Celebramos o aniversário da Revolução Russa de 1917 em um momento privilegiado da história. Para onde quer que se olhe, revoluções estão em curso ou em desenvolvimento. Mais de cem anos depois, a burguesia conduziu o planeta mais uma vez a uma situação convulsiva. O sistema econômico contra o qual se levantaram as massas russas ampliou suas contradições a dimensões nunca vistas. O mundo de prosperidade e o fim da história prometidos mostraram-se completamente falsos aos olhos de milhões.
Diferente das últimas décadas, quando a Revolução Russa era objeto de interesse de um punhado de militantes, esse evento e tudo relacionado a ele atrai a atenção de mais e mais pessoas por todo o mundo. Não poderia ser diferente em um contexto onde insurreições despontam no Chile, Equador, Haiti, Catalunha, Sudão, Argélia, Líbano, Iraque, Hong Kong e muitos outros países. A Revolução Russa se trata da primeira vez que os trabalhadores conseguiram não apenas tomar o poder político de seus inimigos, mas também conservá-lo e conduzir uma luta pelo estabelecimento de um novo regime econômico e social. O assunto, entretanto, reserva mais do que interesse histórico.
[table id=18 /]Entre agosto e setembro de 1917, ninguém menos que Lenin se pôs a escrever uma brochura com o título “O Estado e a Revolução”. Ele se colocou a refletir sobre as classes sociais e o Estado; a experiência revolucionária de 1848-1851; a experiência da Comuna de Paris e as análises de Marx; o que Engels havia refletido em diversos momentos a respeito do Estado; e se lançou a teorizar sobre as condições econômicas do definhamento do Estado. Ainda nessa brochura não perdoou aqueles que classificou de oportunistas, por exporem teses falsas sobre o assunto.
Assim como Lenin se pôs a refletir para encontrar as posições corretas para avançar, às portas da tomada do poder realizada em 25 de outubro, avaliamos que precisamos de um esforço semelhante. Embora não sejamos Lenin, e Lenins façam muita falta entre nós, vamos nos apoiar neste artigo sobre algumas das experiências e análises que ele nos deixou como herança. Estudar e aprender as lições da Revolução Russa, assim como das experiências vitoriosas e derrotadas do proletariado, constitui a via para o êxito dos processos revolucionários em curso e daqueles que se avizinham.
Um regime social esgotado
Para entender o que se passou na Rússia em 1917, devemos compreender o que se ocorria no mundo. Estava a pleno vapor a Primeira Guerra Mundial. O proletariado europeu era usado por suas burguesias nacionais literalmente como bucha de canhão para garantir interesses econômicos e imperialistas. Isso acontecia desde 1914, data em que estalou a guerra, a qual foi possibilitada pela capitulação chauvinista[1] da Segunda Internacional e dos partidos socialdemocratas a ela pertencentes. Uma ultra minoria colocou-se contra essa orientação em seus próprios países. Entre ela estava o Partido Bolchevique.
Em meio à carnificina geral, em junho de 1916 apareceu um livreto de Lenin chamado “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”. Nele o autor analisava incontáveis dados econômicos, autores burgueses e conceitos filosóficos, para apresentar uma ideia que seria a condutora de sua prática no período seguinte: o capitalismo havia atingido seu limite histórico enquanto força progressiva para a humanidade, o que se expressava na Primeira Guerra Mundial, e para superá-lo era urgente a vitória da revolução socialista em escala internacional.
A Revolução Russa iniciou-se em 23 fevereiro de 1917, levando-se em conta o calendário juliano, usado na Rússia até 1918. Seu início no calendário gregoriano, que é o que utilizamos, foi em 8 de março. Tratou-se de uma iniciativa das próprias massas irromper no cenário político, e não de uma medida orquestrada pelos bolcheviques. Era o Dia da Mulher Trabalhadora. Mais precisamente foram as mulheres operárias que deflagraram um protesto nesse dia exigindo pão e paz, o que desencadeou uma insurreição massiva.
Nesse turbilhão ressurgiram os sovietes já experimentados em 1905. O ímpeto revolucionário encontrava uma forma de se expressar organizadamente e dar forma consciente aos anseios profundos que carregava. Uma situação instável se estabelecia, com os sovietes compondo um tipo de poder que rivalizava com o governo czarista de Nicolau II. Um conflito sangrento se estabeleceu durante uma semana, com o exército e a polícia se lançando para retomar o controle da situação. O saldo desse período foram mais de 1.300 mortos e feridos apenas em Petrogrado.
A situação levou o governo do Czar a abdicar retirar seu filho da linha sucessória. A coragem e o heroísmo das massas, no entanto, não foram o suficiente para que o poder passasse para suas mãos. A burguesia se move para a formação de um governo provisório, buscando estabilizar a situação sob seus próprios termos. Ao governo aderem liberais, mencheviques e socialistas-revolucionários. Em paralelo os sovietes continuam existindo, portanto, uma dualidade de poderes estava estabelecida. A liderança dos sovietes estava, entretanto, nas mãos dos mencheviques e socialistas-revolucionários. Os bolcheviques estavam restritos a uma minoria dentro deles e entre o movimento revolucionário das massas.
O Partido Bolchevique como elemento chave
Assim como os processos da natureza, os processos da sociedade guardam certo padrão. O curso tão comum nas revoluções só foi alterado na Rússia pela existência em 1917 de um elemento ausente na maioria dos casos: o Partido Bolchevique. Esse proporcionou ao proletariado russo uma clareza organizativa, política e teórica impossíveis de se improvisar no calor das revoluções. Algo dessa natureza foi preparada por meio de duas décadas de construção de uma organização revolucionária de quadros, que estudavam a teoria para guiar uma propaganda e agitação revolucionária entre as massas.
A essa tarefa Lenin dedicou sua vida, o que remonta ao trabalho mais acabado desse esforço, o panfleto surgido em 1902 chamado “Que Fazer”. Nele o revolucionário russo sintetizava suas ideias. O partido marxista que defendia deveria ser de tipo disciplinado, baseado no centralismo democrático, composto por revolucionários profissionais, que não se restringisse ao economicismo, mas que combinasse as reivindicações econômicas com a luta política, que dirigisse sua propaganda e agitação à conclusão da tomada do poder político por parte do proletariado. Quando os acontecimentos estouraram em fevereiro de 1917, havia uma organização com o enraizamento e o tempero necessário para influenciar as massas que haviam se tornado revolucionárias.
A revolução, entretanto, havia conduzido à dualidade de poderes entre os sovietes e o recém-formado Governo Provisório. Esse, apresentando-se como expressão acabada do processo revolucionário, propunha a unidade a todos os partidos políticos, convidando-os a compor o governo. Dele faziam parte não apenas os partidos burgueses, mas também as organizações que se diziam revolucionárias ou marxistas. Diante de tal situação, até mesmo a direção do Partido Bolchevique passava a simpatizar com o Governo Provisório e se movia para uma reunificação com os mencheviques, que compunham o governo.
Assim que recebeu os telegramas que confirmavam os acontecimentos na Rússia, Lenin se pôs em combate desde seu exílio na Suíça para alinhar o Partido Bolchevique às tarefas corretas. Diante da capitulação de todos os autoproclamados revolucionários e da linha de adaptação da própria direção bolchevique, escreveu uma série de cartas para o jornal bolchevique Pravda, conhecidas como “Cartas de Longe“, nos meses de março e abril. Nelas defendia uma apreciação e uma orientação específicas diante da situação. E combatia todas as outras posições e seus representantes. As ideias expostas eram a expressão viva de todo o acúmulo teórico fornecido pelo marxismo, condensadas no Partido Bolchevique pela experiência de décadas de ação revolucionária.
