O surpreendente resultado da eleição presidencial dos EUA proporciona mais um exemplo do tipo de mudanças bruscas e repentinas que estão implícitas na situação. Até o último minuto os especialistas da mídia fizeram tudo o que era possível para demonstrar que as pesquisas apontavam para uma vitória de Harris, embora por uma margem estreita.
Mas estavam errados.
Na madrugada de 6 de novembro de 2024, quando Donald Trump se aproximou do limite de 270 votos do colégio eleitoral para se tornar o novo presidente eleito dos Estados Unidos, essa ilusão foi destruída. Mais uma vez, milhões de norte-americanos compareceram para votar em Trump.
Isso não deveria acontecer. A classe dominante dos EUA — firmemente apoiada pelos governos da Europa — estava determinada a mantê-lo fora do cargo, por bem ou por mal. Depois que Trump foi derrotado na eleição de 2020, fez-se de tudo para impedi-lo de concorrer novamente.
Tentaram mantê-lo fora das urnas em diferentes estados, com a condenação por 34 acusações criminais e mais de 50 pendentes. Trump foi condenado a pagar centenas de milhões de dólares em processos civis relacionados a fraude empresarial e a um processo de difamação decorrente de uma alegação de estupro.
Mas cada acusação criminal lançada contra ele só serviu para aumentar seu apoio. As alegações simplesmente ricochetearam nele. A cada processo judicial, seu apoio nas pesquisas aumentava. Todos os inúmeros ataques contra ele ricochetearam e se voltaram contra aqueles que eram vistos – corretamente – como envolvidos em uma conspiração para impedi-lo de retornar à Casa Branca. Todas as cartas estavam contra ele. A mídia estava virtualmente unida na oposição a Trump.
A seguir está uma lista do número de grandes jornais e revistas e suas posições em relação aos dois candidatos:
199 com Kamala Harris;
16 com Trump;
28 sem endosso;
1 outros;
Total: 244.
Vemos com isso que praticamente toda a mídia de massa estava contra ele. A elite dominante confortava-se com a ideia de que “ele nunca conseguiria”. Um “criminoso condenado”, conforme argumentavam, nunca poderia ganhar a presidência. Mas ele ganhou. Isso explica o choque profundo que esse resultado eleitoral causou para a classe dominante norte-americana.
Perplexidade
Trotsky uma vez afirmou que a teoria é a superioridade da previsão sobre o espanto. Esta observação veio à minha mente esta manhã, quando li um comentário interessante de um repórter da BBC:
“Um agente político democrata em DC envia mensagens de texto para dizer que o partido ‘precisa expulsar os esnobes elitistas de DC para começar’. Outros me disseram a mesma coisa, mas de forma menos direta. Embora elogiem os esforços da campanha, sentem que o partido como um todo tem um ‘problema de imagem’ em um momento em que coisas básicas e cotidianas, como o custo de vida, estão na mente da maioria dos eleitores.
Este desespero democrata traz à mente uma conversa que tive com um republicano em um comício de Trump que disse que seu candidato havia ‘reinventado’ completamente o Partido Republicano, desde seu estereótipo de eleitor de clube de campo, para apelar às famílias da classe trabalhadora, enquanto os democratas se tornavam o ‘partido de Hollywood’.
Estas são generalizações importantes que agora são compartilhadas pelos republicanos publicamente e por alguns democratas no privado.”
Carecendo de conhecimentos elementares da dialética, os estrategistas do capital estão sempre olhando para a superfície da sociedade, completamente inconscientes da fúria que está ganhando força sob seus pés.
Não conseguiram compreender as causas subjacentes do chamado “movimento Trump”. Aparentemente, é tudo uma questão de imagem. Mas o problema é que a imagem do Partido Democrata reflete de perto a realidade subjacente. Existe agora um enorme abismo existe entre a elite de Washington e a massa do povo: esta foi uma espécie de “Revolta dos Camponeses”, uma insurgência plebeia e um voto esmagador de desconfiança na ordem existente.
