Na manhã de 30 de dezembro de 1916, o povo de Petrogrado acordou com a notícia de que o infame padre Gregori Rasputin havia sido assassinado com veneno. Rasputin era um charlatão, bêbado e assediador em série de esposas e filhas da classe alta, mas o mais importante é que ele era o conselheiro mais próximo do casal real.
[Todas as datas estão de acordo com o calendário Gregoriano, que está 13 dias à frente do calendário Juliano usado na Rússia em 1917]
Enquanto a czarina passava dias rezando no túmulo de Rasputin e guardava sua camisa manchada de sangue como uma relíquia, ocorriam celebrações nas ruas de Petrogrado, onde espalhavam-se os rumores de que o padre morrera afogado – o que o tornaria inelegível à canonização. O real significado da morte de Rasputin, no entanto, era que ela revelava uma divisão aberta no alto da classe dominante da Rússia.
O assassinato foi realizado por um grupo de nobres liderado pelo príncipe Felix Yusupov, pelo grão-duque Dmitri Pavlovich e pelo monarquista de extrema-direita Vladimir Purishkevich, enquanto o liberal Maklakov, aparentemente, teria proporcionado o veneno aos conspiradores. Isto indicava que o czar e a czarina haviam se tornado completamente isolados dentro da classe dominante.
O embaixador francês, Maurice Paléologue, escreveu em suas memórias sobre o papel de Purishkevich na trama:
“Purishkevich, que tem mais de 50 anos, é um homem de doutrina e ação. Ele se fez o campeão do absolutismo ortodoxo; ele traz a mesma veemência e habilidade à sua defesa da teoria do Czar Autócrata, do Emissário de Deus. Em 1905 ele era o presidente da liga famosa e reacionária Associação do Povo Russo e foi ele quem inspirou e dirigiu os terríveis pogroms contra os judeus. Sua participação no assassinato de Rasputin lança luz sobre toda a atitude da extrema-direita nos meses recentes; significa que os campeões da autocracia, sentindo-se ameaçados pela loucura da imperatriz, estão determinados a se defenderem apesar do imperador; e, se necessário, contra ele” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
A guerra
Os últimos meses da dinastia Romanov foram cheios de complôs e conspirações. Uma após outra, quase todas as camadas da classe dominante – alarmadas com as perspectivas de colapso militar e revolução – viraram-se contra o czar, a czarina e a camarilha da corte ao seu redor.
Havendo assumido o comando direto do exército, o czar agora teve que se colocar bem no centro da crise da Rússia. Embora o exército tivesse realizado alguns pequenos avanços a partir de março de 1916, o ponto de inflexão veio com a ofensiva de Brusilov, entre junho e setembro. Mesmo que essa ofensiva tenha alcançado seus principais objetivos – pequenos ganhos territoriais ao mesmo tempo em que aliviou a pressão sobre os exércitos aliados do front ocidental –, o fez a um custo enorme. Um milhão de soldados russos morreram no que se tornou a batalha mais sangrenta da história mundial.
A batalha também quebrou a espinha do exército Austro-Húngaro, mas o exército alemão foi relativamente pouco afetado e poderia recuperar-se facilmente de suas perdas. O exército russo, por outro lado, foi empurrado para trás e em grande parte destroçado no front oriental. A falta de sentido na matança levou ao colapso do moral do exército. Um sentimento de desesperança se espalhou através das trincheiras. O czar foi acusado de ter ignorado o bom conselho de não mergulhar em tal aventura. Ele provou ser um mal comandante militar e se transformou no responsável por todo o esforço de guerra. Além disso, ele ciumentamente demitiu todos os melhores e mais perspicazes homens que o rodeavam.
Ao mesmo tempo, ele estava experimentando o terreno para uma paz em separado com a Alemanha. Estava se tornando óbvio que a Rússia nunca seria capaz de alcançar seu próprio objetivo de estender sua esfera de influência até Constantinopla pela força. Em todo caso, a Inglaterra e a França nunca teriam permitido tal saída.
O czar esperava que a Alemanha concordasse em retirar seu apoio à Turquia. Isto a Alemanha estava disposta a aceitar, sob a condição de que a Rússia assinasse uma paz em separado. Tal fato teria alterado o equilíbrio de forças no front ocidental em benefício da Alemanha.
O czar estava aberto a essa ideia, e, de fato, foi essa uma das razões para substituir pessoalmente o grão-duque Nicholas, o comandante-em-chefe anterior. No entanto, a burguesia russa, embora não se opusesse em princípio a um acordo de paz em separado, considerava que sua própria posição seria enfraquecida se tal acordo fosse negociado diretamente pelo czar. Assim, com o apoio dos britânicos e dos franceses, eles embarcaram em uma campanha patriótica histérica contra os “germanófilos” da corte real – visando particularmente a czarina.
Escassez de alimentos
A guerra estava colocando uma pressão enorme sobre a economia. A produção estava sendo cada vez mais interrompida e o suprimento de alimentos estava se esgotando. Todas as debilidades da economia russa estavam se evidenciando. A perda das regiões ocidentais colocou ainda mais pressão sobre as importações de maquinaria industrial, enquanto a produção nacional das fábricas declinou em 50%. Em consequência, as compras de maquinaria agrícola em 1916 foram apenas 10% do nível anterior à guerra. Ao mesmo tempo, dois milhões de cavalos e de gado maior foram requisitados pelo exército.
Nessa situação, os kulaks ricos ficaram mais fortes enquanto os camponeses médios e pobres, sem acesso à maquinaria moderna e com seus animais recrutados pelo exército, empobreceram e se arruinaram. O rendimento bruto da produção de grãos e a área semeada diminuíram. Com o exército engolindo a maioria das lavouras e a demanda se elevando nas cidades, os preços começaram a subir.
Ao mesmo tempo, a rede ferroviária tinha uma capacidade demasiado baixa para satisfazer as demandas do front, bem como as das cidades. Em muitos casos, mesmo quando os suprimentos estavam disponíveis, os estrangulamentos na rede ferroviária os impediam de chegar às cidades. Latifundiários, kulaks e intermediários estavam escondendo os grãos para forçar os preços. Apareceu um mercado negro enquanto as mercadorias desapareciam das lojas. As tentativas de fixar os preços não deram em nada para deter o comércio especulativo. Para as explorações menores, isto conduziu a uma virada em direção ao isolamento e à autossuficiência. No final, o czarismo não pôde intervir com rigor contra os kulaks e os grandes latifundiários, devido ao fato de eles formarem o pilar central de apoio para ele no meio rural. Para as massas trabalhadoras, o efeito da crise foi devastador. Em um artigo intitulado Fome em Meio à Abundância, publicado no The Times em 29 de janeiro de 1917, o autor escreveu:
“Provavelmente há comida suficiente no país para alimentar a população nos próximos dois anos. O único problema a resolver é como distribuí-la. Eis aqui um par de exemplos conhecidos pelo autor. Um milhão e meio de puds [24.100t] de centeio estão depositados nos elevadores da estação T. A menos de 400 quilômetros de distância por linha ferroviária direta encontra-se o moinho de farinha de centeio em D, com capacidade de 3 mil puds de farinha ao dia. O moinho, apesar de operar exclusivamente para as exigências do exército, ainda está parado por falta de grãos. Um moinho com grandes estoques de grãos situado dentro de duas milhas de um campo de petróleo ficou inoperante por mais de um mês porque foi impossível obter carros-cisternas para trazer óleo combustível dos poços ao moinho (…)
“Tudo o que é necessário à vida, exceto o chá, aumentou de duas a 10 vezes os seus preços anteriores à guerra. A manteiga, por exemplo, é oito vezes o seu preço de varejo anterior, tendo aumentado de 45 copeques a três rublos e 60 copeques por cerca de 400g. A carne de cordeiro é 71 vezes mais cara, custando agora 1 rublo e 50 copeques por cerca de 400g. Pão de qualidade variável, em vez da bela e uniforme cor branca pela qual era famosa a Rússia, custa 21 vezes mais do que anteriormente. De fato, as despesas caseiras, com todos os luxos cortados, com quatro dias sem carne por semana e com todos os esforços para economizar, são agora cerca de quatro vezes o que eram nos dias normais de paz” (The Times, 29 de janeiro de 1917).
