A ocupação e o controle operário pelos Cordões Industriais na Revolução Chilena (1970-1973)

Artigo publicado originalmente no jornal Tempo de Revolução 22, de setembro de 2022. Faça sua assinatura e apoie a imprensa comunista.

Em 11 de setembro de 2022 completam-se 49 anos do golpe imperialista aplicado pelas Forças Armadas chilenas contra o governo reformista da Unidade Popular (UP) dirigido por Salvador Allende. Este trágico evento para o proletariado latino-americano precisa ser sempre recordado não apenas para honrar a memória dos que tombaram lutando por um novo mundo, mas também para aprendermos com o processo anterior ao golpe, a revolução chilena de 1970 a 1973.

Esta experiência ímpar teve como vanguarda os extraordinários Cordões Industriais de Operários, os quais conheceremos neste artigo. Por outro lado, o governo da Unidade Popular, eleito em 1970, não cumpriu seu programa revolucionário que, ao longo destes 3 anos, transformou-se em conciliações com a burguesia nativa e imperialista. Os limites da UP e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e as traições do Partido Comunista, que, orientados pelo stalinismo, transformaram a revolução proletária em “revolução popular” em todo o mundo, são cruciais para entendermos o papel dos Cordões Industriais e como o proletariado é a única classe essencialmente revolucionária da sociedade, capaz de se organizar de maneira independente, negando todo e qualquer acordo “popular” aos nossos inimigos de classe.

A tática do governo Allende da chamada “via pacífica ao socialismo”, sintetizada em reformas urbanas e rurais, nacionalizações de minas, como de cobre, ferro e salitre, na compra de ações do mercado financeiro, no pagamento de indenizações aos patrões e os demais manejos econômicos “populares”, passou a definhar em 1972, levando os operários a buscarem superar essas direções conciliadoras.
Essa defesa pela independência de classe proporcionou a formação dos Cordões Industriais com ocupações e controle operário de fábricas e nos bairros onde residiam os trabalhadores e a juventude. Além disso, a conciliação, e não a radicalização revolucionária do governo Allende, deu margem para um crescimento de grupos reacionários e violentos como o Patria e Libertad, que praticavam atentados e conspiravam contra o governo reformista, visando, principalmente, aniquilar a organização proletária no Chile. Assim, os Cordões Industriais, surgidos mesmo antes das greves patronais e reacionárias de outubro de 1972, se imbuíram da defesa e avanço da revolução chilena.

O que foram os Cordões Industriais?

O primeiro Cordão fora criado em junho de 1972 como resultado de experiências organizacionais do movimento operário chileno, uma expressão de como os trabalhadores entendem os limites das direções conciliadoras e, em situações pré-revolucionárias, buscam superar estas traições. Mas antes, como embrião, apareceu nas regiões de Cerrillos e Maipú, comunas que compõem Santiago, repletas de indústrias, moradias proletárias e sem tetos. A infraestrutura e o abastecimento precários, além de um trágico serviço de transporte público foram os estopins da revolta e organização para o Cordão Industrial.

O norte desses trabalhadores era apenas um: os soviets russos. Por isso cunharam seu espaço de discussão e combate de Conselho Comunal de Trabalhadores, tendo como principal questão a luta pelo Poder Operário – não do abstrato poder popular – inscrito no documento endereçado às autoridades, o qual afirmavam querer: “superar ambos – Prefeitura e Governador – por um organismo paralelo e próprio dos Trabalhadores, o Conselho Comunal”. Em junho de 1972, a partir de um conjunto de greves e ocupações fabris em Perlak (alimentos), Polycron (químicos e sintéticos) e El Mono (alumínios) reorganizaram-se, então, em Maipú.