Um movimento contraditório
Frequentemente ouço pessoas da esquerda dizerem que Trump e Harris são “farinha do mesmo saco”. Isso é verdadeiro e falso. É evidente que Donald Trump é um bilionário e, portanto, defende os interesses dos ricos e poderosos.
No entanto, afirmar que Harris e Trump são ambos políticos burgueses reacionários e que há muito pouco ou nada a escolher entre eles é, francamente, afirmar o óbvio. Esta definição inicial não esgota a questão que inevitavelmente surge: como se explica o entusiasmo que Trump conseguiu despertar entre milhões de trabalhadores?
É um estranho paradoxo que um bilionário como Trump pudesse se apresentar com êxito como o campeão dos interesses da classe trabalhadora. Ele é, claro, um representante fiel de sua classe – o 1% de super-ricos que possuem e controlam os Estados Unidos.
Durante muito tempo os democratas conseguiram se passar por representantes políticos da classe trabalhadora, mas as décadas de experiência amarga convenceram milhões de trabalhadores de que isso é mentira.
Os trabalhadores estão procurando uma alternativa radical, que poderia ter sido fornecida por Sanders se ele tivesse decidido romper com os democratas e se posicionar como independente. Porém, ele capitulou ao establishment do Partido Democrata, e isso desiludiu sua base.
Isso deixou o caminho aberto para um demagogo de direita como Trump, que agarrou a oportunidade com as duas mãos. Não é de conhecimento geral, mas em 2015, Trump disse em particular ao professor Jeffrey Sonnenfeld, da escola de negócios de Yale, que ele copiou propositalmente a mensagem anticorporativa que a campanha de Bernie Sanders havia mostrado ser eficaz.
Na ausência de um candidato de esquerda viável, milhões de pessoas que se sentiam alienadas e politicamente despossuídas aproveitaram a oportunidade para assestar um chute certeiro contra o establishment. A verdade é que a classe trabalhadora dos EUA se sente traída pelos democratas e totalmente alienada dos partidos políticos existentes. Para eles, Trump parecia oferecer uma alternativa. E se uniram para apoiá-lo.
Já em novembro de 2016, uma entrevista no Evening Standard destacava que:
“A classe trabalhadora norte-americana está se manifestando em números recordes. Esta é uma revolução da classe trabalhadora. Ninguém viu isso chegando, as elites na mídia, enquanto beliscam queijos finos e bebem seu champanhe, nunca falam com os verdadeiros eleitores. A classe trabalhadora foi vendida pelo establishment, pela classe escravista de Wall Street e Donald Trump é seu defensor.”
É um fato que, até Trump abordar a questão, a classe trabalhadora raramente era mencionada na política norte-americana. Mesmo os democratas mais à “esquerda” se referiam apenas à classe média. A classe trabalhadora era totalmente desconsiderada. Ela nunca entrou em seu campo de visão. No entanto, a classe trabalhadora existe e agora está se dando a conhecer.
Na época da grande Revolução Francesa do século XVIII, o abade Sieyès escreveu um famoso tratado intitulado “O que é o Terceiro Estado?” no qual lemos o seguinte:
“O que é o Terceiro Estado? Tudo. O que ele tem sido até agora na ordem política? Nada. O que ele deseja ser? Tornar-se algo.”
Essas famosas linhas podem muito bem ser tomadas como uma descrição da classe trabalhadora nos EUA hoje. E, o que quer que você pense dele, deve-se admitir que, por suas próprias razões, Donald Trump desempenhou um papel importantíssimo em colocar a classe trabalhadora no centro da política dos EUA pela primeira vez em décadas.
O abismo entre as classes
Este fato não é acidental. É um reflexo de uma realidade social auto evidente. O abismo que separa os que têm e os que não têm se ampliou para se tornar um abismo intransponível. E isso está aprofundando a polarização social e política. Está criando um clima explosivo de raiva na sociedade.
