O capitalismo sul-africano está em crise total. A classe dominante está dividida e a deterioração das condições de vida dos trabalhadores e dos pobres está causando uma onda de ressentimento que emergirá à superfície mais cedo ou mais tarde, colocando uma luta de classes renovada na agenda.
Quase dois anos depois de Cyril Ramaphosa substituir Jacob Zuma como presidente da África do Sul, toda a euforia da opinião pública burguesa evaporou. Naquele momento, os grandes capitalistas estavam em êxtase por terem um dos seus no Union Buildings [Residência oficial e sede do gabinete do presidente da África do Sul – NdT]. O “novo amanhecer” de Ramaphosa, consistindo em “limpar” o governo – isto é, tirar o poder do Estado da burguesia negra emergente em torno de Zuma e colocá-lo de volta sob o controle direto das grandes empresas – foi celebrado com grande entusiasmo pela classe dominante.
A pilhagem desenfreada dos recursos do Estado pela ala júnior da classe dominante estava desestabilizando toda a situação. O medo de perder o controle forçou a grande burguesia a se posicionar contra Zuma. O que a classe dominante precisava era de um governo forte para avançar um programa de contrarreformas e colocar todo o peso da crise da economia nas costas dos trabalhadores.
Mas essas esperanças vieram abaixo. Em vez disso, a situação piorou nos dois anos sob Ramaphosa. Agora há um sentimento de fatalidade pairando sobre Sandton [Município da região de Johanesburgo habitado pelos ricos – NdT] e no distrito financeiro de Johanesburgo. O problema para a classe dominante é que o controle de Ramaphosa de sua posição é muito débil. As batalhas entre as facções opostas, apoiadas pela burguesia, pelo poder e influência no CNA [Congresso Nacional Africano – um dos principais partidos políticos da África do Sul], somente se intensificaram desde o último congresso do partido. O partido está em estado de paralisia. Isso enfraqueceu Ramaphosa em tal medida que ele está lutando apenas para se manter flutuando. O próximo Conselho Geral Nacional do CNA, em junho, pode indicar a verdadeira força de seu controle do poder.
Agora as grandes empresas decidiram tomar o assunto em suas próprias mãos lançando uma série de ataques contra os trabalhadores, com ondas de cortes em massa no setor privado. Mas indo à ofensiva dessa forma, com um governo enfraquecido no poder, a burguesia está brincando com fogo. Não estão se movendo a partir de uma posição de força, mas de desespero. No final, todos esses ataques podem provocar uma reação violenta por parte dos trabalhadores.
Além disso, há a crise de suprimento de eletricidade, que se aprofundou em tal extensão que a indústria da mineração teve que encerrar as operações mais cedo do que o normal para as férias do Natal. Eskom, uma das maiores empresas de serviços públicos do mundo, que é responsável pela geração de 95% do suprimento de eletricidade do país, está de joelhos como resultado direto de duas décadas de má administração, corrupção e pilhagem total de seus recursos.
Estagnação econômica
Esses ataques da classe dominante são um reflexo da seriedade da crise. O capitalismo na África do Sul está passando por sua mais profunda crise de todos os tempos. Quando falamos de crise, não estamos falando de uma crise episódica, mas de uma crise orgânica do sistema. De uma crise que afeta todas as facetas da sociedade – econômica, social e política.
Um sistema socioeconômico é viável desde que desenvolva as forças produtivas, isto é, a indústria, a agricultura, a técnica. Vistas dessa perspectiva, é bastante óbvio que as coisas estão em situação muito ruim. A crise na economia é causada pelo próprio capitalismo, que chegou a um beco sem saída. As políticas capitalistas perseguidas pelo governo do CNA durante os últimos 25 anos, junto à crise mundial do capitalismo, resultaram em uma economia estagnada. De fato, a economia ainda não se recuperou do crash de 2008. Agora há uma nova recessão global no horizonte que golpeará fortemente a economia.
A África do Sul é a economia mais avançada da África. Ao contrário da maioria dos países do continente, ela tem uma economia relativamente bem desenvolvida e diversificada. Além de seu setor primário, com sua riqueza mineral e moderna indústria agrícola, também possui indústrias secundárias, como a manufatura (veículos, máquinas), e uma sofisticada indústria financeira.