A reivindicação operária ao governo Allende de estatização das empresas ocupadas não foi atendida pelos reformistas, que criaram barreiras para este movimento das fábricas ocupadas. Nesse contexto, formou-se o Comando de Coordenação de Lutas dos Trabalhadores do Cordão Industrial Cerrillos-Maipu, que chegou a reunir 500 mil operários. Sua plataforma era a aliança operário-camponesa em prática:

  • Expropriação de empresas e terras monopolizadas;
  • Controle operário da produção por meio de Conselhos de delegados eleitos pela base;
  • Aumento imediato dos salários;
  • Dissolução do parlamento com instalação da Assembleia Popular;
  • Criação de empresa estatal de construção;
  • Ocupação de terras expropriadas para o controle camponês mediante conselho de delegados;
  • Teto aos moradores de rua;
  • Repúdio aos burgueses, sua justiça e Estado.

Porém, como mencionado, os patrões e demais setores reacionários da sociedade realizaram uma greve em outubro de 1972, causando graves consequências para os trabalhadores com o desabastecimento de alimentos e demais utensílios fundamentais, além de atentados realizados pela direita, sabotagens aos operários, dentre outras violências. Todavia, os operários não arrefeceram a revolução, como julgava a burguesia. Sua organização fez com que a ocupação e o controle de fábricas, consolidando os Cordões Industriais, se generalizasse pelo Chile. Tais ocupações não obedeciam Allende e os demais reformistas, alastrando os cordões para Vicuña Mackenna, Estación Central e Hualpencillo, em Santiago e Concepción, respectivamente.

Naturalmente, os Cordões não eram homogêneos e sem interferências das direções do Partido Comunista e da Unidade Popular. Era vivo e repleto de disputas, em cada região com direções eleitas de diferentes correntes do movimento operário chileno. Mas, na base dos Cordões, era evidente o apoio ao Governo Allende só quando este contribuísse com a mobilização independente destes operários.

Contudo, ao passo que os operários defendiam a revolução e o próprio governo Allende, neutralizando o caos criado pela burguesia, o presidente mudou seu plano de nacionalização para acalmar os patrões. Se antes o planejamento do governo era nacionalizar 120 fábricas, o número passou para 43. A partir das ocupações, Allende ordenou o exército garantir o cumprimento de suas ordens de retomada privada das fábricas, solicitando apenas que os militares não fossem repressivos contra os operários.

Era Allende buscando restabelecer seus acordos com a burguesia e seu principal partido, a Democracia Cristã. Para o convencimento operário, Allende e seu governo utilizou da CUT para tentar aparelhar os Cordões e os trabalhadores nas desocupações das fábricas, mas os sindicalistas do governo eram recebidos com recusas e hostilidades pelos operários revolucionários.

Ao estudar os processos dos Cordões Industriais, vemos como tanto as reivindicações e ações nutriram profundamente o Movimento das Fábricas Ocupadas no Brasil, principalmente em Cipla e Interfibra, em Joinville/SC, e da Flaskô, em Sumaré/SP, quanto como os governos reformistas – Allende e Lula – lidaram com a mobilização independente dos trabalhadores. Isto é, abandonando os operários e defendendo a propriedade privada dos meios produtivos com o uso da força policial e da lei burguesa. Em 2022, quando completam-se 20 anos das ocupações brasileiras dirigidas pelos militantes da Esquerda Marxista, lembramos e saudamos as principais reivindicações dos operários que eram as manutenções dos empregos e a estatização das fábricas, tal qual os Cordões Industriais exigiam.

No Chile, as ocupações operárias produziam o duplo poder, suplantavam a crise de abastecimento, estruturavam um novo regime de relações comerciais, tomavam os comércios e o transporte para a devida distribuição para a população, entre outras ações cruciais para a vida proletária. Com esta política, os Cordões alcançaram massivamente o proletariado chileno, organizando-se em Santiago nas regiões de Cerrillos e Vicuña Mackenna, O´Higgins, Macul, San Joaquín, Recoleta, Mapocho-Cordillera, Santa Rosa-Gran Avenida, Panamericana Norte, Santiago Centro e Vivaceta. Já em Valparaíso foram: Cordón Puerto, Cordón Centro, Cordón Almendral, Cordón Quince Norte, Cordón El Salto, Cordón Concón e Cordón Quintero-Ventanas. Também estavam nas cidades de Arica, Concepción, Antofagasta e Osorno. Enquanto isso, os dirigentes stalinistas do Partido Comunista faziam coro com o governo Allende defendendo que as fábricas ocupadas fossem devolvidas aos antigos donos.