Para onde quer que você olhe, em todos os países, há um ódio ardente contra os ricos e poderosos: os banqueiros, Wall Street e o establishment em geral. Esse ódio foi habilmente explorado por Donald Trump. E isso horrorizou os representantes sérios do Capital.
Com razão viam Donald Trump como uma ameaça porque ele estava deliberadamente dinamitando a base do consenso, de todas as políticas de centro que eles vinham construindo meticulosamente por décadas.
O mercado de ações dos EUA está no auge, o dólar está alto nos mercados de câmbio, a economia dos EUA avança a um ritmo de crescimento do PIB real em torno de 2,5%, o desemprego não é maior do que 4,1%. E, no entanto, relatórios de ativistas eleitorais mostram claramente que a maioria das pessoas não se sente melhor — muito pelo contrário, na verdade:
“Os ativistas de Make the Road Pennsylvania me disseram que muitas pessoas que contactaram expressaram dúvidas de que votar poderia melhorar suas vidas. Uma ativista disse que ouvia frequentemente sobre os políticos: ‘Eles só querem nosso voto e depois se esquecem de nós’. Manuel Guzman, um representante estadual cujo distrito inclui bairros em Reading alinhados em modestas casas geminadas e povoados principalmente por imigrantes latinos, me disse que estava familiarizado com esse tipo de ceticismo dos eleitores. Guzman, que é meio dominicano e meio porto-riquenho, estava confiante de que os democratas ganhariam em Reading em novembro. Mas ele estava preocupado que a margem de vitória fosse decepcionante, dada a desconexão entre o que preocupava os democratas em Washington, D.C., e o que ele estava ouvindo de seus eleitores — muitos dos quais precisavam de vários empregos para escapar da pobreza, que aflige um terço dos moradores de Reading. ‘Nós nos tornamos demasiado focados como um partido nacional em salvar a democracia’, disse ele. ‘Vou ser honesto com você — não ouvi uma pessoa sequer na cidade de Reading falar comigo sobre democracia! O que eles estão me dizendo é ‘Manny, por que a gasolina está tão alta?’ ‘Por que meu aluguel está tão alto?’ Ninguém está falando o suficiente sobre essas questões.”
Os norte-americanos estão bem cientes dos custos que os índices oficiais e os economistas tradicionais ignoram. As taxas de hipoteca atingiram seu nível mais alto em 20 anos e os preços dos imóveis subiram a níveis recordes. Os prêmios de seguro de automóvel e saúde dispararam.
Em uma pesquisa da Harris Poll para a Bloomberg News, em dezembro, quase 40% dos norte-amercianos disseram que suas famílias passaram a depender recentemente de renda adicional para sobreviver. Destes, 38% disseram que o dinheiro extra mal cobria suas despesas mensais e não lhes sobrava nada, e 23% disseram que não era o suficiente para pagar suas contas.
De fato, a desigualdade de renda e riqueza nos EUA, uma das mais altas do mundo, só está piorando. O 1% mais rico fica com 21% de todas as rendas pessoais, mais que o dobro da parcela dos 50% mais pobres! E o 1% mais rico possui 35% de toda a riqueza pessoal, enquanto 10% dos norte-americanos possuem 71%; no entanto, os 50% mais pobres possuem apenas 1%!
Níveis extremos de desigualdade, um abismo crescente entre ricos e pobres e um crescente senso de alienação dos políticos em Washington dos problemas das pessoas comuns estão no cerne da situação atual. Aqui encontramos a explicação real para a popularidade de Donald Trump e o resultado da eleição atual.
Colapso do centro
Esse fenômeno não se limita aos EUA. O que vemos em todos os lugares é o colapso do centro político. Mas essa é a cola que mantém a sociedade unida. Esta é uma expressão gráfica de uma tensão crescente entre as classes – divididas entre esquerda e direita – que está se aprofundando o tempo todo. De forma paradoxal, o fenômeno do movimento Trump é um reflexo desse fato.
Atualmente, isso se reflete no crescimento de tendências populistas de direita peculiares em diferentes países. Mas as leis da mecânica nos informam que toda ação tem uma reação igual e contrária. E, em uma etapa posterior, isso se expressará em uma virada brusca para a esquerda.
Do ponto de vista da classe dominante, o perigo de Trump reside precisamente em que, ao apelar aos trabalhadores em seu próprio benefício, ele está alimentando um clima de radicalização que estabelece um precedente perigoso para o futuro. Isso explica os profundos sentimentos de medo e raiva que eles constantemente demonstram em relação a ele.
A classe dominante está desesperada para evitar essa polarização e para voltar a unir novamente o centro. Mas todas as condições objetivas militam contra isso.
Ricos e pobres
Bill Clinton disse certa vez: “é a economia, estúpido”. Ele tinha razão. O Wall Street Journal relatou que:
“A economia era de longe a principal questão para os eleitores, com 39% citando-a como ‘a questão mais importante que o país enfrenta’ […] Mais de seis em cada 10 — 63% — disseram que a economia ‘não estava tão bem’ ou ‘ruim’. […]
Os eleitores descreveram pressões específicas, incluindo contas de supermercado, o preço da moradia e o medo da guerra, mas muitos também descreveram preocupações existenciais maiores sobre o destino dos EUA.”
Na época da eleição anterior, quando Trump concorreu contra Hillary Clinton, The Economist, que apoiou Clinton, admitiu que:
“O Sr. Trump foi levado ao cargo sobre uma onda de raiva popular. Esta é alimentada em parte pelo fato de que os norte-americanos comuns não compartilharam da prosperidade de seu país. Em termos reais, a renda média masculina ainda é menor do que era na década de 1970.
Nos últimos 50 anos, exceto pela expansão da década de 1990, as famílias de nível médio levaram mais tempo para recuperar a renda perdida a cada recessão. A mobilidade social é muito baixa para manter a promessa de algo melhor. A perda resultante de autoestima não é neutralizada por alguns trimestres de aumento salarial.”
As coisas não mudaram substancialmente desde então. A economia dos EUA não está em estado saudável. Isso é demonstrado pelos níveis sem precedentes da dívida que aumentaram constantemente sob o governo Biden. No momento, a dívida do setor público dos EUA é estimada em US$ 35 trilhões, ou cerca de 100% do PIB.
Ela aumenta em US$ 1 trilhão a cada três meses. E só tem um caminho a seguir: para cima. Esta é uma indicação clara de que até mesmo a nação mais poderosa e rica da Terra se excedeu. É uma situação, em última análise, insustentável.
Isolacionismo
Donald Trump não é um economista nem filósofo ou historiador. Ele nem mesmo é um político, no sentido de que tenha uma ideologia e estratégia elaboradas. Ele é basicamente um oportunista e um empirista no sentido mais restrito da palavra.
Mas ele se considera um estrategista supremo. Um homem prático, sempre buscando soluções práticas e de curto prazo para todo e qualquer problema que surja. Ele sempre busca o que chama de “um acordo”.
Ou seja, Trump tem a mentalidade de um pequeno comerciante, habilidoso na arte de pechinchar no mercado. Claro, tal habilidade é válida dentro de certos limites. Mas o que é válido na barraca do mercado logo se encontra em apuros na complicada teia de aranha da política e diplomacia internacionais.
Em essência, sua inclinação é para o isolacionismo. Trump é avesso a qualquer ideia de os EUA se enredarem em alinhamentos externos de qualquer tipo – seja nas Nações Unidas, na Organização Mundial do Comércio ou na própria Otan. Sua política pode ser facilmente resumida no slogan “América primeiro“. Mas isso significa que o resto do mundo vem por último! E isso traz muitos problemas.