Perspectiva e tarefas corretas
Foi, entretanto, apenas com seu retorno à Rússia em abril que o Partido Bolchevique começou a reverter sua posição conciliacionista com o Governo Provisório. A mudança dos bolcheviques, por sua vez, condicionou todo o desenvolvimento posterior do processo revolucionário. Ao desembarcar na Estação Finlândia, Lenin horrorizou os representantes do governo ao fazer um discurso que apresentava as ideias centrais que em seguida iria sistematizar em outro documento que elaborou: “Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, também conhecido como “Teses de Abril”. Seus próprios partidários tomaram um susto ao tomarem conta do que se tratava, pois era uma perspectiva e tarefas diferentes das que vinham implementando desde o início da revolução, e por isso muitos entre eles resistiram a sua adoção.
Entre as dez ideias apresentadas, em primeiro lugar era necessário explicar o caráter imperialista da guerra em curso, e as condições excepcionais sob as quais uma guerra seria admitida com o proletariado no poder. A segunda ideia chave consistia em caracterizar o governo que havia se formado como um governo da burguesia, formado em um momento de transição entre a primeira e a segunda etapa da revolução, a qual deveria colocar o poder nas mãos do proletariado e camadas pobres do campesinato.
Para horror de todos que compunham o Governo Provisório, nenhum apoio devia ser dado a esse, mas que pelo contrário era necessário desmascarar o caráter imperialista do governo de capitalistas formado. O Partido Bolchevique precisava, também, reconhecer que estava em minoria nos sovietes, contra o bloco de todos os elementos oportunistas pequeno-burgueses, o que implicava em um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros do Governo Provisório. Ao mesmo tempo que defendiam a necessidade de o poder de Estado passar para os sovietes, para que “sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros”.
Diante da formação de sovietes, Lenin se opunha à formação de uma república parlamentar, pois o movimento das massas as levou adiante, e dessa experiência era preciso fazê-las avançar, com a supressão da polícia, do exército e do funcionalismo. Ele assinalava como tarefa no campo a formação de sovietes de deputados assalariados agrícolas, assim como o confisco de todas as terras dos latifundiários, e a nacionalização das mesmas, que passariam a ser controladas pelas massas camponesas. As teses dão atenção ainda à questão do sistema bancário, em que se cobra a fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único, sob controle dos sovietes.
Uma vez que os sovietes haviam estabelecido um duplo poder, mas que ainda se tratava de ganhar os sovietes para a ideia da tomada do poder, ao invés da colaboração com o Governo Provisório, também destacava que a questão não era a realização imediata das tarefas socialistas, mas primeiro passar a controlar imediatamente a produção social e a distribuição, por meio dos sovietes. Voltando às tarefas próprias do Partido Bolchevique, ele demandava um congresso imediato do partido, a modificação do programa do partido quanto a questões teóricas (imperialismo, guerra imperialista, concepção de Estado, reivindicação quanto ao Estado, e programa mínimo), além da mudança de denominação do partido. Por fim, conclui-se com uma décima tese, a qual propunha a “Iniciativa de construir uma Internacional revolucionária, uma internacional contra os sociais-chauvinistas e contra o ‘centro’”.
Foram as concepções e perspectivas expressas nessas teses que permitiram ao Partido Bolchevique adotar as políticas e as táticas corretas para reverter o rumo da Revolução Russa. Foi a adoção dessas posições por parte dos quadros do partido o que permitiu que, “sobre a base da experiência, as massas se libertem de seus erros”. A relação dialética entre teoria e prática esteve profundamente ligada à também dialética relação entre classe, partido e direção.
Um partido proletário apenas pode ser assim considerado na medida em que sua direção expressa perspectivas e tarefas corretas frente à luta de classes. Um Partido Bolchevique que compusesse o Governo Provisório e apoiasse os planos dos capitalistas russos e a guerra imperialista seria um partido oportunista. Foi essa intervenção direta de Lenin, a expressão mais acabada entre teoria e prática forjada na luta de classes naquele momento, que permitiu ao partido corrigir seus erros, e por sua vez auxiliar as massas a corrigir os delas. A fusão entre a teoria revolucionária e as massas revolucionárias, possível apenas pela existência do Partido Bolchevique, possibilitou em 25 de outubro de 1917 o acontecimento mais revolucionário da história da humanidade.
A frente única como caminho às massas
A vitória da Revolução Russa seria impossível, porém, apenas pela existência do Partido Bolchevique ou pela adoção de um programa correto e de perspectivas acertadas. Foi um mérito dos bolcheviques a incorporação dos conceitos de estratégia e tática ao vocabulário da política revolucionária. Ao elevar a luta política ao nível de uma arte, a questão de como sair da condição de minoria foi encarada de forma brilhante por parte dos bolcheviques. Esse assunto se trata de um livro fechado a sete chaves para a maioria daqueles que se reivindicam do bolchevismo nos dias de hoje. Convém abri-lo e estudá-lo se queremos incorporar as lições da Revolução Russa à nossa prática revolucionária.
O denuncismo impotente, a autoproclamação, o sectarismo ou o esquerdismo infantil nada tinham a ver com o Partido Bolchevique. Eles haviam assimilado profundamente a tática assinalada pelo Manifesto Comunista, a qual foi desenvolvida pela Primeira Internacional e depois pela Segunda, até sua falência em 1914. Compreendendo que se tratava de um partido minoritário no início de 1917, toda sua tática devia estar voltada para ganhar a confiança das massas. Sua posição frente aos outros partidos que congregavam as massas, e que em última instância dirigiam os sovietes, era fundamental.
Enquanto as massas traziam à tona seus anseios mais profundos, seus líderes oportunistas ou pequeno-burgueses expressavam programas submissos à burguesia e, ao final, contraditórios com os interesses do movimento. Embora os bolcheviques tivessem isso claro, eles precisavam ajudar as massas a chegar a essa conclusão. As massas aprendem fundamentalmente por meio de sua própria experiência e conclusões. Acelerar e auxiliar nesse processo era a tarefa a que se propunham os bolcheviques.
Na Conferência do Partido Bolchevique, realizada de 24 a 27 de abril, após uma dura batalha interna contra a linha de adaptação à burguesia, as posições defendidas por Lenin são vitoriosas. Os bolcheviques compreendem claramente que, como fração minoritária do momento, a tarefa do partido era explicar pacientemente e ajudar o proletariado a aprender com sua própria experiência e erros.
Para isso o Partido Bolchevique apresentavam a necessidade da unidade das massas para alcançar seus anseios. Lançaram consignas com reivindicações dirigidas à direção majoritária do movimento (os mencheviques e socialistas-revolucionários). Foram suas palavras de ordem nesse momento “Paz, Pão e Terra”, “Abaixo os 10 ministros capitalistas” e “Todo Poder aos Sovietes”. Eram reivindicações entendidas como justas pelas massas, que as ajudavam a compreender as tarefas para que seu próprio movimento avançasse, e que se adotadas pelos dirigentes levariam ao desenvolvimento positivo da luta das massas.
Em nenhum documento ou escrito dos bolcheviques do ano de 1917 se contra nem uma vez as consignas “Abaixo o Governo Provisório”, ou “Abaixo Kerensky”. Ao invés disso, encontramos “Nenhuma confiança no Governo Provisório”, além das palavras de ordem citadas acima. Essas reivindicações significava exigir daqueles que ainda eram majoritários no movimento as tarefas históricas que o movimento demandava. O pêndulo do movimento girou a favor dos bolcheviques conforme as massas foram percebendo a vacilação e insuficiência da direção oportunista colocada.
Apenas quando os bolcheviques ganharam a maioria dos sovietes, portanto, a confiança da maioria do movimento insurrecional em curso, puderam alterar sua tática da disputa da maioria – expressa pela tática da frente única – para a tática da derrubada do governo de Kerensky. Até então, era necessário ajudar os trabalhadores a realizar a unidade por suas reivindicações, a passar pela experiência com seus dirigentes oportunistas e sacar as conclusões corretas a partir de sua própria prática. Para ficar ainda mais claro, convém citar o episódio do golpe contrarrevolucionário do general Lavr Kornilov, levado à diante em setembro de 1917.
Trata-se de uma experiência muito enriquecedora ler o que Lenin escreveu na sua carta ao Comitê Central do Partido Bolchevique, em 30 de agosto (12 de setembro) de 1917, com Kornilov colocando em marcha seus planos. Tratava-se de um golpe contrarrevolucionário aplicado pela burguesia diante da fraqueza do governo de Kerensky. Duas figuras chaves do Partido Bolchevique, nesse momento Lenin se encontrava mais uma vez no exílio e Leon Trotsky, encarcerado dentro da prisão. Ainda assim, ambos continuam sua tática da frente única, chamando seus partidários a realizar uma frente única contra o golpe, apoiar o fuzil nos ombros de Kerensky e atirar em Kornilov. Entretanto, chamando as massas a não depositar nenhuma confiança ou apoio em Kerensky. Primeiro era necessário derrotar a contrarrevolução para, em seguida, acertar as contas com o Governo Provisório.
Foi sob essa tática para ganhar a maioria, levada à frente energicamente pelos bolcheviques, que o golpe de Kornilov foi derrotado e as massas se voltaram ainda mais em direção aos bolcheviques. O exemplo da Revolução Russa nos mostra que a frente única é a única tática justa para um partido revolucionário ganhar autoridade frente às massas e, por fim, sair da condição de minoria e passar a dirigir as lutas dos trabalhadores e a própria insurreição.
Uma visão internacional da luta de classes
Quando Lenin apareceu com sua 10º tese de abril, propondo a reconstrução de uma Internacional revolucionária, foi incompreendido pela maioria da direção do Partido Bolchevique, que acabou por não adotar essa posição defendida por ele. Tratava-se, no entanto, da continuidade da batalha para ganhar o movimento operário mundial para as concepções e tarefas corretas. Esse esforço se iniciou desde a capitulação da Segunda Internacional, quando ele declarou já em “A Situação e as Tarefas da Internacional Socialista”, de 4 de abril de 1914: “A II Internacional morreu, vencida pelo oportunismo. Abaixo o oportunismo e viva a III Internacional, limpa não apenas dos ‘trânsfugas’ (como deseja o Gólos) mas também do oportunismo”.
Lenin sempre entendeu a luta de classes e a ação do proletariado em termos internacionais. Foi por isso que, já em 5 de setembro de 1915, vemos Lenin reunido com um pequeno grupo internacional de 38 delegados socialistas, de 10 países europeus. O encontro ocorreu em Zimmerwald, uma pequena vila suíça. Ali Lenin realizou uma luta acalorada para ganhar os demais para as ideias teóricas e os princípios que o conduziam a concluir como urgente a recriação de uma verdadeira Internacional revolucionária. Ao fim, apesar de todos os seus esforços, a conferência não adota suas posições. Ainda assim Lenin a classifica como “O Primeiro Passo”, título do artigo em que a resume: “Na prática, o manifesto [“Aos Proletários da Europa”] significa um passo rumo a uma ruptura ideológica e prática com o oportunismo e o social-chauvinismo. Ao mesmo tempo, o manifesto, como qualquer análise pode mostrar, contém inconsistências, e não diz tudo que devia ser dito”.
No ano seguinte ocorre uma segunda conferência internacional, desta vez na cidade suíça de Kienthal. Esse encontro ocorreu de 24 a 30 de abril. Com 43 delegados reunidos, representando 10 países, Lenin continuou a batalha pelas posições que haviam sido restritas à minoria menos de um ano antes. Desta vez, no entanto, os ventos da luta de classes estavam mudando. Agitações revolucionárias estavam tendo lugar em diversos pontos da Europa. Nos fronts de batalha, a insatisfação dos soldados aumentava. O discurso chauvinista do começo da guerra começava a fazer água, e os trabalhadores sentiam cada vez mais latente o fardo da guerra sobre seus ombros, com a fome, a pauperização e a morte. Sob essas condições, a conferência aprovou resoluções e o manifesto-apelo “Aos Povos Suplicados e Martirizados”. Lenin considerou isso um passo em frente, uma vez que dava maior coesão aos internacionalistas na luta contra a guerra imperialista, e condenava o pacifismo e a direção da Segunda Internacional.
A questão internacional era para Lenin um elemento central para se pensar o desenvolvimento da luta de classes em cada país. Por isso seu esforço foi, em primeiro lugar, de construir um partido a semelhança do Partido Socialdemocrata Alemão, adaptado às condições da Rússia. Quando esse e a Segunda Internacional capitularam frente à burguesia alemã e mundial, Lenin se colocou a tarefa de erguer uma nova Internacional, pois via nisso o caminho para não apenas o êxito de uma revolução na Rússia, mas fundamentalmente para o êxito do socialismo em escala mundial. Esse foi seu combate desde o início da Primeira Guerra Mundial, o que se expressou em sua batalha para ganhar os demais socialistas que se contrapunham à guerra nas conferências de Zimmerwald e de Kienthal.
Espalhar a revolução
Essa mesma perspectiva Lenin expressou em abril do ano seguinte em suas teses sintetizadas no documento já citado “Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”. Ela, no entanto, também não foi compreendida em sua plenitude pela direção do Partido Bolchevique, que não a aprovou como uma tarefa imediata. Havia, portanto, diferentes análises e perspectivas em disputa dentro do próprio partido mais revolucionário não apenas da Rússia, mas também da história. Já vimos que as divergências se expressavam não apenas sobre essa questão. A cada questão concreta, as diferentes concepções, as diferentes análises, e por consequência as diferentes tarefas se enfrentavam no interior do Partido Bolchevique. Essa é uma das marcas do bolchevismo, um partido marxista de ferro capaz de comportar em seu interior profundas divergências e debates teóricos e políticos, mesmo em meio a uma revolução e sobre as tarefas a serem adotadas diante dela.
Apenas em 1919 que a perspectiva apontada por Lenin desde 1914 vai ser adotada pela maioria não apenas dos bolcheviques, mas também pelo movimento socialista internacional. A fundação da Internacional Comunista representava um passo adiante na batalha por expandir a Revolução Russa para o mundo. Lenin concebia a formação de uma nova Internacional como a única forma de não apenas impedir uma reviravolta no interior da recém-formada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Era meio mais eficiente de levar a revolução para os demais países, e assim salvar a Rússia sitiada por inimigos. Tratava-se de um quartel-general internacional do proletariado para levar à frente as tarefas socialistas que apenas poderiam ser completadas em escala mundial.
Foi com essa perspectiva que a Terceira Internacional formou partidos comunistas por todo o mundo e realizou seus quatro primeiros congressos, em 1919, 1920, 1921 e 1922. As resoluções e manifestos aprovados nesses encontros representam a expressão mais elevada da luta internacionalista, herdeira das melhores tradições da Segunda Internacional e da experiência pioneira da Primeira Internacional. Sabemos, contudo, que esse curso da história e do movimento revolucionário foi alterado.
A partir de 1923, uma luta aguda se estabelece no interior da URSS. Cristaliza-se uma nova formação política, a qual manifestava não os interesses do proletariado russo e internacional, mas sim os da burocracia reunida no aparato de Estado e do partido. Essa situação foi resultado de condições particulares. Em primeiro lugar a Revolução Russa experimentava um isolamento causado pela derrota das revoluções que haviam ocorrido nos outros países europeus. Um segundo fator, e consequente desse isolamento, foi a miséria geral estabelecida pelas duríssimas condições econômicas, sociais e militares enfrentadas pelo nascente Estado Operário. Podemos destacar também o cansaço do heroico proletariado russo, que após uma guerra, uma revolução e anos de guerra civil, via a perspectiva de realização de suas aspirações como distante e precisava voltar suas atenções da política para a própria sobrevivência.
Diante dessas condições, a burocracia passou a ocupar cada vez mais espaço dentro do aparato estatal e partidário. De assessora do proletariado revolucionário, ela foi ocupando cada vez mais o espaço desse. Sob as condições econômicas terríveis em que se encontrava a URSS, a burocracia passou a tomar cada vez mais consciência de seus interesses particulares em detrimento das massas pauperizadas e do proletariado. Como fenômeno histórico resultante dessas condições particulares, a burocracia passou a defender posições próprias e pressionar para fazer prevalecer seus privilégios e interesses pequeno-burgueses estreitos. Será sob a forma acabada da teoria do socialismo em um só país que a burocracia iria travar sua batalha pelo poder.
Lenin identificou esse desenvolvimento e em seus últimos meses de vida iniciou uma reação política. Fruto desse esforço é sua “Carta ao Congresso”, escrita entre 22 de dezembro de 1922 e 4 de janeiro de 1923, também conhecida como “Testamento Político”. Seu falecimento, no entanto, impediu que levasse até o fim essa nova tarefa. Coube a Leon Trotsky liderar a batalha dos elementos bolcheviques contra a burocracia em ascensão, o que passou pela formação da Oposição de Esquerda, da Oposição de Esquerda Internacional e por fim pela fundação da Quarta Internacional.
Essa luta contra a burocracia foi perdida pelos revolucionários. Em 1924 ela assume o poder e inicia uma contrarrevolução feroz para garantir seus interesses e privilégios. Esse processo irá evoluir e resultará em 1991, por fim, na dissolução da URSS e na restauração capitalista. O que nos interessa assinalar aqui, porém, é a importância que o espraiamento da revolução tinha para Lenin e teve para o curso da própria Revolução Russa.
Teoria e ação revolucionárias
A Revolução Russa é uma mina de ouro político e teórico. Assim como Lenin extraiu suas ideias fundamentais das experiências da Comuna de Paris e das revoluções de 1848-1851, devemos assimilar a história, as análises e as lições da Revolução Russa. O mundo mudou muito de 1917 até aqui. Mas esse argumento também poderia ser lançado em relação às referências históricas usadas para preparar a Revolução de Outubro, que incluíam a Revolução Francesa iniciada em 1789.
Foi de Lenin a frase tão mal compreendida de que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária. E para ele a única teoria revolucionária era o marxismo. Contra todos os que detratavam o marxismo, que o revisavam, que o deformavam, que o amputavam, estabelecia uma luta intransigente para afirmar o verdadeiro marxismo e desmascarar todas suas versões falsificadas. Sob essa condição, de uma defesa intransigente do marxismo e de sua aplicação séria, pode-se obter uma teoria revolucionária.
Fizemos aqui a exposição de algumas das lições fundamentais que o marxismo nos permite extrair da Revolução Russa. Em primeiro lugar, a necessidade de construir partidos de tipo bolchevique à altura das tarefas históricas. Também a importância da adoção de perspectivas e tarefas corretas, em contraposição a todas as demais falsas. O uso da tática da frente única consiste no único caminho para os revolucionários saírem da condição de minoria e ganhar autoridade frente às massas. Salta aos olhos a obrigação de compreender a luta de classes de com uma posição internacionalista, em combate pelo estabelecimento de uma Internacional dos trabalhadores. Por fim, destacamos a indispensabilidade de expandir e conectar os processos revolucionários mundiais como único caminho capaz de permitir a superação do regime capitalista.
Munidos de teoria revolucionária podemos construir partidos e uma Internacional capazes de armar os trabalhadores e sua vanguarda para realizar a ação revolucionária que a história exige de nós. As revoluções estão novamente na ordem do dia. Nossa geração tem o privilégio de viver em tempos tão imprevisíveis e se lançar à tarefa audaciosa de transformar o curso da história. Seremos dignos de merecer o elogio que Lenin e Trotsky receberam de Rosa Luxemburgo:
“Lenin, Trotsky e seus amigos foram os primeiros, aqueles que vieram à tona como exemplo para o proletariado mundial; Até agora, eles ainda são os únicos que podem declarar como Hutten: ‘Eu ousei!'”
[1] Chauvinismo (do francês chauvinisme) é o termo dado a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em favor de um país, grupo ou ideia. O termo deriva do nome de Nicolas Chauvin, soldado do Primeiro Império Francês, que sob o comando de Napoleão demonstrou seu enorme amor por seu país sendo ferido dez vezes em combate, mas sempre retornando aos campos de batalha. Inicialmente, o vocábulo foi usado para designar pejorativamente o patriotismo exagerado, sendo posteriormente adotado para outros casos.