Balanço do movimento contra a Lei do Trabalho na França

Nesta sexta-feira, a Assembleia Nacional votará a contrarreforma trabalhista defendida por François Hollande, depois de intensos protestos e confrontos com as forças governamentais.

A Lei do Trabalho[1] será aprovada pela Assembleia Nacional no próximo dia 22 de julho, depois do último retorno do Senado. O governo “socialista” ganhou essa batalha. Para isso, recorreu a níveis de repressão policial jamais vistos na história recente da França, assim como a uma violenta campanha de insultos e difamações contra os militantes da CGT[2] comprometidos nessa luta. Depois de haver instrumentalizado aos “sabotadores” para desacreditar o movimento, o governo os utilizou como pretexto para submeter as mais recentes manifestações em Paris a um filtro e uma maciça supervisão policial, impedindo de fato o direito à manifestação.

Em seu comunicado de 8 de julho, a intersindical (CGT, FO, FSU, Solidaires, UNEF, UNL, FIDL)[3] anunciou uma nova “jornada de ações e iniciativas em 15 de setembro para obter a revogação da Lei do Trabalho e conquistar novas garantias e proteções coletivas”. Porém, já aconteram 12 jornadas nestes últimos quatro meses. É evidente, portanto, que a de 15 de setembro não conseguirá forçar o governo a “revogar” a Lei, sem mencionar as “novas garantias e proteções coletivas”. O mais provável é que nem os autores do comunicado acreditam no que anunciam. Somente querem dissimular a derrota. Nós pensamos que o melhor é reconhecer a derrota e tirar dela o aprendizado.

Como assinalamos desde março em nossos artigos sobre o movimento[4], o governo somente seria levado a retroceder através de greves por tempo indeterminado e com adesão crescente dos setores econômicos. No entanto, o movimento grevista e de bloqueio, que começou em vários setores em meado de maio, não se estendeu de maneira significativa. Por exemplo, a greve dos ferroviários não foi suficientemente seguida a ponto de paralisar completamente o tráfego. A greve da RATP[5] teve pouca repercussão e quase nenhum impacto. Neste contexto, não se podia pedir aos trabalhadores das refinarias e dos portos – que, igualmente a 2010, constituíram a vanguarda operária do movimento – permanecessem em greve indefinidamente. Com a falta de uma expansão rápida das greves por tempo indeterminado, o movimento não podia senão retroceder. Já na segunda semana do , o refluxo havia claramente se iniciado. Desde esse momento, o governo se sentia numa posição de força e tinha uma ideia fixa: acabar o mais rápido possível com o movimento, limitando, entre outras coisas, o direito a manifestação.

Por que a greve por tempo indeterminado não se desenvolveu? Esta questão já havia surgido após a derrota de outono de 2010 na luta da contrarreforma da previdência. Uma típica resposta é: “porque os trabalhadores não queriam lutar, não estavam preparados”. Contudo,  essa resposta não explica grande coisa. Ela reduz a “combatividade” dos trabalhadores a uma abstração, um dado que se manifesta ou não, independentemente da dinâmica geral da luta e, especialmente, a um elemento central desta dinâmica: a direção do movimento, suas palavras de ordem e seu programa. Por isso é a “explicação” preferida dos dirigentes sindicais; ela os absolve de toda a responsabilidade.

É evidente que os trabalhadores não estão sempre dispostos a lutar. “Uma greve geral não se decreta”, de acordo com a consagrada fórmula das direções sindicais. De fato, se fosse esse o caso, o capitalismo haveria sido vencido há muito tempo. Porém, não podemos nos conformar com tais evidências. Em última instância o grau de combatividade dos trabalhadores se mede pela própria luta. Entretanto, é necessário o correto direcionamento para a luta, que a estratégia e as palavras de ordem avancem para criar condições em cada etapa para a mais alta expressão da combatividade dos trabalhadores.

A começar, a direção do movimento deve dar aos trabalhadores uma ideia clara do real equilíbrio de forças. Na contramão, a intersindical fundou toda a estratégia na organização das “jornadas de ação”, enquanto era evidente que não conseguiriam que o governo retrocedesse. Precisou da influência das “Noites em claro”[6] e a pressão dos delegados da CGT em seu congresso, em meado de abril, para que  a palavra de ordem “greves por tempo indeterminado” ocupasse um lugar mais central. Sob a pressão da base e perante o fato consumado das primeiras greves por tempo indeterminado, Philippe Martinez as apoiou e, até mesmo, apelou por sua expansão. Porém, nenhum plano foi elaborado pela confederação para favorecer esta expansão[7]. Martinez apresentou as greves como “uma forma de luta” em meio a outras, enquanto era o único meio que levaria à vitória. Em completa contradição com a dinâmica real do movimento, quer dizer, a necessária expansão rápida das greves por tempo indeterminado, o comunicado da intersindical de 20 de maio anunciou duas novas jornadas de ação: em 26 de maio e 14 de junho. A jornada de 26 de maio podia desempenhar um papel na dinâmica de expansão das greves iniciadas desde o meio de maio. Mas a de 14 de junho tardou. Como escrevemos em 23 de maio sobre 14 de junho: “até lá, ou a greve se amplia para outros setores, ou o movimento declina. Pelo menos esta é a perspectiva mais provável e em conformidade com a experiência de 2010”[8].

Philippe Martinez deixou a escolha dos métodos de luta com os trabalhadores reunidos em Assembleia Geral. Como escrevemos em 23 de maio:

Obviamente que é impossível, em qualquer caso, o lançamento de uma greve por tempo indeterminado contra a vontade da maioria dos trabalhadores. A necessidade de organização de assembleias gerais é outra obviedade. À base sindical, sobejam tais conselhos. Eles precisam é de uma atitude clara, ofensiva e determinada dos dirigentes da confederação. Quando eles convocarem uma assembleia geral de trabalhadores, em seu caso, precisam demonstrar aos trabalhadores que não os deixarão sozinhos, que toda a CGT – começando pelos dirigentes da confederação, o que os cumpre por função fazer – realizará uma campanha sistemática, enérgica, massiva para mobilizar o maior número de setores ao movimento. […] Sem ela, os trabalhadores convocados para a assembleia geral olharão por cima dos ombros para seus colegas sindicalizados, em direção à cúpula da CGT e, percebendo uma posição hesitante, vacilante, vão dizer: “Se começarmos, corremos o risco de ficarmos sozinhos”8.

A outra falha do movimento estava em suas palavras de ordem programáticas. A retirada da Lei do Trabalho era, logicamente, a reivindicação central. Contudo, inúmeros trabalhadores, incluindo funcionários públicos, não se sentiam ameaçados imediatamente pela contrarreforma, mesmo quando entendiam que qualquer recuo no setor privado prepara o mesmo no setor público. Ao contrário, no setor privado muitos trabalhadores já se submetiam a disposições da Lei do Trabalho, como o infernal regime de precariedade permanente, de horas-extras não pagas e outros abusos patronais. A luta teve uma característica demasiadamente defensiva.

Para tentar atrair camadas mais amplas de trabalhadores para o movimento era necessário integrar em sua plataforma de reivindicações positivas e ofensivas, por exemplo, a questão dos salários e da carga horária de trabalho. Em seu lugar, os dirigentes sindicais repetiram que a luta visava obter – além da retirada da Lei do Trabalho – “novos direitos com um código do trabalho do século XXI”. Concretamente, que “novos direitos”? O que seria “um código do trabalho do século XXI”? Nada disso foi detalhado. Essa fórmula ritual carecia de conteúdo preciso.

Uma vez mais, não havia nenhuma garantia a priori da vitória do movimento; o grau de combatividade dos trabalhadores se verifica na própria luta. O problema é que a estratégia errônea das direções sindicais constituiu um obstáculo à plena expressão desta combatividade ao invés de favorecê-la. Entretanto, vários elementos indicam com clareza o grande potencial do movimento: o alto nível de oposição à Lei do Trabalho na população (mais de 70%), o amplo apoio que trouxe às greves por tempo indeterminado (apesar da furiosa campanha midiática contra a CGT), o isolamento inédito do governo em pesquisas de opinião, o fenômeno das “Noite em claro” e a radicalização das palavras de ordem da juventude e das bases sindicais (“greve geral”).

Radicalização política

De maneira geral, é claro que depois de anos de crise econômica, de crescimento do desemprego e de políticas de austeridade, uma enorme quantidade de raiva e frustração esteja se acumulando nas profundezas da sociedade francesa. Uma intensificação da luta de classes é inevitável em um período próximo. Nesta perspectiva, o governo da classe dominante pagará um preço por forçar a aprovação da Lei do Trabalho. A democracia burguesa e a grande mídia estão ainda mais desacreditadas do que já eram. A repressão policial deixará, também, uma marca indelével nos espíritos. Aguçará a consciência na juventude e no movimento operário, radicalizando-a. Neste sentido, a classe dominante e seus políticos levarão uma vitória de Pirro. Não têm solução para a crise do capitalismo, que prepara explosões sociais ainda mais potentes.

De imediato, a luta de classes se transferirá ao terreno político, com as eleições presidenciais de abril de 2017 próximas. Muitos jovens e trabalhadores falarão: precisamos de um governo que retire a Lei do Trabalho e coloque um fim às políticas de austeridade. Desse ponto de vista, o movimento contra a Lei do Trabalho e a atitude de diferentes partidos durante a luta, aportaram alguns ensinamentos. Eles não serão esquecidos por todos.

Já desacreditado pela Lei do Trabalho, o Partido Socialista (Parti Socialiste PS)  atingiu seu abismo de impopularidade. Ele próprio decidiu cancelar seu curso de verão, convencido – com razão – que seria alvo dos opositores à Lei do Trabalho. Em 2017, as últimas esperanças dos dirigentes do PS estão baseadas no descrédito e na crise que também atinge igualmente aos Republicanos (Républicains). Esperam estar presentes no segundo turno contra Marine Le Pen. Contudo, ainda que seu candidato seja François Hollande ou qualquer outro da ala de direita do PS, trata-se de um cálculo muito arriscado. Seu balanço é catastrófico, indefensável. Não poderão repetir duas vezes o lema de “meu inimigo é o mundo das finanças”.

Enquanto a “ala de esquerda” do PS, tristemente conhecidos como “atiradores de estilingue”, forem incapazes de impor sua oposição verbal à Lei do Trabalho eles não votarão a favor da moção de censura da direita. Estavam dispostos a firmar uma moção de censura “de esquerda”, mas sob a condição de que… o número de assinaturas necessárias não fosse alcançado. Por duas vezes, cuidadosamente “fracassaram” próximo ao objetivo (56 assinaturas das 58 necessárias). Os que firmavam eram cúmplices dos que não assinavam. Levaram a cabo esta farsa parlamentar, não somente para proteger suas candidaturas nas próximas eleições legislativas. Também é, mais profundamente, porque não defendem nenhuma alternativa séria à política do governo. Desde o início do mandato de François Hollande, os “atiradores de estilingue” sem fundas, contentam-se em exigir um pouco menos de austeridade. Não a desafiam porque não sabem o que colocar no lugar. Como exemplo, têm sistematicamente votado pelos cortes no orçamento.

Os Republicanos concordam com a base da Lei do Trabalho. Quando o governo utilizou pela primeira vez o artigo 49-3[9], sua moção de censura foi uma postura política; a qual acreditavam que seria seguramente rejeitada; não queriam a queda do governo. No Senado, endureceram a lei – sem a esperança de que suas emendas seriam aprovadas pelo governo, mas como demonstração de quais eram suas posições políticas no caso de voltarem ao poder. Os diferentes candidatos dos Republicanos também anunciam suas intenções. Os que prometem maiores cortes no gasto público: dos 85 a 100 bilhões de euros em cinco anos de Juppé, aos 100 bilhões de Sarkozy, 110 bilhões de Fillon e 150 bilhões de Le Maire[10]. Ao mesmo tempo, propõem reduzir drasticamente o imposto sobre o capital e a renda dos mais ricos. A mensagem possui a vantagem de ser clara: é uma declaração de guerra aos trabalhadores, desempregados e todas as vítimas da crise.

Durante os quatro meses da luta contra a Lei do Trabalho, a Frente Nacional[11] praticamente desapareceu do cenário político. Os cantantes hipócritas do “povo francês” escondem-se e se calam quando o povo trabalhador se envolve na luta de classes em grande escala. Concordam com a Lei do Trabalho e, até mesmo, gostariam de aprofundar ainda mais a contrarreforma no direito dos trabalhadores. Porém, calcularam que entre os 74% que se opõem à lei El Khomri[12], há eleitores cativos e potenciais da FN. Então ficam a espreitar nas sombras, fugindo dos microfones e destilando a conta-gotas suas declarações contraditórias. Em seu blog, Jean-Luc Mélenchon[13] mostra bem isso.

Com o refluxo da luta de massa, a FN irá rapidamente sair da reserva e retomar a via demagógica “antissistêmica”. Irá explorar tudo: a decadência do PS, a covardia dos “atiradores de estilingue”, a crise dos Republicanos, a estagnação econômica, o desemprego crescente, o Brexit e a crise da União Europeia – além, é claro, de todas as ocasiões para difamar aos “estrangeiros”. É provável, ainda que de maneira retrospectiva, critique a Lei do Trabalho. Apresentar-se-á como alternativa ao status quo, como adversário da velha classe política corrupta.

Contudo, uma outra e verdadeira alternativa ao status quo – uma alternativa à esquerda – pode e deve surgir em grande escala nos próximos meses. O movimento contra a Lei do Trabalho tem demonstrado seu potencial mais uma vez. Em troca, a experiência deste movimento ajuda ao desenvolvimento de uma alternativa política de esquerda. A falência do PS abre um enorme campo à esquerda.

Este campo, no entanto, não será automaticamente preenchido por quem o queira ocupar. Mélenchon e seu movimento – a França Rebelada[14] – não se beneficiam naturalmente da situação política atual. Para que a dinâmica o favoreça, deve estar em sintonia com as aspirações das massas, suas raivas e seu radicalismo. Teremos várias oportunidades para analisar que tipo de campanha Mélenchon deveria fazer, inclusive sobre o programa a ser defendido. Aqui somente cabe observar uma das mais evidentes lições do movimento contra a Lei do Trabalho: o esmagador apoio recebido da população se deve, principalmente, ao seu claro conteúdo de classe. A campanha de Mélenchon deve, também, ter um conteúdo de classe muito evidente. Este será o melhor modo – e, na verdade, o único – para puxar o tapete dos pés dos demagogos reacionários da FN.


[1] Contrarreforma aos direitos dos trabalhadores da França (Nota do Tradutor – N.T.).

[2] Confederação Geral do Trabalho (N.T.).

[3] FO: Force Ouvrière – Força Operária; FSU: Fédération Syndicale Unique – Federação Sindical Única, da área de Educação; Unef: Union Nationale des Etudiants de France – União Nacional dos Estudantes da França; UNL: Union Nationale Lycéenne – União Nacional dos Estudantes Colegiais ou Secundaristas; FIDL: Fédération Indépendante et Démocratique Lycéenne – Federação Independente e Democrática de Estudantes Colegiais ou Secundaristas (N.T.).

[4] Vide os artigos “Nós não vamos desistir! Movimento francês de combate à contrarreforma trabalhista entra no terceiro mês” (<https://www.marxismo.org.br/content/nos-nao-vamos-desistir-movimento-frances-de-combate-contrarreforma-trabalhista-entra-no>); e “Contrarreforma nos direitos dos trabalhadores na França: está em marcha a batalha decisiva” (<https://www.marxismo.org.br/content/contrarreforma-nos-direitos-dos-trabalhadores-na-franca-esta-em-marcha-batalha-decisiva>) (N.T.).

[5] Régie Autonome des Transports Parisiens: Empresa Autônoma dos Transportes Parisienses (N.T.).

[6] Nuits debout. Acerca disso, ler o artigo “As Noites em Claro, o pesadelo dos 1% na França” (<https://www.marxismo.org.br/content/noites-em-pe-o-pesadelo-dos-1>) (N.T.).

[7] Menciona-se aqui o papel desempenhado pelos dirigentes da CGT, por representarem a ala esquerda da intersindical – e porque os militantes da CGT foram a espinha dorsal do movimento. Por exemplo, Jean-Claude Mailly (FO) nada disse acerca das greves por tempo indeterminado.

[8] “Contrarreforma nos direitos dos trabalhadores na França: está em marcha a batalha decisiva” (<https://www.marxismo.org.br/content/contrarreforma-nos-direitos-dos-trabalhadores-na-franca-esta-em-marcha-batalha-decisiva>) (N.T.).

[9] Artigo da Constituição Francesa que permite ao governo decretar leis sem a apreciação do Legislativo (N.T.).

[10] Primaire: à droite, la bataille des programmes est lancée – Le Figaro (<http://www.lefigaro.fr/politique/2016/07/03/01002-20160703ARTFIG00146-primaire-la-bataille-des-projets-des-republicains-est-engagee.php>).

[11] Front NationalFN (N.T.).

[12] Como também é conhecida a Lei do Trabalho (N.T.).

[13] Presidente da FN e co-fundador do Partido de Esquerda (Parti de Gauche) (N.T.).

[14] La France insoumise (N.T.).

Artigo publicado originalmente em 10 de julho no site Révolution, da seção na França da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Bilan du mouvement contre la loi Travail”.

Tradução de Nathan Belcavello.