O recente incêndio na fábrica Maximus Confecções, na Zona Norte do Rio, escancarou uma realidade incômoda sobre o Carnaval carioca: enquanto bilhões de reais circulam na festa mais famosa do país, quem realmente faz o espetáculo acontecer – costureiras, artesãos, ritmistas e montadores – é submetido a condições precárias, muitas vezes análogas à escravidão.
Esse episódio não é um caso isolado. Incêndios em barracões de escolas de samba já ocorreram diversas vezes, destruindo fantasias e alegorias, mas, acima de tudo, revelando a vulnerabilidade de quem está por trás da festa. A pergunta que fica é: por que um evento que movimenta tanto dinheiro ainda trata tão mal seus trabalhadores?
Os números do Carnaval: bilionário para quem?
O Carnaval do Rio gera uma fortuna. Em 2024, a economia da cidade movimentou cerca de R$ 5 bilhões apenas com a festa, de acordo com a prefeitura. O turismo arrecadou R$ 23,3 milhões em ISS, um crescimento de 20% em relação a 2020. Patrocinadores injetam milhões no evento – a Ambev, por exemplo, assina imensos contratos com a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa): cerca de R$ 38,9 milhões. Sem falar em Salvador, com R$ 63 milhões; R$ 25,6 milhões em São Paulo e R$ 3,8 milhões no Recife, totalizando cerca de R$ 131,3 milhões.
Mas enquanto o dinheiro flui para as grandes empresas, os trabalhadores da festa vivem outra realidade. A maioria das confecções funciona de forma improvisada, sem segurança, e os profissionais trabalham até a exaustão para entregar fantasias e alegorias a tempo dos desfiles. Salários baixos, jornadas extenuantes e direitos ignorados são parte da regra, não da exceção. É um regime no qual o trabalhador, nas últimas semanas, sequer pode voltar para casa. Trabalha, come e dorme no mesmo local, como já denunciamos há anos aqui, no artigo “Carnaval, carnaval, carnaval fico tão triste quando chega o carnaval”.
Trabalho precarizado nos bastidores do espetáculo
O incêndio na Maximus Confecções trouxe à tona uma situação dramática: costureiras dormiam no local para dar conta da demanda, sem equipamentos de segurança e sem garantias trabalhistas. A fábrica operava sem autorização dos bombeiros e tinha instalações elétricas irregulares – um risco para quem já ganhava pouco para manter o Carnaval de pé.
Esse cenário não é novo. Há décadas, trabalhadores denunciam a precariedade nos barracões das escolas de samba. Em 2011, um incêndio destruiu quatro barracões na Cidade do Samba, comprometendo os desfiles de grandes escolas. Em 2017, outro incêndio atingiu a Acadêmicos do Grande Rio. Desde 1988, já foram ao menos outros sete grandes incêndios registrados. Ou seja, é um problema sistêmico e não um incidente isolado. A pergunta que se repete é: até quando esses trabalhadores serão tratados como máquinas descartáveis?

A contradição do Carnaval: festa para poucos, trabalho duro para muitos
Temos uma estrutura que beneficia poucos e explora muitos. E por mais que se diga que o Carnaval é muito lucrativo, ele é lucrativo de verdade só para as grandes empresas, como as de bebidas e turismo. O trbaalhador, que é quem sustenta o Carnaval nas costas, só ganha um dinheiro a mais nesta época porque se submete a uma jornada de trabalho desumana: dormindo em péssimas condições, se alimentando mal, correndo risco de vida. O “velho” conceito de mais-valia explica muito bem como o trabalho dos artesãos, costureiras e montadores serve mais para enriquecer os ricos do que para manter uma vida digna para os pobres.
Quem passa meses costurando uma fantasia ou montando um carro alegórico não vê seu trabalho reconhecido. Seu nome não aparece na transmissão oficial, sua história não é contada, seu esforço some quando as luzes da avenida se acendem. O brilho do espetáculo esconde o suor e a dor de quem o constrói.