Se dependesse dele, os EUA romperiam imediatamente todos os seus vínculos com essas organizações, dedicando-se exclusivamente aos seus próprios assuntos. Mas, por mais atraente que essa ideia possa parecer, ela é completamente impossível no mundo moderno. O destino dos EUA está irrevogavelmente ligado por mil elos ao restante do globo terrestre. Como o próprio Donald Trump descobriu às suas custas em suas negociações com a Coreia do Norte.
Os limites do poder norte-americano expostos
A situação mundial é dominada por uma enorme instabilidade nas relações mundiais. Este é o resultado da luta pela hegemonia mundial entre os EUA, a potência imperialista mais poderosa do mundo, que está em relativo declínio, e a China, uma potência ascendente mais jovem e dinâmica, que está, no entanto, atingindo seus limites.
Estamos testemunhando uma alteração de proporções tectônicas e, assim como o movimento das placas tectônicas na crosta terrestre, tais movimentos são acompanhados por explosões de todos os tipos.
Além de olhar para a situação atual, é ainda mais importante analisar sua trajetória. Após o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1991, os EUA se tornaram a única superpotência do mundo. Após o colapso da URSS, quase não houve oposição à dominação do imperialismo dos EUA.
A situação agora parece muito diferente. O imperialismo dos EUA ficou atolado por 15 anos em duas guerras impossíveis de ganhar no Iraque e no Afeganistão, a um grande custo para si mesmo em termos de gastos e perda de pessoal.
Em agosto de 2021, eles foram forçados a uma retirada humilhante do Afeganistão.
Isso deixou a opinião pública dos EUA sem apetite por aventuras militares externas e a classe dominante dos EUA muito abatida para comprometer tropas terrestres no exterior. No entanto, o imperialismo dos EUA não aprendeu nada com a experiência.
Ao se recusar a admitir o novo equilíbrio de forças e ao tentar manter sua dominação, eles se envolveram em uma série de conflitos que não podem vencer. O governo Biden desempenhou um papel particularmente fatal a esse respeito.
A própria posição dos Estados Unidos como uma potência global com presença em todo o mundo é, em si, uma fonte de grande vulnerabilidade. A necessidade de apoiar seus interesses em escala global impõe uma tensão colossal.
Mas o governo Biden não aprendeu nada. Ele mergulhou os EUA em uma guerra sem sentido com a Rússia pela Ucrânia. A guerra na Ucrânia representa um enorme dreno nos recursos até mesmo do país mais rico do mundo. O estoque de armas dos EUA foi severamente esgotado pelas demandas de Zelensky, e continuam a acelerar mesmo com a deterioração da posição militar.
A implementação de sanções econômicas de amplo alcance pelo imperialismo dos EUA contra a Rússia falhou em seu objetivo principal de enfraquecer seu rival a ponto de tornar impossível prosseguir com a guerra na Ucrânia.
A Rússia conseguiu evitar e superar as sanções, fez uma série de alianças com outros países, incluindo Arábia Saudita, Índia e outros países que vinham cultivando relações com os EUA. Acima de tudo, foi levada a uma cooperação econômica e militar muito mais próxima com a China. Biden conseguiu exatamente o oposto do que era pretendido. Em seguida provocou um desastre ainda maior no Oriente Médio ao dar a Netanyahu o que equivalia a um cheque em branco, que ele vem descontando desde então.
Como resultado, novos conflitos e guerras estão surgindo o tempo todo. Uma vitória russa na Ucrânia enviará ondas de choque por todo o mundo. Ela exporá claramente as limitações do imperialismo americano, que não é mais capaz de impor sua vontade.
Além disso, a Rússia emergirá com um grande exército, testado nos métodos e técnicas mais recentes da guerra moderna. Isso está causando uma onda de pânico nos governos europeus, que estão aterrorizados com a possibilidade de o novo governo Trump abandonar a Ucrânia ao seu destino, deixando os europeus para pagar a conta, e até mesmo levantará a questão de retirada da Otan.
