Previdência: o governo propõe um projeto (PL 1992) que vai resolver os problemas desta previdência, segundo o próprio governo, em 2070! Que até lá o sistema continuará com os problemas de hoje, ou seja, segundo o governo, continuará deficitário.
Um filósofo do começo do século XX escreveu um livro sobre o riso (Henry Bergson). Nele, Bergson comenta que o riso resulta geralmente de algo ruim que aconteceu para outra pessoa, por exemplo, alguém que cai no chão, uma pessoa que é posta em situação constrangedora por outra, etc. E as piadas baseiam-se nisso.
O governo parece fazer uma piada com a previdência dos servidores. Propõe um projeto (PL 1992) que vai resolver os problemas desta previdência, segundo o próprio governo, em 2070! Que até lá o sistema continuará com os problemas de hoje, ou seja, segundo o governo, continuará deficitário.
Quando a ex-URSS lançou na década de 1920 os planos “quinquenais” foram considerados algo fantástico, prever algo para 5 anos depois. Ainda que várias empresas e governos tenham assumido este tipo de projeto, até hoje ninguém levaria a sério algo que prometesse resolver um problema existente hoje, dez anos depois. O que dizer então com um projeto que promete resolver algo 68 anos depois dele ter sido aprovado. Aliás, minto, quando o projeto foi estudado, nos idos de 2004 (O PL foi formalmente apresentado em 2007), ele previa que se aprovado os problemas estariam resolvidos em 2070. Hoje, passados 8 anos, continua a previsão, e os 8 anos seguintes nos quais o problema agravou-se, sobre isso, nenhum comentário.
Mas, afinal, que problemas são esses que atingem a previdência dos servidores? Fundamentalmente, um déficit. Segundo o governo, dados publicados de 2010, hoje em O Globo (19-01-12), a previdência dos servidores tem um gasto de 73,9 bilhões de reais (52,5 bilhões de servidores civis, 21,4 bilhões dos militares) para uma arrecadação de 22,7 bilhões de reais (12,7 bilhões do governo, contribuição patronal e 10,5 bilhões dos servidores).
Estes valores são interessantes. Para uma pequena comparação, a contribuição dos empregados da inciativa privada da previdência é de 8%, limitada ao teto máximo (hoje em 3.600 reais). A contribuição dos empregadores é de 20% da folha de pagamentos, ou seja, mais de duas vezes e meia o valor da contribuição dos empregados, já que existem muitos salários ultrapassando o teto de contribuição. Mas, no caso dos servidores, o patrão se dá ao luxo de só contribuir com o mesmo valor dos empregados!
Caso ele trabalhasse com a mesma relação existente na previdência, ele estaria contribuindo com algo em torno de 27 bilhões de reais e o alegado déficit estaria caindo em 15 bilhões!
Mas a questão vai muito, além disso, o governo declara que a previdência, para ser viável, teria que ter uma relação de 4 servidores ativos para cada servidor inativo. Façamos as contas. Para cada 4 servidores ativos, teríamos um desconto de 44%. Mais a contribuição patronal (2 vezes e meia a contribuição dos servidores, utilizando a mesma relação da iniciativa privada), teríamos uma contribuição de 110%. Total: 154%. O sistema seria mais que superavitário. Mas, admitamos que – em virtude de planos de carreiras; que as aposentadorias se dão geralmente no ultimo nível do plano – esta conta do governo esteja certa. Então, porque agora é que este déficit está aparecendo?
Relembremos: até 1992 a responsabilidade do pagamento da aposentadoria dos servidores era responsabilidade somente do caixa do Tesouro. Em 1992 a EC (Emenda Constitucional) 3 passou esta responsabilidade para servidores e Tesouro, sem estabelecer o percentual de cada um nesta nova relação.
A verdade é que a relação entre o número de servidores na ativa e o número de servidores aposentados passou já por várias piruetas. Anteriormente a 1992, antes da EC 3, este problema não era contabilizado porque a responsabilidade da aposentadoria dos servidores era somente caixa do Tesouro. Depois de 1993, sim, a questão foi considerada, porque os servidores deveriam também contribuir. Mas a relação em 1993 era superavitária. O que aconteceu?
O governo foi derrotado na Constituição de 1988 e foi decidido que existiria um Regime Jurídico único, acabando com os antigos aposentados. Este regime foi implantado em 1990, através da lei 8.112. Com esta lei, os antigos celetistas transformavam-se em estatutários. Qual o resultado desta brincadeira?
Primeiro, quando a regra da contribuição dos servidores foi estabelecida pela EC 3, não havia o problema de déficit já que a maioria dos aposentados do serviço público o tinham feito pelo INSS, e os servidores atuais, que tinham contribuído pelo INSS, somente no futuro iriam ser aposentados pelo serviço público. O acerto de contas desta situação nunca foi feito e o resultado é que tanto o INSS ficou com um déficit quanto a contribuição destes novos servidores pagava a aposentadoria dos antigos servidores e ninguém falou nada sobre o assunto. Ora, quando estes servidores passaram a se aposentar e o governo começava a diminuir a sua folha de pagamentos, o problema apareceu.
E porque diminuíram os servidores públicos? A principal explicação é que o governo diminuiu os serviços prestados à população, diminuindo gradualmente a relação entre o número de servidores e a população total. Isto se nota desde os efetivos das Forças Armadas (que não crescem proporcionalmente a população) até o atendente do INSS e o médico no hospital. Expliquemos melhor.
Entre 1980 e 2010, a população brasileira saltou de 120 milhões para 186 milhões. Um aumento de 66 milhões, mais de 50%. Entretanto, tanto o efetivo das Forças Armadas quanto o número de servidores ativos não aumentou, chegando a diminuir. Esta situação leva a que os servidores se aposentem mas não existam servidores contratados para que possa substitui-los e pagar a sua aposentadoria.
Mais ainda, o governo aplicou uma política de municipalização da saúde, que transferiu serviços e hospitais federais para estados e municípios, deixando de contratar servidores para uma área que é de uso mais intenso de mão de obra. Assim, as aposentadorias atuais destes servidores são custeadas…por ninguém, já que a mão de obra no setor não é reposta.
Além disso, a aplicação da tecnologia nos serviços de escritório diminuiu efetivamente o uso da mão de obra nestes casos. Porem, ao invés de reduzir a jornada e manter a proporção de servidores, contratando mais pessoas (como muitas vezes escutamos o governo falar que a iniciativa privada deve proceder), o governo comporta-se como qualquer empresa privada: aumenta a exploração, intensifica a produção com a introdução da tecnologia e de novos controles e diminui a mão de obra.
Terceira questão: com a proibição de contratação livre dos servidores, com a exigência de concurso, como entram os parentes os políticos? Terceirize os serviços. Limpeza, vigilância, informática, transporte estão quase todos terceirizados. Com a proibição de terceirização nas áreas fins, começou o uso intensivo de estagiários: em alguns locais, o número de estagiários supera em mais de 2 por 1 a existência de servidores. Serviços como malote, cópias de documentos, secretaria, atendimento, passam a ser feitos majoritariamente por estagiários. O resultado: quem contribui para a previdência dos servidores? Se os que trabalham no serviço público não são servidores, o número de contribuintes diminui e a relação “ideal” segundo o governo não pode ser nunca alcançada.
Depois de tudo isso, o governo, neste período, vem extinguindo órgãos e atribuições, unificando e dividindo órgãos, mas sempre com o mesmo resultado: os serviços públicos diminuem sua abrangência e cada vez mais a população depende do serviço privado para poder ter suas necessidades atendidas.
Os órgãos de assistência social antigamente existente, como CBIA (Centro Brasileiro de Atendimento a Infância) e LBA (Legião Brasileira de Assistência) foram extintos. Hospitais referências como o Hospital Sarah Kubitsheck em Brasília se transformaram em fundações privadas. Outros, como o Hospital Militar de Brasília, passaram a ter convênios com a iniciativa privada. Ambulatórios, laboratórios e hospitais que atendiam servidores foram desmontados e todos os servidores passaram a ter planos de saúde privados. A verba para universidades públicas é desviada para o financiamento estudantil em universidade privadas ou para o Prouni, bolsas em universidades privadas que garantem a existência destas fábricas de diplomas.
Fábricas e estaleiros da Marinha do Exército foram desmontados ao longo de anos ou se tornaram tão obsoletos que a produção cai e não vale a pena novos investimentos. Órgãos como a Receita Federal ou como o INSS tem cada vez mais reduzida a sua presença em pequenos e médios municípios, obrigando o deslocamento da população para as grandes cidades quando necessitam reclamar ou a prestação de algum serviço. Sim, o serviço público era ruim e cada vez mais se torna pior e mais distante. Cada vez mais prevalece o modelo do “atendimento eletrônico” onde todos nós ficamos, horas e horas pendurados em um telefone com as secretárias eletrônicas, ou doidos diante de uma página na internet se perguntando: o que eu faço agora?
Nas universidades públicas pululam os cursos pagos, feitos por fundações “apensas”, com empregados contratados no regime CLT. Aumentam os cursos on-line com monitores pagos como bolsas de estudos. Aumentam as bolsas para “pesquisa” em que os alunos de pós- graduação passam a ser “instrutores” de laboratórios ou até de cursos. Ou seja, precariza-se a relação de trabalho e depois o governo diz “não saber” porque a relação mágica de 4 ativos para 1 aposentado não é atingida!
Alias, sejamos francos: o governo trabalha para que esta relação mágica (4 ativos por um aposentado) nunca seja alcançada, através destes mecanismos que aqui descrevemos. Assim, o governo cria artificialmente o déficit e propõe uma solução que nada resolve, que, caso não leve tudo a breca, só terá efeito em…2070.
Sim, uma grande piada, onde o riso se faz em cima da tragédia dos novos servidores que não terão aposentadoria, dos antigos servidores que perderão suas aposentadorias porque ninguém mais contribuirá para elas e para a população como um todo que deveria ter escolas, assistência social, saúde, segurança pública provida e nada disso obtêm.
Bicalho é co-autor, junto com Serge Goulart, do livro lançado pela Editora Marxista: “DEVOLVAM NOSSA PREVIDÊNCIA”.