte consideração:
“numa família em que todos trabalham, cada um pode contentar-se com um pagamento proporcionalmente menor e a burguesia, com vistas na redução dos salários, aproveitou-se largamente da oportunidade, propiciada pela mecanização, de empregar mulheres e crianças” (ENGELS, 2008, p. 119).
O salário, nesse caso, “acaba por nivelar-se numa média, com base na qual uma família em que todos trabalham vivem razoavelmente bem, ao passo que aquela que conta com poucos membros empregados vive bastante mal” (ENGELS, 2008, p. 119). O operário termina por se submeter a essa lógica, mesmo tendo de morar em um lugar pior ou mesmo passar por dificuldades. Com isso, a burguesia consegue o número de operários necessários para garantir o funcionamento de suas indústrias; mas, segundo Engels (2008, p. 119):
“se há mais operários que aqueles que à burguesia interessa empregar, se, ao término da luta concorrencial entre eles, ainda resta um contingente sem trabalho, esse contingente deverá morrer de fome, porque o burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com lucro o produto de seu trabalho”.
Engels apresenta aqui, de forma ainda bastante inicial, uma das leis fundamentais expostas posteriormente em O capital:
“se a procura por operários cresce, seu preço sobe; se diminui, seu preço cai; e se a procura cai a ponto de um certo número de operários não ser vendável, eles ficam como que em estoque e, como não há emprego que lhes forneça meios para subsistir, morrem de fome” (ENGELS, 2008, p. 119).
Essa é uma primeira tentativa de apresentar o que viria a ser conhecido como exército industrial de reservas. Engels, da mesma forma, percebe que o trabalho (ou o trabalhador, ou a força de trabalho, não há tanta clareza acerca disso no texto) também é uma mercadoria, inserida no mercado capitalista. Para Engels, o que permite antecipar essas conclusões é justamente a observação empírica da situação dos operários, suas dificuldades e, principalmente, a relação entre as duas classes fundamentais no processo de produção de valor: burgueses e proletários.
Engels e sua atualidade
Essas elaborações mostram-se atuais a partir de diferentes aspectos. Primeiro, porque denunciam a situação dos trabalhadores ingleses em determinado período, mostrando sua dinâmica de lutas e se constituindo em um importante documento da situação social e política que antecedeu importantes conquistas dos trabalhadores, como redução da jornada de trabalho, proibição do trabalho infantil, entre outras. Em segundo lugar, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra pode ser utilizada como referência para se verificar as mudanças e permanências nas condições dos trabalhadores, entre as quais a situação de marginalização urbana e sua participação incipiente enquanto força organizada nos processos aos quais pode-se atribuir o nome de revolução industrial.
Um terceiro aspecto tem relação com o fato de que essa obra de Engels aponta elementos centrais do funcionamento do capitalismo, como a concorrência entre as diferentes classes e suas próprias contradições, sejam possuidoras ou não dos meios de produção. Com isso, é possível compreender as transformações ocorridas no capitalismo ao longo dos últimos dois séculos, bem como suas permanências nessa forma de produção e reprodução da vida humana. Ademais, pode-se compreender, a partir da análise dos fundamentos do capitalismo analisado por Engels, as formas de produção do trabalho e a produção do valor, comparando esses aspectos com o que ocorre contemporaneamente.
Por fim, e talvez a mais importante contribuição desta obra de Engels — junto ao seu ensaio sobre os fundamentos da economia política escrito na mesma época —, tem a ver com o fato de ser a primeira análise empírica das contradições do capitalismo, feita a partir do método que viria a ser aperfeiçoado e conhecido como materialismo histórico. Na obra de Engels são apresentados fundamentos das análises de O capital, como valor da força de trabalho, leis de acumulação, exército industrial de reserva, entre outros pontos. Ainda que de forma incipiente, Engels aplica pela primeira vez o método que seria utilizado por Marx em sua obra-prima. Por outro lado, elementos que viriam a ser considerados como inovações metodológicas da pesquisa em História, como o uso de fontes orais e impressas, estão presentes de forma consistente nessa obra de juventude de Engels.
A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels, constitui-se em um clássico para quem quer conhecer a história da classe trabalhadora e tomar contato com o processo de elaboração do marxismo, especialmente no que se refere ao processo de exploração do trabalho, situação à qual os trabalhadores são submetidos e, principalmente, de que forma organizam sua reação contra a exploração capitalista.
Referências:
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.