As novas crises e guerras representam um problema insolúvel, não apenas para os EUA, mas para seus aliados europeus, que se encontram todos em posição semelhante. Parece inevitável que Trump deseje se desligar do desastre sem esperança na Ucrânia, pelo qual ele corretamente responsabiliza Biden.
Não está claro se ele ordenará ou não a retirada dos EUA da Otan. Mas o que está além de dúvidas é que ele desejará passar a conta de todas essas coisas para seus “amigos” em Londres, Paris e Berlim – agravando ainda mais os problemas já sérios do capitalismo europeu.
Paralelos com o Império Romano
Chegou a hora do imperialismo dos EUA entrar na ladeira descendente que arrastou a Roma imperial à poeira? O tempo dirá. Há uma luta em andamento pela redivisão do mundo entre diferentes potências imperialistas concorrentes, principalmente entre os EUA, que ainda detém a hegemonia, agora em relativo declínio, e a China, a nova potência dinâmica em ascensão que os desafia na arena internacional.
Trump é bem conhecido por seu antagonismo à China, que ele considera representar a ameaça mais séria aos EUA. Ele não escondeu sua intenção de impor tarifas paralisantes sobre as importações chinesas, o que danificará seriamente o tecido do comércio mundial, ameaçando todo o delicado mecanismo da globalização e levando a economia mundial à beira de uma profunda recessão.
No entanto, não está claro que ele será a favor de uma guerra com a China, que é econômica e militarmente uma potência muito formidável. Seria possível escrever um estudo interessante comparando a atual crise do imperialismo norte-americano com o declínio e queda do Império Romano.
É verdade que muitos elementos diferentes estavam envolvidos naquele longo e inglório declínio. Mas um dos mais importantes foi o fato de o Império ter se excedido. Ele atingiu seus limites e foi incapaz de sustentar o fardo colossal imposto pela manutenção de seu governo imperial. O resultado foi um colapso completo.
O declínio relativo do imperialismo americano é evidente há algum tempo. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, os EUA produziam 43% dos bens manufaturados, 57% do aço e 80% dos carros do mundo. A participação dos EUA no comércio mundial de bens manufaturados aumentou de 10% em 1933 para 29% em 1953. Entre 1946 e 1973, a renda familiar real aumentou em 74%.
Os empregos na indústria, que representavam 39% dos empregos norte-americanos em 1943, caíram para cerca de 8% na década de 2010. Um relatório de 2020 do Bureau of Labor Statistics observou que, desde 1979, o emprego na indústria “caiu durante cada uma das cinco recessões e, em cada caso, o emprego nunca se recuperou totalmente aos níveis pré-recessão”.
A filiação sindical caiu de um pico de um terço da força de trabalho na década de 1950 para apenas 11% em 2016. Em “Capitalism in America: An Economic History of the United States” [“Capitalismo na América: uma história econômica dos Estados Unidos”, em tradução livre], Alan Greenspan e Adrian Wooldrige explicam:
“De 1900 a 1973, os salários reais nos Estados Unidos cresceram a uma taxa média anual de cerca de 2%. Composto ao longo dos anos, isso significava que o salário médio (e, por implicação, o padrão de vida médio) dobrava a cada 35 anos. Em 1973, essa tendência chegou ao fim e os salários reais médios do que o Bureau of Labor Statistics dos EUA considera como trabalhadores da produção e não supervisores começaram a declinar. Em meados da década de 1990, o salário real médio por hora de um trabalhador da produção era menos de 85% do que era em 1973.”
Um relatório do Pew Research Center de 2018 confirma isso: “Para a maioria dos trabalhadores dos EUA, os salários reais mal se moveram em décadas”. E como explica um relatório de 2023 do Departamento do Tesouro:
“A mobilidade econômica intergeracional também diminuiu — 90% das crianças nascidas na década de 1940 ganhavam mais do que seus pais aos 30 anos, enquanto apenas metade das crianças nascidas em meados da década de 1980 faziam o mesmo.”