Diante de todas as traições de Allende, da UP, do PC e das demais direções de classe, em fevereiro de 1973, os Cordões publicaram uma plataforma por meio do jornal Tarea Urgente, aprofundando as reivindicações já presentes em seus manifestos e atos, como a expropriação imediata dos grandes meios produtivos e a defesa do controle e poder operário. Mas as inúmeras contradições do governo e a força dos Cordões Industriais expressaram para a burguesia chilena e o imperialismo que as direções oficiais do proletariado não teriam mais capacidade de arrefecer o fogo revolucionário que inflamava os trabalhadores.

Relembramos que antes do 11 de setembro, os golpistas tentaram o fracassado “Tanquerazo” em junho, organizado pelo tenente-coronel Roberto Souper, onde tanques e carros de combate pesado tentaram tomar o poder, mas foram sufocados por setores legalistas do exército chileno, dirigido pelo comandante-chefe Carlos Prants, posteriormente assassinado por Pinochet em um atentado por bomba plantada pela Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), a política secreta da ditadura pinochetista, em 1974. Ainda assim, com o acontecimento de junho de 1973, tanto Allende, quanto os partidos de esquerda saíram em defesa das instituições burguesas. Ao invés de utilizar a força dos Cordões Industriais, que assegurava e promovia a revolução, passaram a convocar as massas para acreditar na democracia chilena. Os operários, com este instrumento de luta, solicitavam armas para combater o golpe imperialista, as quais foram negadas por Allende e companhia.

Os Cordões Industriais em setembro de 1973

Às vésperas do golpe de 11 de setembro, no dia 5 do mês, os Cordões emitiram uma carta ao “camarada Salvador Allende”, demonstrando a frustração com o governo que deveria defender as reivindicações revolucionárias do proletariado e do campesinato. Mais que isso, a carta alertava Allende dizendo que as ações do governo não só estavam afogando a revolução, como abrindo, “a curto prazo”, o espaço para um “regime fascista de corte mais implacável e criminoso”. Os operários exigiam a efetivação do programa que foi eleito em 1970, pois não “votaram em um homem, mas em um programa revolucionário”. Os operários relembraram nesta carta que realizaram todas as ações nas quais Allende deveria se apoiar para enfrentar a burguesia e o imperialismo, mas que, agora, reinava apenas a desconfiança sobre o governo e seu presidente. Também fizeram questão de listar os momentos em que os golpistas não eram punidos pelo governo, mas os operários que ocupavam fábricas eram perseguidos e presos ainda sob o governo Allende.

Infelizmente, esta carta não surtiu efeito no governo e com o golpe de 11 de setembro a experiência revolucionária dos Cordões foi tragicamente esmagada. Apesar de ter durado pouco tempo – bem menos que as ocupações no Brasil, por exemplo – também serviram para o salto de consciência do proletariado chileno que demonstrou a possibilidade e necessidade do rompimento com as relações capitalistas de produção e socialização da riqueza.

Nem mesmo nos campos de concentração de Pinochet, criados nos estádios de futebol durante a ditadura militar mais sanguinária do continente, jovens e trabalhadores chilenos deixaram de resistir e lutar por um novo mundo, como fizeram os operários dos Cordões Industriais. Suas ações seguiram o traçado dos revolucionários russos e ensinaram os operários brasileiros que ocuparam fábricas 30 anos depois. Acima de tudo, elas nutrem as lutas do proletariado internacional na atualidade, que aprendem com sua história de combate, derrotas e vitórias diante dos exploradores capitalistas.