Qualquer tentativa de resolver o problema dentro da organização da economia de guerra levou a uma luta feroz entre a burguesia e a burocracia estatal. Os organismos liberais, tais como a Cruz Vermelha e o Zemgor (o Comitê Unificado da União dos Zemstvos e da União das Cidades), estavam desenvolvendo um papel importante no esforço de guerra. Eles operavam como ministérios semioficiais. Mas isto causou alarme dentro do regime czarista e da burocracia estatal. James L. Houghteling era um jovem estadunidense ingênuo de uma família de banqueiros que chegou na Rússia exatamente antes da revolução para servir como adido especial do cônsul dos EUA. Com ingenuidade desinformada, ele escreveu sobre o conflito entre os liberais e a burocracia do estado:
“A União dos Zemstvos tem um grande edifício de pedra com seis ou oito andares em Petrovka, uma das principais ruas de negócios; cada polegada dele é ocupada e é um lugar que alegra o coração de um estadunidense. A atmosfera é absolutamente diferente daquele cheiro de mofo e espera que nos oprime nos enormes prédios ministeriais de Petrogrado. Os transportadores aéreos para ‘passar a bola’ são inteiramente inexistentes. A União está cuidando de todos os feridos, alimentando e vestindo os exércitos, operando curtumes, sapatarias e comissariados, trabalhado com e dirigindo as Sociedades Cooperativas Camponesas; em suma, está fazendo três quartas partes do trabalho do moribundo Escritório de Guerra. Além do mais, o faz de forma eficiente e honesta. O bom trabalho da União é um espinho no flanco da burocracia, visto que a comparação dos resultados é muito desacreditadora para o governo. Assim, este último interfere sob quaisquer pretextos. Há alguns meses, o governador militar de Moscou proibiu todas as reuniões públicas da União e dissolveu a convenção dos presidentes de Zemstvo que estava discutindo os cuidados aos feridos, o suprimento de botas e outros assuntos traiçoeiros. Esta interferência estúpida privou o governo do apoio dos últimos ‘moribundos’ entre a nobreza latifundiária. Está em pé de igualdade com a recente e ultrajante prisão dos membros trabalhistas do Comitê da Indústria de Guerra em Petrogrado” (Um Diário da Revolução Russa – James L. Houghteling).
A própria unificação da Rússia tinha sido obtida com o estabelecimento de um brutal aparato opressor e de uma burocracia todo-poderosa. O que os liberais não compreenderam, ou não quiseram admitir, era que o absolutismo russo por sua própria natureza era um obstáculo ao pleno desenvolvimento da burguesia e não podia compartilhar o poder com ela. Ao mesmo tempo, a burguesia não estava preparada para realizar sua própria revolução até ao fim por medo da classe operária em ascensão.
“[Na Rússia] nenhuma manifestação de atividade política ou social escapa da interferência, supervisão ou aperto estrangulador da autoridade central, e toda a vida da nação é escrava de uma burocracia onipotente” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
Uma parte enorme da riqueza nacional era absorvida pela burocracia. Além de sustentar a burocracia, o efeito dessa drenagem da riqueza sobre a nação foi o de impedir a ascensão de quaisquer forças sociais concorrentes – algo em que o absolutismo se apoiava cada vez mais. O conservadorismo estava incrustrado no DNA do estado czarista.
“Ao dar a tempo os centímetros de reforma, que eram necessárias, ele poderia ter salvo os metros que um país desiludido tomaria pela força depois. Aqueles mais próximos dele, no entanto, viam o assunto sob outra luz. Disseram-lhe que qualquer concessão agora seria considerada como uma fraqueza fatal e que o apetite dos reformadores somente seria estimulado. Esse foi um argumento que nunca deixou de convencer a imperatriz (…)” (Memórias de um Agente Britânico – Bruce Lockhart).
A burocracia estatal encontrou um aliado em Rasputin, que havia constituído uma ampla camada de aliados em posições-chave. Reconhecia-se amplamente que nenhuma nomeação importante era feita sem a aprovação de Rasputin. Isto fez de Rasputin o ponto focal na batalha entre o estado e a oposição.
Medo da revolução
“Devemos tentar… mostrar ao imperador, de forma firme e lógica, mas com a devida moderação, que ele está levando a Rússia diretamente ao desastre… não há tempo a perder! O perigo é urgente; cada hora conta. Se a salvação não vier de cima, haverá revolução a partir de baixo. E isto significará a catástrofe!” (Grã-duquesa Maria Pavlovna, em 23 de fevereiro de 1917).
O que realmente trouxe abertamente o conflito para dentro da classe dominante foi a ascensão da maré revolucionária a partir de setembro. O movimento estava ganhando ímpeto diariamente. As greves, os tumultos e os protestos estavam se tornando ocorrências diárias. Os liberais estavam pedindo que o czar fizesse concessões a partir de cima para evitar uma revolução a partir de baixo (naturalmente, as concessões que eles pediam simplesmente equivaliam a um acordo de poder compartilhado com os liberais e nada para as massas).
“Com o advento de dezembro, o tom das várias resoluções antigoverno tornou-se mais ousado. Nas fábricas, os socialdemocratas e os socialistas revolucionários estavam agora conduzindo uma ativa propaganda revolucionária. Empurrada até à fúria pelas futilidades de Protopopov, um antigo liberal membro da Duma que, como ministro do interior, revelou-se como mais reacionário que qualquer membro das Centenas Negras. As Uniões dos Zemstvos e das Cidades desafiaram sua ação de proibir seu congresso passando uma resolução secreta que, na violência de sua linguagem, excedia todas as suas demandas políticas anteriores. Não havia, é verdade, nenhuma palavra contra o imperador, mas, depois de um longo preâmbulo no qual foi dada plena ênfase aos males que a Rússia estava sofrendo, a resolução declarava que ‘o governo, agora convertido em um instrumento de forças obscuras, está levando a Rússia à ruína e está destroçando o trono imperial. Nesta grave hora de sua história, o país requer um governo digno de um grande povo. Que a Duma, na luta decisiva que está travando, justifique as expectativas do povo. Não há um só dia a perder!” (Memórias de um Agente Britânico – Bruce Lockart).
Com o czar no front, a administração do país foi assumida por sua esposa, que por sua vez era fortemente influenciada por Rasputin. Os dois se tornaram o ponto focal dos ataques da classe dominante – não tanto por causa de sua influência, mas porque a “oposição” era demasiado covarde para atacar o próprio czar por sua flagrante incompetência.
A maré revolucionária em ascensão aterrorizou a classe dominante que implorava concessões ao czar e à czarina. Mas mesmo quando a Rússia estava levantando sua voz mais alto do que nunca, o casal real parecia mais distanciado da sociedade do que antes. Por volta de meados de dezembro de 1916, Paléologue conta uma conversa entre a grã-duquesa Victoria Feodorovna e a imperatriz:
“’É com pesar e horror,’ disse ela, ‘que tenho observado o crescimento de sentimentos hostis em relação à sua majestade…’
“A imperatriz interrompeu:
“’Você está completamente errada, minha querida. De fato, eu mesma me equivoquei. Até recentemente ainda pensava que a Rússia me odiava. Sei agora que é somente a sociedade de Petrogrado que me detesta, a corrupta e ímpia sociedade que não pensa em outra coisa senão bailar e jantar, e não se interessa por qualquer outra coisa além de seus prazeres e adultérios, enquanto que por todos os lados o sangue flui em córregos!… Sangue”… Sangue!’
“Ela parecia estar quase sufocada de raiva enquanto pronunciava aquelas palavras, e teve que parar por um momento. Em seguida continuou:
“’Mas agora tenho o grande consolo de que toda a Rússia – a Rússia real, pobre, humilde, a Rússia camponesa, está comigo. Se lhe mostrasse os telegramas e cartas que recebo todos os dias de todas as partes do Império, você veria tudo por si mesma. Mas ainda me sinto muito grata por você falar tão francamente’.
“O que a pobre czarina não sabe é que Sturmer teve a brilhante ideia – continuada e melhorada por Protopopov – de conseguir que a Okhrana enviasse todos os dias dezenas de cartas e telegramas redigidos da seguinte forma:
“’Oh, nossa amada soberana, mãe e guardiã de nosso adorado czarevich… Guardiã de nossas tradições… Oh, nossa grande e boa czarina… Proteja-nos dos malvados… Salve-nos de nossos inimigos… Salve a Rússia’” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
Diante da ira crescente nas ruas, a elite dominante ficou em pânico. Mas o czarismo era incapaz de transigir, e quando isso acontecia era sobretudo demasiado tarde e demasiado pouco. Quando o embaixador britânico se aproximou do czar em 13 de janeiro de 1917 para adverti-lo do desastre iminente (e para pressioná-lo a não ceder aos agentes alemães), o czar respondeu friamente: “Você me diz, embaixador, que devo merecer a confiança de meu povo. Não seria antes o meu povo que deve merecer minha confiança?”. E continuou: “Você parece pensar que peço conselhos na escolha de meus ministros. Está completamente errado; escolho-os eu mesmo, sem ajuda…” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
A classe dominante pensava que matando Rasputin removeriam a “influência obscura” sobre o czar, mas isto somente acelerou o processo de desintegração. Diariamente, dentro do establishment, tramas e conspirações eram discutidas e planejadas. A camarilha da corte em torno do trono ficou crescentemente isolada e inclusive havia rumores de que um assassinato tinha sido tentado contra a czarina.
Bruce Lockhart escreveu:
“A narrativa dos primeiros meses que antecederam a primeira revolução é uma crônica de um pessimismo quase irrefreável: fracassos no front (a ofensiva de Brusilov contra a Áustria fora elogiada de forma enganosa), tédio e aborrecimentos nos círculos oficiais da retaguarda, mudanças desconcertantes de ministros, protestos impotentes da Duma, descontentamento crescente e murmúrios não somente nas aldeias, como também nas trincheiras.
“Em São Petersburgo e mesmo em Moscou, a guerra se tornou de importância secundária. O cataclismo que se aproximava já estava nas mentes e nos lábios de todos. A classe dominante, despertada finalmente ante o desastre iminente, tratou de advertir o imperador. As resoluções políticas agora aprovadas não somente pelos liberais como também pela nobreza caíam sobre o imperador como as folhas do outono. Não havia deslealdade nessas petições. Simplesmente pediam ao czar para mudar seus conselheiros, para substituí-los por homens que gozassem da confiança do país. O imperador fez mudanças com a rapidez de um especialista em truques de cartas de baralho, e muito raramente elas satisfaziam a opinião pública. Em nenhum momento foram feitas em resposta à demanda, mesmo que discreta, de um organismo público. Porque este homem que reunia todas as virtudes domésticas, sem vícios e sem força de vontade, era um autocrata por direito divino. Ele poderia mudar de ideia quatro vezes em alguns minutos, mas nunca poderia esquecer sua herança. ‘Que é isto de confiança do povo?’, disse ele. ‘Que o povo mereça a minha confiança’” (Memórias de um Agente Britânico – Bruce Lockhart).
Uma revolução normalmente começa no topo com uma crise dentro da classe dominante. Isso reflete o beco sem saída da velha ordem. Os velhos métodos de governo não satisfazem mais as necessidades do momento e as encenações políticas normais, bem como as concessões menores, não podem deter o crescente movimento das massas. Vendo o desastre iminente, as divisões dentro da classe dominante se aprofundam enquanto as distintas facções tentam encontrar uma saída. Uma facção argumenta que as reformas a partir de cima são necessárias para evitar uma revolução a partir de baixo, a outra argumenta que as reformas somente encorajarão uma revolução e que o movimento deve ser esmagado pela força. Mas ambas as facções estão certas e erradas ao mesmo tempo. No momento em que tais questões são colocadas, na maior parte das vezes, já é tarde demais. Mas o vácuo criado por esta divisão é o pré-requisito para as massas entrarem em cena.
A Rússia não era nenhuma exceção a esta regra geral. Os liberais e a nobreza estavam pedindo reformas, mas nenhuma reforma poderia satisfazer as principais aspirações das massas. Qualquer reforma ou retirada somente liberaria a ira reprimida de anos de opressão e de matança insensata no front. Ao mesmo tempo, nenhuma reforma poderia tirar as massas da pobreza e miséria crônicas de suas vidas.
A corte, por outro lado, não via nenhum espaço para concessões. Com Protopopov como seu ponta de lança, ela começou um contra-ataque. Tão agressivas foram as ações de Protopopov que circulavam rumores de que a czarina estava provocando uma revolução para lhe permitir assinar uma paz em separado com os alemães.
Por um lado, estavam sendo feitos os preparativos para o fechamento da Duma. Por outro, foi forjado um plano para mergulhar em sangue o próximo levante em Petrogrado. As forças militares na capital, que estavam sob o comando do Front Norte, foram desligadas e colocadas sob as ordens do General S. S. Khabalov, uma pessoa próxima a Protopopov e à czarina. Tropas e armas também foram transferidas para fortalecer a força na capital. Khabalov desenvolveu um plano detalhado para manter a ordem, unificando os papéis de polícia e de forças armadas. Tropas, polícia e gendarmes foram designados para distintos setores da cidade, guardando fábricas específicas, pontes, estradas e instituições públicas. O czarismo estava se preparando para afogar qualquer dissidência em sangue.
Impotência dos democratas
Diante de tal degeneração e de uma maré revolucionária em ascensão, a burguesia liberal revelou duas de suas características mais básicas: impotência e covardia.
Em 8 de fevereiro, um grupo de liberais se reuniu com o embaixador francês e o ministro francês das colônias, M. Doumergue, que estava visitando Petrogrado para a conferência aliada. Os outros participantes eram o General Polivanov, o matemático Vassiliev – membros liberais do Conselho do Império –, bem como Miliukov, Maklakov e Shingarev, todos eles líderes do partido “Cadete” na Duma. Como de costume com esse tipo de conversações em janeiro e fevereiro, eles chegaram à questão de persuadir o czar. Em certo momento, Doumergue tentou acalmar a discussão e pediu “paciência”. Isto levou Milyukov e Maklakov à explosão, “Já tivemos paciência suficiente!… Nossa paciência já se exauriu! Além disso, se não agirmos logo, as massas não nos ouvirão mais”. Maklakov repetiu as palavras do contrarrevolucionário francês Mirabeau, “Cuidado ao pedir tempo! O desastre nunca o dá!”.