Vemos aqui o principal fator que sustenta a raiva e o ressentimento crescentes contra a classe dominante. Em 2019, já havia sinais de uma recessão no horizonte, mas Trump usou com sucesso a pandemia de Covid-19 como bode expiatório quando a economia entrou em colapso.
Os fardos impostos pelo envolvimento dos Estados Unidos em guerras externas, como a da Ucrânia e a do Oriente Médio, significam um tremendo dreno, que mesmo a nação mais poderosa e rica não pode sustentar indefinidamente.
Despesas militares colossais têm sido um dos fatores contribuintes principais na enorme dívida que paira ameaçadoramente sobre a economia norte-americana. Desde este ponto de vista, a óbvia relutância de Trump em se envolver em assuntos internacionais contém uma certa lógica, embora cause ataques nervosos em Londres, Berlim, Kiev e Jerusalém.
E agora?
Os eventos recentes testemunham uma mudança fundamental na psicologia da opinião pública norte-americana. Todas as instituições da democracia burguesa se baseavam na suposição de que o abismo entre ricos e pobres poderia ser disfarçado e contido dentro de limites administráveis. Mas esse não é mais o caso.
Essa é precisamente a razão do colapso do centro político. As pessoas não acreditam mais no que lhes é dito pelos jornais e pela TV, elas comparam a enorme diferença entre o que é dito e o que acontece, e percebem que estão nos vendendo um monte de mentiras.
Nem sempre foi assim. No passado, a maioria das pessoas não prestava muita atenção à política, o que também acontecia com os trabalhadores. As conversas nos locais de trabalho geralmente eram sobre futebol, filmes, programas de televisão. A política raramente era mencionada, exceto talvez em época de eleição.
Agora, tudo isso mudou. As massas estão começando a se interessar por política, porque estão começando a perceber que isso afeta diretamente suas vidas e as vidas de suas famílias. Ao apoiar Trump, milhões de pessoas estão dizendo: “qualquer coisa e qualquer pessoa é melhor do que isso. Nada pode ser pior. Vamos jogar os dados!” Agora, eles decidiram jogar os dados mais uma vez. Mas pode muito bem ser pela última vez.
Donald Trump agora é um homem velho. Parece estar descartado que ele possa concorrer novamente à presidência. Estamos assumindo que ele entrará na Casa Branca novamente em janeiro de 2025. Nada pode detê-lo — nada, isto é, exceto uma bala assassina. E isso não pode ser descartado, dada a reação histérica da classe dominante.
Não há escassez de material combustível na sociedade norte-americana. E não há escassez de indivíduos mentalmente instáveis armados com armas modernas muito eficazes. Mas, assumindo que Trump seja finalmente instalado como presidente, o que pode se esperar? Ele enfrentará desafios colossais em muitos campos: na economia, na guerra na Ucrânia e no Oriente Médio, nas relações com a China e o Irã, e muitas outras questões.
Como habitualmente, ele fez grandes promessas sobre tornar a América grande novamente. Mas não há evidências de que ele será capaz de cumprir qualquer uma delas. Os trabalhadores que depositaram sua confiança nele ficarão profundamente decepcionados.
Em 1940, quando o exército alemão entrou em Paris, houve uma conversa interessante entre um oficial alemão e um oficial francês. O alemão estava naturalmente cheio de arrogância. Mas o oficial francês disse simplesmente: “a roda da história deu um giro. Ela girará novamente”. E girou.
A roda da história está girando nos EUA e irá girar novamente. Uma vez que as massas tenham explorado completamente o potencial do trumpismo e percebido suas limitações, elas girarão em uma direção diferente. O caminho estará preparado para uma enorme oscilação do pêndulo para a esquerda. Um novo e turbulento capítulo na história dos Estados Unidos está prestes a ser escrito.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.