Quem sustenta o Carnaval é a classe trabalhadora, mas as passistas das comunidades perdem espaço para as atrizes globais, os trabalhadores dos ateliês confeccionam fantasias vendidas para os turistas, e os camelôs ainda são humilhados, tanto pela degradação a que se submetem quanto pela pequena burguesia dos “bloquinhos” da galera da Zona Sul.
O carnaval do Rio está mudado. Cada vez mais é privatizado. Acontece na “rua”, mas quem manda é o capital. Só ainda é uma imensa festa, linda e com forte poder de crítica, porque quem de fato a produz é a classe trabalhadora. Porque, se dependesse dos “mecenas” e de uma pequena burguesia dos camarotes, se reduziria a apenas consumismo barato (de álcool, de sexualidade objetificada e de mão de obra barata). Na verdade, até a cultura é privatizada por essa camada, como denuncia o samba da Mangueira deste ano:
O alvo que a bala insiste em achar
Lamento informar… um sobrevivente
Meu som por você criticado
Sempre censurado pela burguesia
Tomou a cidade de assalto
E hoje no asfalto a moda é ser cria
Quer imitar meu riscado, descolorir o cabelo
Bater cabeça no meu terreiro
Os discursos são de “respeito e tolerância”, mas, na prática, o capitalismo segue esmagando os negros, que são a maioria esmagadora dos que ocupam os piores empregos, no carnaval e no resto do ano. São também os que mais morrem com as intervenções da polícia e com as políticas da burguesia, seja na prefeitura, no estado ou no governo do país.
O que precisa mudar?
Após o incêndio na Maximus, o prefeito Eduardo Paes (PSD) anunciou a construção da Cidade do Samba 2, prometendo mais estrutura para as escolas. Mas será que basta? A própria “Cidade do Samba 1” já sofreu incêndio e segue permitindo trabalhos insalubres, sem direitos trabalhistas e com assédio moral e exploração dos trabalhadores. Quando a Globo entra lá, os funcionários são avisados para “sorrir e acenar”, mas, depois que a imprensa sai, a exploração segue e o chicote no lombo canta.
Eduardo Paes não vai resolver o problema. Isso porque é um problema do capitalismo. Na verdade, se depender do Eduardo Paes, ele vai explorar mais os trabalhadores do Carnaval, assim como está explorando mais os professores da rede municipal. Ele fará tudo o que for preciso para gerar mais lucros para os empresários e gastar menos com o povo. Embora se afirme um amante do samba, no fundo, ele é um inimigo do povo, porque precariza o trabalho e entrega o que é para a classe trabalhadora. A “esquerda parlamentar” até quis enfrentá-lo uma época, corretamente denunciando suas práticas e seus aliados. Mas, como bons reformistas, decidiram se aliar a ele, em troca de cargos, como foi o caso de Freixo e tantos outros. Ou seja, a classe está sem alternativas, já que as direções de esquerda seguem traindo os princípios que tanto juram defender.
A reivindicação é simples: melhores condições de trabalho, salários justos e segurança para todos os envolvidos. Só tem um “pequeno detalhe”: o capitalismo. Enquanto houver capitalismo, o trabalho vai ser precarizado, seja entre os entregadores de aplicativo, camelôs, empregadas domésticas, costureiras, artesãos de escolas de samba ou professores. Mesmo a arte não escapa ao regime de exploração. Na prática, a vida dura nunca nos impediu de seguir cantando, dançando e criando arte. A arte sobrevive, a despeito das dores do mundo capitalista. Ela é, na verdade, entre outras coisas, uma “amostra grátis” de um mundo novo que queremos construir, um mundo no qual as pessoas não vivam apenas para trabalhar, mas tenham tempo para sorrir, para amar, para estudar, para se divertir, para viver com dignidade.
Isso implica derrotar esse sistema de exploração, o qual nos impede de usufruir da arte que nós mesmos inventamos, que é o caso do samba, por exemplo. Esse sistema precisa ser derrotado e abrir espaço para um mundo no qual haja uma arte mais livre e rica, menos castrada e com menos exploração.
A velha canção de Wilson das Neves, O dia que o morro descer e não for carnaval, de 1996, ainda é muito atual:
No dia em que o morro descer e não for carnaval
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval.