Foto: Alexander Kott,Konstantin Statsky/SREDA Production Company, 2017

A deturpação histórica da série “Trotsky” na Netflix

Produzida originalmente para a TV pública russa PevryKanal, controlada por Vladmir Putin, estreou recentemente na Netflix a série “Trotsky”. Uma pretensiosa produção, mas que não oferece nem qualidade artística nem fidelidade histórica. O produtor Alexandre Tsekalo, fazendo uma meia culpa, declara que: É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos reproduzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”. Poderíamos acreditar em Alexandre, se não houvessem diversas fontes sobre os eventos e os personagens mais importantes do século XX, e se ele mesmo não admitisse, já sob a suspeita de estar a fazer uma encomenda para Putin, que a mensagem da série é que “não se deve forçar as pessoas a ir para as ruas”.

A série alterna-se em diferentes períodos da vida de Leon Trotsky, geralmente entre seu exílio no México e alguma memória no começo da “carreira”, ou ainda, cortando os prados gelados da Rússia em meio à catástrofe da Guerra Civil. De começo já não faltam cenas e diálogos que, sinceramente, não deixarão que o espectador melhor informado siga adiante. Ainda assim, a Netflix é a maior plataforma de streaming de vídeo no mundo, e a maior responsável pelo tráfego de dados global, vencendo inclusive os torrents na maioria das regiões. Quase no mundo todo, pouco se informa nas escolas ou nos meios de comunicação sobre a Revolução Russa de 1917 e seus personagens. Por isto é necessário abordar brevemente algumas das mentiras principais da série.

Propôs a Teoria da Revolução Permanente, foi líder da Revolução, organizador do Exército Vermelho… Trotsky foi um revolucionário fundamental na história. Foi daqueles homens que adquiriram durante a vida todas as qualidades necessárias, e quando o vento soprou, não falhou em içar as velas. Os ventos do seu tempo ele soube aproveitar, não em proveito próprio, mas da história e da classe a qual se filiou e serviu a vida toda.

A série, porém, trata sua trajetória como uma “carreira”, no pior sentido das carreiras de políticos burgueses, de quem por trás há dinheiro sujo e um marqueteiro. O marqueteiro no caso é Aleksandr Parvus, membro da socialdemocracia alemã, mas de origem russa. Ele escolhe Trotsky, baseado principalmente na sua habilidade como orador, como o homem para cumprir um plano perverso do Império Alemão: “destruir a Rússia com uma Revolução”, por 10 milhões de marcos é claro!

O complô com o Império Alemão é uma mentira antiga. O primeiro a lançar essa ideia foi o Czar Nicolau II, depois os opositores liberais, socialistarevolucionários,  mencheviques… Cada um a sua maneira, sempre que conveniente, acusavam os bolcheviques de serem agentes estrangeiros. O Governo Provisório que se instalou após a Revolução de Fevereiro de 1917 não agiu diferente quando encurralado, mas como relatou o próprio Trotsky:

“A luta dos outros partidos entre eles parecia quase uma querela de família, comparativamente à perseguição que levavam em comum contra os bolcheviques. Nos seus conflitos entre eles, pareciam simplesmente treinarem-se para uma luta decisiva. Mesmo acusando-se gravemente um ao outro de estarem em ligação com os alemães, eles não levaram o assunto até ao fim. Julho deu outro quadro. No avanço contra os bolcheviques, há todas as forças dominantes: o governo, a Justiça, a contraespionagem, os estados-maiores, os funcionários, as municipalidades, os partidos da maioria soviética, sua imprensa, seus oradores constituem um conjunto grandioso” (Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, O Mês da Grande Calúnia, 1930).

Em 1917 os trabalhadores e soldados já não suportavam mais os encargos da guerra imperialista. Os trabalhadores que ficavam tinham que suportar a exploração e uma pauperização crescente, os que eram enviados para a linha de frente perdiam suas vidas em uma guerra travada no interesse do capital e da aristocracia.  A guerra imperialista é a “livre concorrência” em sua expressão mais bárbara.

Lenin tinha clareza de que a guerra era alheia aos interesses das massas trabalhadoras e de que assim como no “ensaio” de 1905, ela levaria as massas à insurreição, por isto a luta contra a guerra adquiriu uma importância fundamental no programa dos bolcheviques e Lenin previu que a guerra mundial poderia se transformar em guerra de classes internacional. O imperialismo alemão, ávido de se livrar no front oriental, permitiu a Lenin e outros revolucionários russos passar de trem pela Alemanha em seu retorno do exílio, porém, como disse Trotsky: no estratega: Ludendorff autorizando a passagem de Lenin, era Lenin que via melhor e mais longe” (Idem).

Nunca se provou que Trotsky ou os bolcheviques recebessem dinheiro alemão, qualquer um que queira acreditar nessa “colaboração” tem que ignorar a história. Nas negociações em Brest-Litovski, Trotsky lutou bravamente contra o Império Alemão. O revolucionário esteve frente a frente com alguns dos agentes mais capacitados do inimigo. Conta-se que membros da delegação soviética panfletavam nas trincheiras alemãs, incitando a insurreição contra os capitalistas, pela paz e solidariedade entre os trabalhadores de todo o mundo.

Depois que os alemães retomaram uma ofensiva, a paz teve que ser assinada. Era mais importante a sobrevivência da revolução. Lenin e Trotsky tinham clareza disso, e de que um levante do proletariado alemão ocorreria, como finalmente se deu em 1918, oportunidade perdida pela traição da socialdemocracia alemã.

Já o velho Leon da série, é mais interessado em sexo do que dinheiro, ou seria mais interessado em violência? Em um encontro fictício com Sigmund Freud (a série toda é ficção), ambos conversam sobre como na verdade tudo é sexo, inclusive a revolução. O diálogo é depreciativo inclusive para Freud, mas para Trotsky é assombroso, sem falar da pérola: “as massas têm psicologia feminina”, “a revolução precisa ser inseminada”. Como sempre diz um camarada: o óbvio precisa ser dito, não existe nenhuma fonte, escrita ou gravada, ou relatada, da fonte mais remota que seja, para essas expressões machistas e equivocadas sobre a revolução e as massas. Isto é uma invenção da série. As cenas de Leon com sua companheira de vida toda, as insinuações de que Trotsky sacrificou seus filhos, como se não fosse Stalin o criminoso, merecem somente repúdio.

Para o marxismo em sua expressão partidária mais desenvolvida, o bolchevismo, as massas trabalhadoras com a classe operária à frente precisam de uma direção revolucionária, ou seja, um partido de quadros capazes de assimilar a teoria e a experiência histórica da luta de classes, e guiar a luta dentro de determinadas condições e em cada uma de suas etapas.

Negar a necessidade de dirigentes é negar a história. Mas esse elemento, a direção, que é o fator subjetivo, não pode criar por si só um processo que envolve a participação de milhões, um processo verdadeiramente revolucionário. São necessárias condições objetivas ou materiais, que empurrem as massas para a ação. Essas condições estavam maduras na Rússia de 1917 como estão hoje. A crise do capitalismo, as consequentes guerras, a fome, a desigualdade, a exploração, estas foram determinantes para que os trabalhadores russos fossem às ruas. Eles não foram forçados por Trotsky ou Lenin. O papel das massas é ativo na história. E não poucas vezes, as massas ultrapassaram seus elementos mais conscientes (direção) na teoria e na prática.

A Revolução Russa nos deu o exemplo do papel espetacular desempenhado pelas massas, e que o marxismo identificou como uma tendência do movimento operário em uma situação revolucionária: a criação dos sovietes (conselhos) de operários e soldados, os mais avançados órgãos de democracia operária. As eleições de deputados para os sovietes ocorriam de forma proporcional, por região ou fábrica. Nenhum mandato tinha quatro anos para terminar, os cargos eram revogáveis a qualquer momento. Os sovietes legislavam e executavam o poder da classe operária. Era vetada a participação da burguesia e da antiga aristocracia. Como relatou John Reed: “Nunca antes fora criado um corpo político mais sensível e perceptivo à vontade popular. Isto era necessário, pois nos períodos revolucionários a vontade popular muda com grande rapidez.” (Reed, Os Sovietes em Ação, 1918).

É isto o que os sofistas da burguesia definem como mentalidade “passiva” das massas. Não surpreende que recorram novamente às mesmas falácias históricas levantadas contra a Revolução de Outubro. A série retrata a derrubada do Governo Provisório como um “golpe” arquitetado por Trotsky. Só resta indicar que “golpe” na história da humanidade entregou o poder a um órgão tão revolucionário, tão pertencente à classe trabalhadora, como o Congresso dos Sovietes! Definitivamente um golpe letal no capitalismo, e eles não esquecem a dor! Que beleza!

Mesmo a Lenin no dia 25 de outubro de 1917 é atribuída, em um diálogo com Trotsky, a falácia: “isto não é uma revolução, isto é golpe”, protesto que ele deixa de lado depois de Trotsky lhe oferecer o governo. Difamar Trotsky não é o bastante para a série, é necessário difamar todos os grandes revolucionários e colocá-los uns contra os outros.

Pela ideologia burguesa ou pelo sentimentalismo “médio”, Trotsky sempre foi retratado ou como um sanguinário, um gêmeo siamês do seu carrasco Stalin, ou um idealista ingênuo, vítima do próprio sistema que engendrou. Na série Trotsky é o tempo todo confrontado por Jacson (identidade falsa do assassino Ramón Mercader) sobre sua semelhança com Stalin. A divergência histórica entre Trotsky e Stalin é reduzida ao rancor da derrota. Stalin, aliás, aparece o tempo todo nos dias da revolução ao lado de Lenin como seu braço direito. A relação entre Lenin e Trotsky é uma briga despolitizada por protagonismo. Trotsky chega a afirmar que não é ainda um bolchevique porque “não há espaço para dois”, “primeiro vou desacreditar Lenin”, “depois vou tomar o lugar dele como líder do partido”, mentiras só comparáveis aos manuais de história stalinistas.

Lenin e Trotsky tiveram divergências importantes. Nenhuma dividiu os líderes da Revolução em matéria de princípios. Desde que Trotsky ingressou no partido, “não houve melhor bolchevique do que ele”, ao ponto de Lenin afirmar em seu testamento, ao mesmo tempo em que realizava críticas, que Trotsky era o homem “mais capaz do partido”. A tentativa de separar Lenin de Trotsky é com clara intenção de causar confusão entre os jovens, para quem a restauração do capitalismo está a entregar apenas uma crescente falta de perspectiva, crise e exploração.

Stalin era pouco conhecido até Lenin entrar em inatividade, e não havia desempenhado nenhum papel especial na direção da revolução. Já as divergências entre Trotsky e Stalin (que são também divergências de Stalin com Lenin, embora ele nunca tenha tido coragem de enfrentar Lenin em vida) foram muito mais profundas do que descreve a série.

Diante da derrota da revolução internacional, a Rússia se viu isolada, e destroçada por uma terrível guerra civil. Muitos grandes quadros bolcheviques caíram em combate. Depois de anos de luta, e das derrotas internacionais, a classe operária estava abatida pelo cansaço. Somada à saída de cena de Lenin após um derrame, as condições históricas possibilitaram que se instalasse uma burocracia, uma casta de privilegiados no estado operário, cujos interesses cada vez mais se confrontavam com os das massas de trabalhadores.

Ninguém menos que Koba, ou Stalin, o homem de ferro, um sujeito medíocre, foi o personagem perfeito para atender a necessidade de representação política dessa casta. Ele propôs a teoria do  socialismo num só país, em que defendia ser possível chegar a uma sociedade socialista na Rússia isolada, abandonando o combate pela revolução proletária internacional e, concretamente, impedindo a revolução em diferentes países.

Stalin decretava que a Rússia já tinha atingido o socialismo. Mas apesar dos extraordinários avanços econômicos e sociais permitidos por uma economia planificada, o caso é que esse desenvolvimento encontrou um limite e depois um retrocesso, terminando com a restauração do capitalismo na URSS. A sabotagem da revolução internacional pela burocracia soviética e a ausência de uma verdadeira democracia operária na URSS foram determinantes para isso.

Há uma cena onde Trotsky, durante um delírio, reconhece-se como um “demônio”. Um fato marcante das últimas horas de vida do grande Leon é que, mesmo após o cruel golpe que o assassino Ramón Mercader lhe infligiu na cabeça, manteve uma tocante clareza sobre o significado de sua vida e do que acontecia ao seu redor.

Trotsky, longe de estar “arrependido”, diante da burocratização na União Soviética e na Internacional Comunista, dedicou os últimos anos da sua vida à fundação da Quarta Internacional, com o objetivo de defender o marxismo genuíno e continuar a luta pela revolução mundial. Trotsky também defendeu, diante dos ataques do fascismo e do stalinismo, a “libertação da arte para a revolução, e a revolução para a libertação definitiva da arte”. A história da maior revolução de todas talvez ainda tenha que aguardar um pouco de liberdade para ser apresentada em filme ou série. Se for sob este regime, será um ato heroico de poucos. Não esperemos, libertemos a arte com uma revolução.

A série “Trotsky” foi exibida na TV russa em ocasião do centenário da revolução. É transmitida para o público mundial justo num momento de ebulição da luta de classes. Na França os protestos dos coletes amarelos apontam em que direção marcham os acontecimentos. Uma situação revolucionária está na ordem do dia. É por isto que a classe dominante, através da indústria cultural, precisa difamar os maiores revolucionários da história. Isso só faz crescer a importância de apropriarmos nós a nossa história, o que só é possível estudando. Abaixo algumas fontes alternativas contra série panfletária de baixa qualidade.

Livros:

  • Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo (John Reed)
  • O Ano I da Revolução Russa (Victor Serge) [DISPONÍVEL NA LIVRARIA MARXISTA, POR ESTE LINK]
  • História da Revolução Russa (Leon Trotsky) [DISPONÍVEL NA LIVRARIA MARXISTA, POR ESTE LINK]
  • História do Partido Bolchevique (Pierre Broué)
  • Minha Vida (Leon Trotsky) [DISPONÍVEL NA LIVRARIA MARXISTA, POR ESTE LINK]
  • Stalin (Leon Trotsky) [DISPONÍVEL NA LIVRARIA MARXISTA, POR ESTE LINK]

Filmes:

  • Reeds (Warren Beatty)
  • Il Treno di Lenin (Damiano Damiani)