Essa foi toda a “coragem” da burguesia russa – sentar-se em almoços e jantares dia após dia, nas casas dos embaixadores e nobres, para propor grandes planos de uma revolução palaciana e golpes, mas sem sequer levantar um dedo. Diante do colapso político e militar do czarismo, não podia fazer nada porque temia a revolução mais do que temia ao czar ou mesmo aos alemães. Mesmo quando souberam que o czar estava planejando dissolver a Duma, os liberais foram incapazes de agir. Milyukov admitiu isto orgulhosamente quando disse na primeira sessão da Duma em 27 de fevereiro: “Nossos únicos atos são nossas palavras e somente palavras”.
Mesmo suas palavras, no entanto, somente foram pronunciadas com relutância. Em novembro de 1916, (esperançosos) rumores se espalharam dentro da classe dominante sobre os Cadetes organizando manifestações violentas do lado de fora da Duma. O embaixador francês perguntou a Milyukov se havia quaisquer planos sérios. Sua resposta resume o liberalismo russo: “Não, nada sério. Mas certas coisas terão que ser ditas da tribuna. Caso contrário, perderíamos toda a nossa influência com nossos eleitores e eles iriam para o lado dos extremistas”.
Protopopov, por outro lado, era um homem de ação. Ele começou gradualmente a desgastar os liberais, proibindo suas reuniões e demitindo seus seguidores no estado. Em 12 de fevereiro, ele procedeu à prisão de todos os membros, exceto dois – que eram espiões policiais –, do grupo trabalhista do Comitê das Indústrias de Guerra de Petrogrado. Este último era o órgão de colaboração de classe estabelecido entre os grandes industriais e os mencheviques de direita, bem como o Partido Social-Revolucionário. Sua própria existência, sem dúvida, havia detido muito greves e protestos, mas Protopopov o considerava como uma ameaça. Os líderes presos do Grupo Trabalhista convocaram os trabalhadores não à luta, mas, em vez disso, organizaram uma manifestação pró-guerra em frente à Duma em seu dia de abertura, 27 de fevereiro.
Ironicamente, os dois membros remanescentes, que eram agentes provocadores, conseguiram convencer 58 fábricas – 90 mil trabalhadores – a irem à greve, e ninguém foi à abertura da Duma. Protopopov e Khabalov ficaram encantados e encorajados pelo êxito. Por outro lado, o estado de ânimo na Duma era depressivo. Rodzianko, o presidente da Duma, explicou:
“A abertura da Duma se passou em silêncio. Não havia sinais de nenhuma delegação trabalhista, mas grandes forças policiais haviam sido reunidas nos pátios vizinhos. Para não adicionar mais combustível ao fogo já aceso (sic), limitei-me em meu discurso inaugural (sic) a uma menção ao exército ao seu pleno e leal cumprimento do dever. Em vez de tratar da situação política geral, os debates foram desviados para o abastecimento alimentar (…)
“O ânimo estava baixo. Mesmo o discurso de Purishkevich careceu de vigor. A Duma sentia-se impotente, cansada da luta inútil, quase reduzida, de fato, ao papel de espectador passivo. No entanto, apesar de tudo, a Duma manteve sua velha posição e não procedeu a uma ruptura aberta com o governo. Sua única arma era a palavra falada – e isto foi enfatizado por Milyukov quando disse que a Duma ‘agiria com palavras e somente com palavras’” (O Reino de Rasputin: O colapso de um Império – M. V. Rodzianko).
Esses cavalheiros podiam falar do atraso da Rússia e da ineficiência do czarismo, mas quanto mais falavam, mais claramente exposta ficava sua própria covardia e impotência. A tarefa de extirpar o czarismo semifeudal caiu sobre outra classe que estava irada e buscando uma saída.
As condições da classe trabalhadora
O absolutismo sempre colocou uma grande pressão sobre as condições de vida das massas trabalhadoras, mas a guerra elevou essas pressões a novos níveis.
Apesar do crescimento anual de 6-8% na indústria, as condições da classe trabalhadora russa pioraram nos 10 anos anteriores à revolução de 1917. O estado de ânimo dentro da classe trabalhadora era cada vez mais amargo e os poucos direitos que tinham sido conquistados pelo movimento dos trabalhadores foram gradualmente minados nos anos de reação e da I Guerra Mundial.
A administração czarista das fábricas refletia o desenvolvimento desigual e combinado da Rússia. Inicialmente, administrou as extremamente modernas fábricas com a mesma crueza e violência da etapa inicial do capitalismo. Ameaças, sanções, multas e violência física eram métodos aceitáveis de “encorajamento” para elevar os níveis de produtividade. A revolução de 1905 produziu um efeito educador sobre os industriais, mas depois que ela foi derrotada o gerenciamento quis reafirmar-se e restaurou muitos de seus velhos métodos.
Bater nos trabalhadores, o ritual degradante de vistoriar os trabalhadores quando deixavam as fábricas e de multá-los pelas razões mais arbitrárias eram uma prática normal. Os odiados capatazes, os gerentes hierarquicamente mais baixos que governavam os pisos das oficinas como seus próprios e pequenos reinos privados, se encarregavam de aplicar estes métodos, apoiados pelos até mesmo mais odiados sluzhashchie, uma camada de trabalhadores de colarinho branco que eram utilizados como uma extensão do braço gerencial entre os trabalhadores.
Quando a guerra começou, a classe dominante ficou temporariamente fortalecida pelo estado de ânimo patriótico. Sob a bandeira de “defesa da pátria” as horas-extras foram aumentadas – a jornada de trabalho realmente aumentou pela primeira vez desde 1905 – e as leis de proteção ao trabalho feminino e infantil foram anuladas. A administração, desimpedida pela lei e com o apoio ativo do estado, usava cada vez mais as ameaças de envio dos trabalhadores ao front, à prisão ou ao exílio para se afirmar.
A segurança e o bem-estar dos trabalhadores eram preocupação secundária para os industriais. Em 1912, o diretor da fábrica de explosivos Okhta, General Somov, informou à Duma depois de um acidente que matou cinco e feriu cinquenta: “Esses acidentes acontecem e continuarão acontecendo. Nunca entro na fábrica sem antes fazer o sinal da cruz”. Essa declaração é reveladora da atitude dos capitalistas russos em relação à classe trabalhadora. Uma trabalhadora descreveu as condições na seção da substância explosiva melinite da mesma fábrica em 1915: “No setor onde fazem a lavagem e a fumigação, o ar é tão sufocante e venenoso que alguém que não está acostumado não pode tolerá-lo por mais de cinco ou dez minutos. Todo o seu corpo se envenena”. É verdade que a fábrica de explosivos Okhta era notoriamente insegura, mas a atitude do General Somov não era muito diferente da atitude da burguesia em geral.
Do lado de fora dos portões das fábricas, os patrões infligiam um tipo de violência mais brutal aos trabalhadores – o da pobreza crônica. Sergei Prokopovich, um menchevique russo, estimou que se necessitavam de três vezes o salário médio anual de um trabalhador para se manter uma família em Petrogrado. No contexto da expansão da produção em tempos de guerra, os salários – que partiram de uma base baixa – aumentaram ligeiramente, principalmente em consequência do aumento das horas extraordinárias e do aumento da jornada de trabalho. Mas este aumento foi logo comido pela inflação em espiral. Por todo o país os salários reais caíram durante a guerra, em particular no transcurso de 1916. Petrogrado, lar das cruciais indústrias de defesa, foi provavelmente a única região da Rússia onde os salários reais aumentaram na indústria. Mas isto só durou até o março de 1916, após o que os salários caíram rapidamente. No momento da Revolução de Fevereiro, os salários de Petrogrado estavam em torno de 15% a 20% abaixo do nível de 1913.
Os alimentos, o maior item no orçamento das famílias da classe trabalhadora, absorvia cerca da metade de toda a renda. Uma pesquisa realizada no estaleiro do Báltico em 1917 mostrava que 60% da renda era gasta em alimentos e iluminação. O segundo maior item das despesas das famílias trabalhadoras era o alojamento. Somente uma minoria podia se permitir um alojamento separado. A maioria dos trabalhadores viviam em habitações compartilhadas em bairros insalubres.
Concentrados em áreas geograficamente pequenas, amontoados em fábricas gigantescas que utilizavam as mais modernas técnicas de produção do mundo, a relativamente pequena classe trabalhadora estava imersa no ambiente capitalista mais moderno. Parcialmente, o czarismo utilizou o afluxo de camponeses nas fábricas para combater a crescente influência socialista, mas a mentalidade camponesa foi rapidamente abalada pelas exigências que as novas condições exerciam sobre ela. O individualismo e a natureza resignada dos camponeses ao entrarem na fábrica imediatamente ficavam sob a pressão do ambiente fabril que rapidamente levava à colaboração nos locais de trabalho e à luta coletiva contra os patrões. A. Buiko, um trabalhador de primeira geração em Petrogrado, recordou a revolução interna que os camponeses sofreram ao se integrarem no proletariado de Petrogrado:
“Nos primeiros anos antes de superar minhas atitudes ainda camponesas, sentia-me só e com um constante medo de outras pessoas. Mas, quando me aproximei de meus camaradas, comecei a sentir o solo firme sob meus pés. Apareceram a confiança e a segurança: Não estou só – existem muitos de nós. Todos somos como um. A consciência deste fato produziu tanta energia que durou por toda a luta subsequente” (Os trabalhadores de Petrogrado e a Queda do Velho Regime – David Mandel).
Mas embora a tendência subjacente entre a classe trabalhadora fosse de ações coletivas para fazer frente aos seus problemas, para o absolutismo czarista e para os industriais – que costumavam ser a mesma coisa – a dissidência não era permitida e com frequência enfrentava a repressão policial e militar. Sob o pretexto da guerra, a maioria dos sindicatos foram fechados e a ação coletiva sancionada. Em fevereiro de 1917 somente 11 minúsculos sindicatos ilegais e três legais (imprensa, farmácia e atendentes de lojas) foram deixados em Petrogrado. Até mesmo as reuniões e a organização de cantinas e cooperativas foram proibidas. As menores tentativas dos trabalhadores de se expressarem foram esmagadas sob o calcanhar de ferro do czarismo. Os menores conflitos tenderiam imediatamente a tomar caráter político. A passagem à política revolucionária não demorou muito a chegar nessas condições.
O campesinato
“O subsolo da revolução estava no problema agrário” (História da Revolução Russa – Leon Trotsky).
A vida no meio rural também era sombria, e ainda mais exacerbada pela guerra. A reforma de 1861 tinha abolido a servidão, mas não erradicou completamente os remanescentes do feudalismo e colocou o peso intolerável do pesado reembolso nos ombros dos camponeses russos. Nada foi resolvido e, em 1900, cerca de 85% dos russos ainda eram camponeses, vivendo em pobreza extrema enquanto a nobreza ainda possuía a melhor terra. As reformas agrárias de Stolypin durante os anos de reação que se seguiram à derrota da Revolução de 1905 tentaram quebrar as velhas comunas aldeãs e criar uma camada de camponeses capitalistas ricos (Kulaks) como uma base de apoio ao regime. Mas isto apenas minou ainda mais a posição da vasta maioria dos camponeses, que odiavam as reformas. Em algumas regiões, os camponeses precisavam de 20 anos para obter sua terra. Muitos foram forçados a pagar preços inflacionados pela terra e a maioria recebeu parcelas inadequadas, das quais mal conseguiam sobreviver. O principal efeito foi o de forçar um grande número de camponeses a vender sua terra aos kulaks ricos e juntar-se ao proletariado ou assumir um trabalho sazonal nas cidades. Quando a guerra começou, quase um milhão de famílias camponesas (cinco milhões de pessoas) tinham se juntado às fileiras do proletariado. Junto à desintegração do campesinato veio o início da desintegração da antiga lealdade ao czarismo. Esta tendência foi acelerada pela guerra que mobilizara 10 milhões de camponeses jovens e os organizara em um exército liderado pelo próprio czar que perdia batalha após batalha ao custo de incontáveis vidas.
Mesmo antes da guerra, tumultos e protestos violentos dos camponeses estavam em ascensão. A mentalidade passiva e resignada dos camponeses estava dando lugar a um ânimo de rebelião e raiva. Maurice Paléologue descreveu os dois principais elementos da consciência dos mujiques:
“O mujique é famoso por sua resistência e fatalismo, por sua mansidão e docilidade; sua ternura e resignação não raras vezes alcança o sublime. Mas, de repente, você o verá erguer-se e rebelar-se. (…) Não conheço nenhum país onde o fato social esteja tão impregnado com o espírito da tradição e da religião; vida doméstica tão solene, patriarcal, inspirada por tanta ternura e carinho, envolta em tanta poesia e reverência. Em nenhum lugar os deveres e as responsabilidades familiares são aceitos mais facilmente; e as adversidades da vida cotidiana suportadas com mais paciência.
“Por outro lado, em nenhum outro país são as revoltas individuais mais frequentes e súbitas, e em nenhuma parte criam tal sensação. Neste ponto, os registros dos crimes passionais escandalosos abundam de exemplos surpreendentes. Não há nada excessivo que os russos, homens e mulheres, não sejam capazes de fazer no momento em que decidirem ‘afirmar-se como seres livres’” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
O enorme fardo da guerra sobre as massas camponesas inclinou ainda mais o ponteiro para uma direção insurrecional. Além da crise econômica, milhões das mais fortes mãos foram removidas do campo. O descontentamento começou a se espalhar às áreas mais conservadoras. Paléologue relembra uma conversa em 9 de fevereiro de 1917 com um príncipe que tinha chegado recentemente de uma visita à cidade rural de Kostrovna:
“É uma das províncias do Império onde a lealdade dinástica é mais intensa e as tendências hereditárias, os hábitos sociais e os sentimentos nacionais do povo russo são preservados em toda a sua integridade. Estou, portanto, algo ansioso para conhecer o estado de ânimo público nessa região (…):
“’As coisas estão indo mal! Estão cansados da guerra, não entendem nada sobre isto exceto que a vitória é impossível. E, no entanto, não clamaram pela paz até agora. Vi um descontentamento melancólico e resignado por todos os lados. O assassinato de Rasputin causou uma vívida impressão sobre as massas’.
“’Oh, que tipo de impressão?’
“’É um fenômeno muito curioso e completamente russo. Para os mujiques, Rasputin tornou-se um mártir. Ele era um homem do povo; ele deixou o czar ouvir a voz do povo; ele defendeu o povo contra a gente da corte, o pridvorny. Então, o pridvorny o matou! É isto o que está sendo dito em todas as isbas’.
“’Mas o público em Petrogrado ficou muito feliz quando a morte de Grishka foi conhecida! Por que o povo correu para as igrejas para acender velas ao ícone de Santo Dimitri? Porque eles logo pensaram que foi o grão-duque Dimitri quem matou o cão’.
“’Em Petrogrado os homens sabiam das orgias de Rasputin e regozijar-se com sua morte era uma forma de mostrar hostilidade ao imperador e à imperatriz. Mas tenho a ideia de que, falando no geral, todos os mujiques da Rússia pensam o mesmo como os de Kostrovna’” (Memórias de um Embaixador – Maurice Paléologue).
Embora de forma distorcida, esta conversa revela um crescente ódio de classe entre o campesinato que via em Rasputin um crente, um homem do povo, que tinha sido morto pela parasitária e privilegiada camarilha da corte. Trotsky assinala em seu livro, História da Revolução Russa, que a única razão pela qual o campesinato não se rebelou mais se deveu ao fato de que seus elementos mais ativos tinham sido mobilizados no exército.
Em 3 de março de 1917, Paléologue relata que o bispo de Viatka, aliado próximo de Rasputin, pintou um quadro ainda mais sombrio em uma conversa com a czarina. O Bispo disse que “observou que a desmoralização do povo estava fazendo um progresso alarmante a cada dia. Os homens que retornavam do exército, doentes, feridos ou de licença, estavam fazendo declarações escandalosas; professavam abertamente a descrença e o ateísmo e sequer recuavam da blasfêmia e do sacrilégio… O bispo explicou o número inusitado de crimes de violência explícita que tinha sido registrado nos meses recentes não somente na diocese de Viatka, como também nas dioceses vizinhas. O bispo disse que era necessária uma forte ação do clero. ‘Mas confesso com pesar à sua majestade’, admitiu ele, ‘que a desmoralização geral não poupou os nossos sacerdotes, particularmente nos distritos rurais. Alguns são verdadeiros santos, mas a maioria está abandonada e degradada. Não têm nenhuma influência com seus paroquianos’”.
Nas trincheiras
A guerra sempre é uma espada de dois gumes para a classe dominante. Traz consigo, em primeiro lugar, uma onda de patriotismo, mas, ao revelar os antagonismos de classe na sociedade, o mesmo patriotismo e autossacrifício logo dão lugar ao seu oposto. A guerra trouxe à tona toda a podridão e miséria da Rússia czarista.
Os soldados camponeses foram arrancados de suas aldeias isoladas e estagnadas e brutalmente lançados às realidades da vida moderna. O czarismo não somente organizou o campesinato, também destruiu suas grandes ilusões e crenças míticas no “paizinho”.
Um interessante estudo de Allan K. Wildman (O Fim do Exército Imperial Russo: O Velho Exército e a Revolta dos Soldados – Março-Abril, 1917) revela o profundo descontentamento e a rebelião fervente cativando os soldados no front durante os meses que precederam a Revolução.
Os horrores e sofrimentos no front produziram um profundo impacto na consciência dos camponeses. Uma avaliação feita por um censor de 170 mil cartas enviadas ao e do Segundo Exército (Front Ocidental) em fevereiro de 1917 reportava “um ânimo depressivo se aproximando do desespero no front interno, devido às requisições, que forçavam as esposas dos soldados a vender o gado, e à inflação”. Das 170 mil cartas, cerca de 18.300 foram destruídas, enquanto cerca de 13.000 passaram com supressões parciais. Das cartas restantes, 34.000 foram marcadas como “alegres”, 8.000 como “depressivas”.
Um soldado escreveu em 15 de fevereiro:
“É vergonhoso que tenhamos de sofrer um terceiro ano por Deus sabe o quê… Será que somos culpados de que o governo tenha adquirido inimigos deixando entrar colonos alemães, dando-lhes terras, deixando-os assumir posições de autoridade sobre o povo russo? O alemão agora está governando nosso país. O camponês russo não tem como conseguir qualquer coisa, nem educação nem uma vida livre. Foi-lhe dado apenas um direito – o de mendigar em nome de Cristo, e agora eles o fazem defender não à pátria, mas aos ‘barões’ latifundiários”.
Além da matança insensata de soldados em ofensivas sem esperança, a questão da alimentação e da inflação – que, de acordo com a carta de um soldado, “engorda os ricos e arruína os pobres, psicológica e materialmente” – tornou-se um tema incandescente nos últimos meses de 1916. A crise alimentar era tão severa no front quanto nas cidades. As rações de pão foram reduzidas, primeiro de 1,3kg a 900g ao dia e, em seguida, a 450g. Às vezes o pão estava completamente ausente das refeições e era substituído por outro alimento ou dinheiro, o qual era inútil quando não havia suprimentos para comprar. Um substituto do pão eram as lentilhas (chechevitsa), que os soldados odiavam.
As cartas vindas do front reportadas no estudo de Allan Wildman estavam cheias de observações sobre a situação alimentar: “A comida é pior do que lixo, você poderia morrer de fome”. “A comida é tão ruim que adoece os cavalos”. “Tudo o que você tem é mais ervilhas com água e, é claro, chechevitsa”. “Eles nos alimentam pior do que aos cães”. No momento da revolução de fevereiro, a situação se tornou crítica: “Não há mais pão, nada para comer”. “Ficamos aqui sentados durante dias sem pão”. “Frio e fome, nada além de privação!”. “Prefiro ser assassinado a morrer de fome como um cão”.
Quando o czar extinguiu os rumores sobre uma paz iminente, um soldado escreveu a um amigo na retaguarda: “Eles emitiram uma ordem de que não haverá paz até a vitória total. E você sabe o quanto eles nos alimentam mal – somente feijões para o jantar e para a sobremesa. Diga aos seus camaradas que todos devemos organizar uma revolta contra a guerra”.
As medidas punitivas dos oficiais eram outra fonte de raiva. Às vezes os oficiais chicoteavam os soldados apenas para excitá-los antes de um ataque, ou às vezes sem motivo algum. Mas os soldados resistiam cada vez mais. Uma carta vinda do front no final de 1916 dizia:
“Estávamos em batalha por nove dias e os alemães deram-nos uma boa lambida, derrubando um terço do regimento e deixando somente 30 homens por companhia, e agora mais uma vez eles querem que empurremos os alemães para fora de nossas trincheiras; e concordamos, mas dois de nós sofremos um ataque de bombas e fomos à enfermaria. Ali, o coronel e o padre os pegaram e bateram neles com 25 golpes de vara e os enviaram de volta à linha de frente. Quando vimos isto, explodimos e gritamos, ‘enviem-nos o padre, o coronel e o médico, e então lutaremos!’. Enviamos um telegrama ao czar, dizendo-lhe para nos levar e nos fuzilar, mas que não lutaríamos mais” (O Fim do Exército Imperial Russo: o Velho Exército e a Revolta dos Soldados – Março-Abril de 1917 – Allan K. Wildman).
Os motins eram comuns desde o início da guerra, mas aumentaram em número e magnitude. Entre setembro e dezembro de 1916, foram relatados 86 motins envolvendo regimentos inteiros. Cada caso estava centrado na questão da ordem de lançar ataques. Como Wildman informa:
“Os oficiais subalternos que mandavam seus homens avançar seriam respondidos, tipicamente, por gritos vindos da escuridão ou das fileiras da retaguarda: ‘Nós não iremos!’ ‘Asseguraremos o front, mas não atacaremos!’ ‘Quem se mover, levará um tiro!’ ‘Deem-nos botas e roupas quentes primeiro!’ O problema usualmente começava em uma companhia e se espalhava a outras com ameaças de tiros se avançassem. Meros rumores de que uma unidade vizinha tinha se recusado a avançar despertaram o temor de um flanco exposto e isto poderia imobilizar um regimento inteiro” (O Fim do Exército Imperial Russo: o Velho Exército e a Revolta dos Soldados – Março-Abril de 1917 – Allan K. Wildman).
A temerosa Okhrana registrou o colapso do moral. Um informe da censura militar do Sexto Exército de 18 de outubro de 1916 registrava que as cartas ao front e vindas do front revelavam “uma insatisfação universal extremamente aguçada e ameaçadora com o aumento dos preços e com a impunidade dos especuladores”, e que muitos soldados estavam convencidos de que “depois da guerra, teremos que ajustar contas com o inimigo interno”. Outro soldado escreveu: “os pomeshchik [proprietários – NDT] começaram a guerra para acabar com os mujiques e para evitar que se apoderem de suas terras”.
O ânimo estava adquirindo um caráter de classe e os mujiques estavam se aproximando dos trabalhadores. Durante a onda de greves do final de 1916, informa Wildman, a Comissão Central de Censura Militar escreveu:
“É impossível não notar nas cartas, tanto para o exército quanto do exército, as manifestações cada vez mais agudas de insatisfação com a situação política interna em conexão com a desorganização geral do front interno e dos preços cada vez mais elevados dos objetos de primeira necessidade. Os rumores de desordens, greves nas fábricas, distúrbios nas unidades de retaguarda etc. estão chegando ao exército e estes rumores, frequentemente exagerados e fantasistas, evocam o afundamento do moral nas tropas e a extrema ansiedade em relação às suas famílias”.
A comissão disse que 40% das cartas vindas do interior contêm referências a greves e que “recentemente têm aumentado os rumores de que os soldados na retaguarda estão se juntando aos trabalhadores ou estão demonstrando sua insatisfação por conta própria”.
O campesinato estava pronto para a rebelião, mas, como classe, o campesinato é incapaz de desempenhar um papel independente. Historicamente, a questão agrária foi resolvida nas revoluções burguesas onde o campesinato era caudatário da classe capitalista em ascensão, mas aqui a classe capitalista era incapaz de destruir o velho regime. Essa foi a base para a união do movimento dos trabalhadores com a rebelião camponesa. Trotsky explicou o processo em jogo:
“A lei do desenvolvimento combinado, própria dos países atrasados – no sentido de uma combinação original dos elementos retardatários com os fatores mais modernos – é-nos formulada em sua expressão mais perfeita, dando-nos, ao mesmo tempo, a chave do enigma da Revolução Russa. Se a questão agrária, herança da barbárie da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo não teria, jamais, conseguido subir ao poder em 1917. Para que o estado soviético fosse fundado foi necessária a aproximação e a penetração recíprocas de dois fatores de natureza histórica inteiramente diferentes: uma guerra de camponeses, movimento característico da aurora do desenvolvimento burguês; e uma insurreição proletária, isto é, um movimento que marca o ocaso da sociedade burguesa. É isto a essência do ano de 1917” (História da Revolução Russa – Leon Trotsky).
Pão
Em última análise, um regime que é incapaz de satisfazer as necessidades mais básicas – como a do pão – está condenado. O czarismo não foi capaz de resolver essa questão na sua forma mais simples e básica. A escassez de alimentos foi a questão mais explosiva no período que antecedeu a Revolução de Fevereiro. Ela era discutida em todos os círculos e em todas as ocasiões. Filas para obter alimentos, que começaram como ocorrências excepcionais, tornaram-se a norma.
“No verão passado, as pessoas mais pobres tomavam seus lugares nas filas dos açougues municipais de Petrogrado às 10 horas da noite. O sol mal se tinha posto sobre a ilha Elagin, onde os ricos e elegantes desfrutavam de suas facilidades e das maravilhas das noites brancas, antes que os pobres, cestas nas mãos, começassem sua cansada vigília. Alguns esperavam de 10 a 12 horas por um pedaço de carne, o qual, em caso algum, excedia 1,3kg. Desde então, vimos as filas se tornarem a regra – para a carne, para o pão, para o leite, farinhas, legumes, para o açúcar as pessoas esperavam em longas ‘caudas’. Ricos e pobres participavam delas, os últimos pessoalmente, os primeiros através de seus serviçais” (The Times, 29 de janeiro de 1917).
A polícia começou a patrulhar as “caudas” e as proibiu de se reunirem antes das 6 horas da manhã. Em janeiro e fevereiro, com temperaturas abaixo de -30ºC, as filas estavam se transformando cada vez mais em motins. A situação era desesperadora.
Entrementes, entre os ricos e os privilegiados, a situação era diferente. No banquete de estado por ocasião da conferência aliada no final de janeiro de 1917, o embaixador francês queixou-se de que o cardápio (potage crème d’orge, fruites glacés de Gatchina, longe de veau Marengo, poulets de grain rôtis, salade de concombres, glace mandarine) era simplesmente burguês e não correspondia “ao famoso esplendor da cozinha imperial”. Com a típica ignorância e desapego liberal, James L. Houghteling, o jovem filho de banqueiro estadunidense em Moscou, explicou um incidente no início de fevereiro:
“No jantar, sentei-me entre a anfitriã e a Sra. Lockhart, esposa do cônsul britânico, ambas encantadoras. Conversamos principalmente sobre a situação internacional, nada de original, e muita conversa fiada. Alguém falou que outro dia em uma padaria, no momento em que o pão acabou, a multidão descobriu três vagões de farinha no pátio traseiro. Apoderaram-se deles e descobriram que estavam consignados ao chefe dos correios de Moscou e a mais dois outros funcionários. As pessoas começaram a se rebelar e a gritar que havia de tudo para os ricos e poderosos, mas somente cartões de racionamento do pão e escassez para os pobres. Os modos dos russos são um tanto diferentes dos nossos. Antes de entrar na sala de jantar, estávamos em torno de uma mesa no corredor, cheia de todos os tipos de aperitivos e licores, e havia uma boa quantidade de comida. Ao longo da ceia, o Sr. G. continuava se levantando e circulando pela mesa com uma garrafa em cada mão, enchendo os copos de seus convidados”.
O acompanhante de Houghteling no banquete, o cônsul britânico, Mr. Lockhart, via as coisas com mais clareza:
“Encontrei a atmosfera de São Petersburgo mais depressiva do que nunca. O champanhe fluía como água. O Astora e o Europa – os dois melhores hotéis da capital – estavam abarrotados de oficiais que deviam estar no front. Não havia desgraça alguma em ser um ‘mandrião’ ou em encontrar uma sinecura na retaguarda. Tive um sentimento de tédio infindável e de fin de siècle. E nas ruas estavam as longas filas de homens malvestidos e de mulheres tagarelas, esperando pelo pão que nunca chega”.
Os primeiros abalos
Contudo, nas ruas o ânimo estava aquecendo. Com fome e excesso de trabalho, os trabalhadores e os soldados começaram a se rebelar. Em outubro de 1916, uma série de greves políticas em massa contra a inflação e contra a guerra e envolvendo mais de 120 mil trabalhadores já tinha varrido Petrogrado. Em uma fábrica, depois que os grevistas esmagaram a polícia, dois regimentos dos quartéis próximos foram enviados para destroçar a greve. Em vez de disparar sobre os trabalhadores, no entanto, os regimentos dispararam sobre a polícia e tiveram que ser desarmados pelos regimentos de cossacos.
Nos seis meses que vão de setembro de 1916 ao início da revolução, pouco mais de 1 milhão de diárias de trabalho foram perdidas em Petrogrado, três quartos delas em greves políticas. Os primeiros dois meses de 1917 sozinhos tiveram 575 mil trabalhadores tomando parte em greves políticas. Em todas as fábricas, grupos revolucionários foram formados, frequentemente em torno dos trabalhadores bolcheviques. Havia reuniões, greves e protestos diariamente. Um relatório policial registra:
“De acordo com o porta-voz do grupo de trabalhadores da indústria de guerra, o proletariado da capital está à beira do desespero. Acredita-se que, à menor perturbação ou ao menor pretexto, isso levará a tumultos incontroláveis com milhares de vítimas. De fato, as condições para tal explosão já existem. A condição econômica das massas, apesar de grandes elevações nos salários, está próxima do ponto da angústia…. Mesmo que os salários sejam dobrados, o custo de vida triplicou. A impossibilidade de obter produtos, a perda de tempo gasto nas filas das lojas, a crescente taxa de mortalidade devido às más condições de habitação, ao frio e à umidade resultante da falta de carvão… Todas essas condições criaram uma situação tal que a massa dos trabalhadores industriais está pronta para irromper nos mais selvagens distúrbios de fome.
“As restrições legais que pesam sobre os trabalhadores tornaram-se insustentáveis e intoleráveis. A proibição de mudança de emprego de uma fábrica para outra ou de um emprego para outro reduziu os trabalhadores a um estado de bens móveis, apenas como ‘bucha de canhão’. A restrição de todas as reuniões, mesmo com o propósito de organizar cooperativas ou cantinas, e o fechamento dos sindicatos são as razões por que os trabalhadores, liderados pelos mais educados e talvez os mais revolucionários entre eles, adotaram uma atitude abertamente hostil ao governo e o protesto contra a continuação da guerra” (A Revolução Russa de 1917 – Marc Ferro).
A propaganda revolucionária e a propaganda contra a guerra eram cada vez mais procuradas. Os bolcheviques estavam crescendo rapidamente, mas o movimento crescia mais rápido. Não era apenas em Petrogrado, mas também em Moscou, Nizhni-Novgorod e em outros lugares. Os bolcheviques de todas as partes relatavam, escreveu Shlyapnikov, que “panfletos e proclamações ilegais não eram mais evitados, mas procurados, solicitados e lidos com interesse e confiança. O ódio ao governo havia sondado as profundezas da sociedade e isto aterrorizava os cães burgueses liberais”.
No entanto, os bolcheviques não estavam sempre em contato com o estado de ânimo real e se confundiram em várias situações. Em 9 de janeiro, entre 200 e 300 mil trabalhadores foram reprimidos por comemorarem o aniversário do Domingo Sangrento e início da revolução de 1905.
Os mencheviques de direita organizados no Grupo Trabalhista se opuseram às greves e, em seu lugar, pediram protestos em apoio ao esforço de guerra na abertura da Duma em 14 de fevereiro. O comitê bolchevique se opôs a isso e convocou greves em 10 de fevereiro, aniversário da prisão dos deputados bolcheviques da Duma.
A greve de 10 de fevereiro foi bem-sucedida, mas não tão bem-sucedida quanto a greve do dia anterior. Dessa vez saíram 90 mil trabalhadores. O comitê bolchevique viu o declínio dos grevistas como um sinal de que o estado de ânimo ainda não estava pronto para uma luta total. Assim, seus preparativos se dirigiam à acumulação de um movimento a tempo para o Dia do Trabalho daquele ano. Em 8 de março (23 de fevereiro do velho calendário), eles optaram por convocar uma manifestação em vez de greves.
Em meados de fevereiro, só restava uma reserva de farinha para 10 dias em Petrogrado. Khabalov decidiu introduzir cartões de racionamento do pão em 28 de fevereiro. Na manhã seguinte, 1 de março, havia filas massivas em frente às padarias e em frente a todas as lojas de alimentos, as quais se esvaziaram rapidamente. Em seguida, as multidões começaram a invadir as lojas. Isso ocorreu durante vários dias, principalmente quando as pessoas esperavam sob um frio de -20ºC durante horas somente para serem informadas de que “não há mais nada”. Era este o clima entre milhares de pobres que haviam mantido uma presença quase permanente nas ruas pouco antes da revolução de fevereiro.
O elemento final adicionado à mistura veio em 3 de março, quando irrompeu uma greve em uma pequena oficina da fábrica Putilov. Os trabalhadores exigiam aumento salarial para compensar o que perderam com a inflação em espiral. Foram realizadas reuniões em solidariedade aos trabalhadores por toda a fábrica, mas os patrões não concederiam. A greve se espalhou por toda a fábrica. Então, em 7 de março, os patrões reagiram bloqueando todos os 26 mil trabalhadores da Putilov. Um comitê de greve foi formado e despachadas delegações a outras fábricas para obter apoio. Assim, à beira da revolução de fevereiro, os trabalhadores mais conscientes da Putilov e as massas enfurecidas das filas do pão já estavam em movimento, anunciando a iminente irrupção da Revolução.
Muitos experts burgueses colocaram a culpa pela revolução nas ações “irracionais” do czar e do regime czarista nos últimos meses de sua existência. Se o czar tivesse cooptado os liberais, dizem eles, se ele fizesse grandes reformas, poderia ter evitado a revolução e a Rússia teria embarcado em um período de democracia burguesa. Isso é típico dos acadêmicos burgueses, reduzir os grandes acontecimentos históricos a ações acidentais destes ou daqueles indivíduos. Mas uma revolução, mais do que qualquer outra coisa, mostra como, em última análise, as ações dos indivíduos são dirigidas pelo processo histórico.
A revolução russa tinha sido preparada durante décadas antes desses meses. Décadas de podridão se desenvolvendo em cada poro do czarismo, décadas de opressão e raiva reprimida, séculos de tormentos para o campesinato, todos reunidos na grande matança da Primeira Guerra Mundial. Em tudo isso, a incompetência do czar era uma expressão da decadência senil do próprio czarismo. Um acordo com os liberais e a introdução de algum tipo de governo de unidade nacional não teriam mudado fundamentalmente as coisas, exceto talvez desacreditar os liberais ainda antes que a revolução finalmente estalasse. Mesmo no melhor dos casos, a democracia liberal, na forma em que existia na Rússia, não tinha nenhuma intenção de se ocupar com qualquer um dos candentes problemas das massas. Trotsky deu uma resposta definitiva à questão:
“Como, porém, a Rússia, com um desenvolvimento atrasado, a última de todas as nações europeias, repousando sobre medíocres bases econômicas, teria podido elaborar esse ‘maleável espírito conservador’ nas formas sociais – feito sob medida para o liberalismo acadêmico e para a sua esquerda, os socialistas reformistas? A Rússia permaneceu em atraso por um tempo excessivamente longo e, quando o imperialismo mundial a agarrou com suas manoplas, viu-se forçada a viver a sua história política com importantes alienações. Se Nicolau tivesse acolhido bem o liberalismo e colocado Milyukov no lugar de Sturmer, a marcha dos acontecimentos teria sido, talvez, um pouco diferente quanto à forma, mas não quanto ao fundo. Foi precisamente este o caminho seguido por Luís XVI na segunda fase da revolução, chamando a Gironda ao poder, o que não o livrou da guilhotina, nem também aos girondinos. Os antagonismos sociais acumulados deveriam explodir e, após a explosão, realizar uma limpeza completa. Diante do impulso das massas populares que, por fim, manifestaram abertamente os seus infortúnios e vexames, paixões, esperanças, ilusões e reivindicações, as combinações superficiais da monarquia com o liberalismo não tinham senão um valor episódico e só poderiam influenciar a ordem de sucessão dos acontecimentos, talvez o número de atos representados; de forma alguma, porém, o desenvolvimento geral do drama e ainda menos o seu terrível desenlace”.
A Revolução Russa estava madura. Independentemente da vontade e dos planos de todos os governantes, instituições, partidos e organizações – e, de fato, em oposição a eles –, as massas estavam determinadas a tomar o seu destino em suas próprias mãos e nenhuma força poderia detê-las quando estivessem em movimento.
Artigo publicado originalmente em 7 de março de 2017, no site Corrente Marxista Internacional, sob o título “The Russian Revolution: On the Eve of The February Revolution”.
Tradução Fabiano Leite.