No entanto, a economia está atravessando uma profunda recessão. O rand [moeda sul-africana – NdT] entrou em colapso, passando de 5,60 rands por dólar para 16 rands por dólar durante os últimos 10 anos. O novo investimento na economia veio abaixo. O nível da dívida do governo aumentou de 25% do PIB, em 2009, a 60% agora, e se espera que supere logo os 70%. Isso significa que serão feitos cortes severos nos padrões de vida dos trabalhadores.
O crescimento do PIB para 2019 foi revisado para 0,5%. Este é o nono ano consecutivo em que as previsões de crescimento foram revisadas para baixo. O crescimento do PIB nos últimos 10 anos é o pior desde a Segunda Guerra Mundial. A economia entrou em recessão três vezes na última década. Agora está à beira de outra recessão. O crescimento médio do PIB durante esse período é de menos de 1% numa base anual. É isso que os economistas burgueses chamam de estagnação secular. Esta não é uma recessão cíclica normal, após a qual a economia se recupera rapidamente e começa a crescer rapidamente mais uma vez. Pelo contrário, é uma recessão longa e profunda e indica que o sistema alcançou os seus limites. Naturalmente, não existe isso de crise final do capitalismo. Com base no capitalismo, a economia acabará se recuperando, mas não antes de causar estragos na sociedade sul-africana e na classe trabalhadora.
Ondas de cortes
O governo do CNA tentou sair da crise expandindo o crédito. Marx explicou que o crédito pode expandir temporariamente o mercado além de seus limites naturais. Mas, eventualmente, o crédito tem que ser devolvido com juros. As políticas capitalistas do governo inflaram a demanda desregulamentando os mercados financeiros, o que incentivou empréstimos sem garantias. Mas desde que a crise ocorreu há 10 anos, isso levou a um massivo aumento da dívida. A dívida do consumidor é de impressionantes 10 trilhões de rands, com 72% da renda familiar sendo gastos no serviço da dívida. Mais de 10 milhões de pessoas estão com dívidas em atraso.
Com tudo isso, fica claro que o que estamos testemunhando é uma crise profunda, que não pode ser resolvida em uma base capitalista sem lançar um enorme assalto aos padrões de vida da classe trabalhadora. É isso precisamente o que estamos vendo agora. Essa é a única opção para a classe dominante. Para pagar a crise, a burguesia está colocando o fardo nas costas da classe trabalhadora.
Essa é a razão da atual onda de cortes, anunciada por todos os principais setores da economia durante os últimos quatro meses. Standard Bank está cortando 1.200 trabalhadores. Group Five, o gigante da construção, está planejando cortar milhares de trabalhadores. A empresa de telecomunicações, Telkom, está cortando 3 mil empregos. ABSA Bank está cortando aproximadamente mil empregos. Há grandes cortes de emprego na indústria manufatureira, com PPC Cement anunciando importantes planos de reduções. Tongaat-Hullet está cortando 5 mil empregos. Massmart está cortando 30% de seus trabalhadores varejistas. Sibanye-Stillwater está cortando 5 mil empregos na mina de platina em Marikana. Alexkor, a empresa de diamantes, está cortando empregos. E as empresas de mídia, como Multichoice, estão cortando 2 mil empregos. Há muitos, muitos outros. Centenas de milhares de empregos foram perdidos nos últimos anos e muitos outros tiveram suas condições de emprego pioradas.
Crise social
A crise na economia está produzindo um impacto devastador nos padrões de vida. O povo trabalhador está agora em situação pior do que há 10 anos. A renda per capita, em 2018, foi a mesma de 2014. O desemprego real alcança 10,2 milhões de pessoas. O desemprego juvenil é o mais alto do mundo. A taxa oficial de desemprego não ficou abaixo dos 20% durante os últimos 20 anos. Toda uma geração está agora crescendo dentro dessa realidade.
Nenhum país do mundo pode sustentar número tão grande de pessoas desempregadas em relação a sua população sem passar por uma grave crise social. Isso está colocando uma pressão enorme sobre os trabalhadores. A perda de empregos não afeta apenas aos trabalhadores, tem também um impacto direto em cidades e regiões inteiras. Por exemplo, o fechamento da planta de aço em Saldanha Bay, no Cabo Ocidental, não afeta apenas a cidade, mas também toda a região da Costa Ocidental. Além disso, afeta também a área em torno da mina de Sischen, a 800 km de distância.
Isso está produzindo grandes consequências sociais. O impacto social da crise penetra fundo. Basta mencionar o flagelo da violência contra as mulheres para se entender o quão profunda é a crise. A violência contra as mulheres é uma verdadeira enfermidade social. De acordo com as estatísticas, o número de mulheres assassinadas por seus parceiros ou cônjuges é cinco vezes mais alto do que a média mundial. Se a saúde de qualquer sociedade é medida pela forma como trata as mulheres, as crianças e os idosos, então a sociedade sul-africana está em situação extraordinariamente ruim. Mais uma vez: a causa fundamental dessa crise social é o sistema capitalista. Não basta contar a lista de todos os horrores sociais que a sociedade enfrenta, mas explicar os processos que lhes deram origem.
O capitalismo chegou muito tarde à África do Sul – depois que as principais potências imperialistas já haviam dividido o mundo inteiro entre elas. A introdução do capitalismo e a violenta revolta depois da descoberta de algumas das maiores reservas minerais do mundo deixaram uma ferida purulenta na sociedade. Os processos que se desenvolveram ao longo de centenas de anos na Europa foram condensados aqui em um curto período de tempo. Com sua introdução brutal, a necessidade de se sustentar as relações capitalistas rasgou em pedaços o tecido social das sociedades nativas. Tradições e normas sociais centenárias foram brutalmente desenraizadas quase que da noite para o dia. A fim de criar proletários livres para trabalhar nas minas, milhões de camponeses foram desarraigados e lançados no caldeirão da produção capitalista.
O exemplo mais claro do impacto social que isso produziu na sociedade é o sistema de trabalho migrante. Camponeses despojados e em situação de pobreza do Cabo Oriental são levados às minas no Cinturão da Platina e no Great Gold Reef, no outro lado do país. Por exemplo, alguns dos melhores perfuradores de rocha do mundo vêm de Pondoland, no Cabo Oriental, e são levados à Província Noroeste para trabalhar nas minas de platina. Enquanto isso, as áreas de origem desses perfuradores são deliberadamente mantidas em subdesenvolvimento para reduzir os custos da mão-de-obra. Esse sistema migrante criou, ao longo de décadas, o fenômeno de trabalhadores com duas famílias – uma, onde trabalham e vivem, e outra, de onde provêm, no Cabo Oriental. Portanto, fica evidente que, quando os trabalhadores são cortados, o efeito não é sentido apenas nas comunidades mineradoras, mas também tem consequências devastadoras a milhares de quilômetros de distância.
Isso tem consequências sociais evidentes. A família nuclear na África do Sul só existe realmente entre a população branca, onde 76% das crianças têm ambos os pais envolvido em sua formação. A estrutura familiar das pessoas negras ou não brancas se mostra muito diferente. Mais de 55% das crianças negras são criadas por famílias numerosas – geralmente, avós, tias, e por primos. Mais de 50% dessas crianças dependem de subsídios sociais para sobreviver. A razão disso é o sistema capitalista, que destruiu o tecido social da sociedade, desenraizou milhões de pessoas e perturbou a vida social. Mas o mesmo processo também é responsável pela explosividade e volatilidade da sociedade, e é, em última análise, responsável pela natureza temperamental da classe trabalhadora.
Desigualdade dolorosa
Um aspecto fundamental da situação é a enorme desigualdade, tanto em termos de renda quanto de riqueza. Na África do Sul, as condições de vida dos ricos são comparáveis às dos países avançados, enquanto as condições de vida dos pobres são comparáveis às dos países mais pobres. De acordo com os mais recentes relatórios de tendências, a desigualdade piorou.
Se olharmos para a renda, podemos ver que os 1% do topo absorvem 20% de toda a renda, enquanto os 10% do topo pegam 65% de toda a renda. Os salários reais dos 10% da base caíram 25% entre 2011 e 2015. Por outro lado, a renda dos 2% do topo aumentou em 15% ao longo do mesmo período, enquanto os 1% do topo obtiveram um aumento de mais de 48%.
Essas cifras demolem completamente o absurdo da economia de “gotejamento”. A renda está sendo transferida do pobre para o rico, como Marx explicou. Os executivos, naturalmente, não obtêm renda só dos salários, mas também de coisas como as ações. Entre 2003 e 2016, enquanto a economia cresceu 4%, os ganhos de capital das ações cresceram 20%. Além disso, a desigualdade da riqueza na África do Sul é assombrosa. Os 1% mais ricos possuem 67% de toda a riqueza, os 10% do topo possuem 93%, enquanto os remanescentes 90% possuem magros 7%.
Apartheid, racismo e capitalismo
Outro flagelo que assombra a sociedade sul-africana é o racismo. Malcolm X disse uma vez que não é possível ter capitalismo sem racismo. Esta é uma descrição precisa da sociedade sul-africana. O racismo corre pelas veias do desenvolvimento do capitalismo neste país. Devido ao desenvolvimento tardio do capitalismo e a fim de explorar a riqueza mineral e desenvolver a indústria, primeiro Cecil Rhodes e o colonialismo britânico; e, mais tarde, o regime do apartheid sob o nacionalismo Africâner, reduziram o custo da mão-de-obra ao nível mais baixo possível, usando as formas mais vis e perversas de racismo. As derrotadas tribos africanas foram expropriadas de suas terras e massas de pessoas negras foram levadas ao estado de servidão. O veneno do racismo foi institucionalizado e, em um grau ou outro, existe até hoje na África do Sul pós-apartheid.
Embora o regime do apartheid tenha sido derrubado, as condições de vida das massas de pessoas negras dificilmente melhoraram. A razão é o acordo negociado que foi alcançado entre o movimento de libertação e o regime do apartheid em 1993, que resultou no poder estatal colocado nas mãos da nova elite negra, enquanto a economia permaneceria nas mãos da tradicional classe dominante branca. Naturalmente, desde então, partes da elite negra se juntaram à classe capitalista tradicional. Isso resultou em duas facções opostas, que estão lutando pelo controle do capitalismo sul-africano. É essa luta que se encontra no centro da crise da classe dominante.
No entanto, nada disso melhorou a situação das massas sul-africanas, que ainda enfrentam brutais exploração e discriminação. Oito de cada dez trabalhadores são negros, enquanto, por outro lado, 67% dos gerentes seniores do setor privado são brancos.
A renda mensal per capita dos brancos está atualmente em torno de 24 mil rands, enquanto os negros ganham um terço disso numa base per capita, cerca de 6 mil rands. Os CEOs das maiores empresas da Bolsa de Valores de Johannesburgo, com 97% de brancos, ganham mais de 1.750 vezes o que ganha um trabalhador comum. O desemprego entre as pessoas brancas é inferior a 6%, enquanto é de mais de 30% entre as pessoas não brancas: e aproximadamente 40% entre os africanos negros. Mais de 70% da terra se encontram em mãos brancas, enquanto os africanos negros são donos de 4% da terra. As escolas privadas ricas proporcionam educação do mesmo nível dos países capitalistas avançados, enquanto a educação da maioria negra é subfinanciada e com poucos recursos. Embora tenham sido feitos alguns esforços na disponibilização de moradias desde 1994, o crescimento das favelas está superando o crescimento da habitação adequada. E as moradias adequadas que são construídas, estão localizadas nas mesmas áreas abandonadas, com pouca infraestrutura, onde os negros foram obrigados a viver sob o apartheid. Essas áreas estão, em sua maior parte, muito longe (até 50 km) de onde as pessoas trabalham e estão conectadas por um transporte público deficiente. O resultado é que essas cidades, como a Cidade do Cabo, Pretoria e Durban, têm setores “europeus”, onde as pessoas têm padrões de vida ocidentais, enquanto a maioria dos negros ainda vive em municípios superlotados e em favelas dos arredores. Através da privação econômica da maioria negra da classe trabalhadora, o sistema do apartheid ainda existe até hoje, embora sob uma forma “democrática”.
A emergente burguesia negra, com sua retórica demagógica de “transformação econômica radical”, sempre tenta erguer uma Grande Muralha da China entre a queda do apartheid e o período posterior. Segundo eles, a forma da opressão antes de 1994, isto é, o regime do apartheid, é a causa fundamental da crise. No entanto, podemos explicar que a causa fundamental é o próprio capitalismo. O sistema capitalista pode existir sob todos os tipos de regime – democracias burguesas, ditaduras militares, regimes bonapartistas de diferentes tipos, fascismo, monarquias constitucionais etc. O que é decisivo não é a superestrutura política, mas a base econômica, o modo de produção e a propriedade de classe dos meios de produção. A partir dessa perspectiva, nada de fundamental mudou. A África do Sul continua sendo uma economia capitalista antes e depois de 1994.
Naturalmente, a burguesia não pode admitir que o problema é o próprio capitalismo. Seu objetivo de estabelecer um capitalismo “desracializado”, através de esquemas tais como o empoderamento econômico negro, é o de ingressar no clube da burguesia branca tradicional na exploração das massas sul-africanas. Para os trabalhadores, não há nada a ganhar com isso. Se é verdade que essa forma de opressão é a causa da crise, desde que o regime de apartheid foi derrubado há 25 anos, logicamente, se esperaria que as coisas melhorassem ou que, pelo menos, permanecessem como eram. Mas as estatísticas do governo mostram outra história: as coisas pioraram progressivamente. O desemprego e a desigualdade estão agora em níveis mais altos do que no período antes de 1994. A causa fundamental é o sistema capitalista, que concentra a riqueza em cada vez menos mãos. A massa de trabalhadores negros precisa contar com sua própria força para se livrar da exploração capitalista e se recusar a ser utilizada para travar batalhas de poder por interesses capitalistas rivais. Independentemente de o poder se encontrar nas mãos da burguesia branca ou dele ser tomado por uma camada de capitalistas negros, como Cyril Ramaphosa, nada mudará de fundamental para os trabalhadores e pobres.
A crise política
O processo de industrialização do país depois da 2ª Guerra Mundial criou uma classe trabalhadora industrial além da indústria de mineração. A classe trabalhadora consiste em diferentes camadas. Algumas camadas são mais avançadas do que outras, algumas são mais atrasadas. Em uma situação revolucionária, as camadas mais atrasadas podem de repente se tornar as camadas mais avançadas, e vice-versa. Há uma certa camada de trabalhadores avançados que, tradicionalmente, liderou todas as principais batalhas na África do Sul durante os últimos 50 anos. Tipicamente, são os trabalhadores industriais. Todas as vezes que essas camadas se movem, sempre foram capazes de mobilizar o restante da classe trabalhadora. As batalhas das décadas de 1980 e 1990 foram lideradas por essa camada, e desde 1994 a maioria das grandes batalhas foi liderada por ela.
Entre 2004 e 2013, houve um grande aumento na luta de classes, à medida em que a classe trabalhadora lutava contra os ataque da classe dominante. Lutaram contra os cortes nos serviços públicos, como o fornecimento de água e eletricidade, contra a privatização, as reduções salariais etc. Os trabalhadores avançados podiam ver que todas as promessas de uma vida melhor da “transição democrática” estavam saindo pela janela. Os trabalhadores se moveram do campo político ao campo industrial, e vice-versa.
Essa elevação da luta de classes teve grandes consequências políticas. A crise e a fragmentação do CNA ao longo de linhas de classe são resultados disso. Grande parte dos trabalhadores avançados saíram do CNA. O partido está perdendo apoio urbano e se tornando cada vez mais um partido com sua base nas províncias rurais. Dois terços das pessoas estão vivendo em cidades e se espera que isso se eleve a 70% em 2035. Portanto, é evidente que o CNA tem uma grande crise em suas mãos. Os resultados da eleição de maio de 2019 mostram que a maioria dos sul-africanos não participou da eleição. O CNA, apesar de ser de longe o maior partido, governa o país com o apoio ativo de apenas 28% do eleitorado.
A recente implosão da Aliança Democrática (DA) também é um resultado da crise política geral. Durante os últimos 10 anos houve uma crise quase total no CNA, mas, apesar disso, o DA está retrocedendo e pode até se dividir e se fragmentar muito antes da crise no CNA alcançar o seu zênite. Isso mostra a fraqueza da burguesia. A crise do sistema também é uma crise da classe capitalista, que não tem um partido estável para administrar o seu governo.
O EFF [Economic Freedom Fighters – Combatentes da Liberdade Econômica] é o partido que cresce mais rápido. Mas, novamente, apesar da crise geral, não está crescendo e se desenvolvendo tão rápido quanto poderia fazê-lo. Numa situação como a da África do Sul nos últimos anos, um pequeno partido poderia ter crescido muito rápido e se tornado um grande partido desde que tivesse a abordagem correta e se conectasse com a vanguarda dos trabalhadores. No entanto, ainda não foi capaz de penetrar nas camadas decisivas da classe trabalhadora. Isso tem a ver com o seu tom demagógico, que aliena a classe trabalhadora. Enquanto isso, o partido está se movendo à esquerda e cada vez mais diluindo o seu programa. Quando o EFF rompeu com o CNA, foi uma mudança à esquerda; no entanto, desde então, a liderança do partido foi girando à direita. O partido está se tornando cada vez mais apenas um outro partido no parlamento, recorrendo a intrigas e manobras parlamentares. Em nível local, o partido fez acordos com partidos reacionários, como o DA, apenas para se voltar de forma oportunista para o CNA quando as coisas mudam. Ao mesmo tempo, o partido tem se apoiado cada vez mais no nacionalismo negro, defendendo um capitalismo dirigido por sul-africanos negros. Mas isso não oferece nenhuma solução para qualquer um dos problemas das massas sul-africanas.
Panela de pressão
No último período, houve um retrocesso do movimento da classe trabalhadora. Mais corretamente, a vanguarda da classe trabalhadora recuou do período tempestuoso de luta intensa. Um certo nível de cansaço se instalou. Ao mesmo tempo, os trabalhadores estão se desesperando com uma economia que está causando estragos nos padrões de vida. Eles estão recebendo os golpes com a esperança de que a tempestade passe logo. Na ausência de uma verdadeira liderança revolucionária, isso é natural. O CNA e o SACP [Partido Comunista da África do Sul], que são as organizações tradicionais da classe trabalhadora historicamente, estavam no governo realizando os ataques dos patrões. Outras organizações, como NUMSA [Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul], falharam em proporcionar uma alternativa revolucionária, apesar de estarem em posição privilegiada para fazê-lo. Isso vale para o EFF.
Com o recuo da maré da luta de classes a partir de 2013, vimos outras camadas entrar na batalha. Houve o maravilhoso movimento Fees Must Fall dos estudantes, que revelou o ânimo revolucionário da juventude. Ganhou algumas importantes concessões; no entanto, estas foram minadas e o ônus de pagar por elas foi colocado nas costas de outras camadas da classe trabalhadora. O principal problema era que o movimento não se conectou com o movimento geral da classe trabalhadora – embora o movimento estudantil fizesse algum contato com os trabalhadores a partir da luta contra a terceirização. Assim, a luta continuou sendo um movimento puramente estudantil, isolando-se da luta geral contra o capitalismo sul-africano.
Os estudantes constituem uma importante força auxiliar para os trabalhadores. Mas estudantes não são trabalhadores. As limitações de uma luta puramente estudantil podiam ser vistas no auge do movimento Fees Must Fall, onde, apesar de toda as conversas sobre “paralisações totais”, nada foi realmente fechado além dos campi das universidades. A economia ainda funcionava normalmente. Os bancos operavam, as minas trabalhavam sem dificuldades, as fábricas produziam e os supermercados estavam abertos. Somente a classe trabalhadora poderia ter paralisado a economia e ameaçado os patrões onde realmente dói – seus lucros.
Na ausência de uma grande pressão dos trabalhadores avançados durante os últimos anos, outros elementos vieram à tona, como o aumento dos protestos comunitários dos pobres urbanos e de outros elementos mais atrasados, como os taxistas. A crise também levou a classe média a um frenesi. Diferentemente da maioria dos países africanos, a África do Sul não tem um grande setor de pequenas empresas e pequenos comerciantes. A crise dizimou esses elementos. Essa é a base para o surgimento de ataques xenófobos contra outros comerciantes africanos. Esses pequenos comerciantes são levados à loucura pela crise que eles não entendem e veem pequenos comerciantes de outros países como o problema. Nessas condições, e com a alta taxa de desemprego, eles se juntam ao lúmpen e a outros elementos reacionários. Em ocasiões anteriores, os trabalhadores avançados sempre foram capazes de deter esses ataques. Mas, com o refluxo do movimento, o problema se agravou. Enquanto isso, partes da classe dominante começaram a se apoiar nessas camadas promovendo histeria nacionalista e tribal para atalhar a luta de classes.
O processo molecular da revolução socialista
Significa isso que a classe trabalhadora está derrotada, como sugerem alguns da esquerda? Absolutamente, não. A classe trabalhadora sul-africana não sofreu uma derrota séria desde a década de 1960. Em suas próximas lutas, não terão apenas que lidar com os efeitos da maior crise da história do capitalismo, mas também com a inaptidão de seus líderes e com a incapacidade de suas organizações de proporcionar uma saída revolucionária. Os trabalhadores avançados estão avaliando a situação e tirando as lições do período anterior. Quando a classe trabalhadora se mover novamente, será com uma intensidade muito maior e em nível mais alto do que vimos em qualquer período anterior.
Há um limite físico que os trabalhadores podem suportar. As pressões que se acumulam na sociedade sul-africana são enormes. Devem encontrar expressão de uma forma ou de outra. Mais cedo ou mais tarde, esse limite será alcançado e os trabalhadores se movimentarão mais uma vez. Quando o fizerem, todas as organizações, grupos, tendências e líderes serão submetidos à prova. Já em 2018 havia mais de um milhão de dias de trabalho perdidos em ações industriais. Essa cifra aumentou em 20,7% quando comparada aos mais de 960 mil dias de trabalho em 2017.
Uma vez que a classe trabalhadora comece a se mover decisivamente, o CNA poderá ser destruído. Tendo governado numa base capitalista, perdeu sua autoridade moral e política. Será quase impossível conter as massas. As organizações dos trabalhadores, particularmente os sindicatos, podem se transformar de cima para baixo, com poderosas tendências de esquerda surgindo para desafiar a inércia dos líderes atuais.
A classe trabalhadora se movimentará novamente – como a noite acompanha o dia. Mas o movimento da classe trabalhadora não é uma torneira que pode ser aberta ou fechada à vontade. Todas as tentativas de “alavancagem” do movimento são fúteis e contraproducentes. Eles se moverão quando estiverem prontos para se mover – nem um momento antes. A tarefa dos revolucionários é conectar-se com as camadas avançadas dos trabalhadores e entrar em diálogo com elas. Nossa tarefa deve ser a de explicar pacientemente a situação real. Os trabalhadores não gostam que as coisas estejam cobertas de açúcar. Devemos dizer-lhes a verdade. Não há saída numa base capitalista.
Vivemos em uma época revolucionária. Vimos movimentos revolucionários em um país após outro: no Chile, Equador, Haiti, Líbano, Colômbia, Catalunha, França, Egito, Iraque, Sudão, Argélia e Burkina Faso. A África do Sul é parte da economia mundial. É parte da crise do capitalismo. Os mesmos processos, que estão ocorrendo em todo o mundo, têm lugar na África do Sul. Mais cedo ou mais tarde, as cenas que estamos vendo em outros países serão exibidas nas ruas de Pretoria, Johannesburgo, Durban, Mangaung e Cidade do Cabo. O problema não é a sociedade sul-africana, não é uma crise da classe trabalhadora, mas uma crise de sua liderança. A tarefa à frente dos revolucionários é precisamente a de construir os quadros para a revolução, com a clara compreensão marxista de se conectar às lutas da classe trabalhadora e levá-las à vitória, o que só pode significar através da revolução socialista.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM