Foto: SEDU/ES

Covid-19 escancara as contradições de classe e a crise da educação no Espírito Santo

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 06, de 14 de maio de 2020. Confira a edição completa

O estado do Espírito Santo (ES) decretou, no dia 17 de março de 2020, Estado de Emergência Sanitária e antecipou o período de recesso escolar. Em outras palavras, sequestrou o recesso de julho, com a justificativa de conter o avanço da Covid-19. No dia 20 de março, o governo, por meio da Resolução do Conselho Estadual de Educação (CEE-ES) nº 5.447/2020, estabeleceu o regime emergencial de aulas não presenciais no âmbito de todo o Sistema de Ensino do Estado, e, pela Portaria 048-R, publicada no dia 2 de abril de 2020, criou o programa EscoLAR, que é o programa de Atividades Pedagógicas Não Presenciais (APNP) a ser implementado por todas as escolas da rede Estadual de Ensino.

O programa EscoLAR estava sendo estudado desde antes da pandemia e a intenção, como deixa claro o secretário de educação Vitor de Angelo, é a de que continue após esse período emergencial. Na verdade, essas reflexões já eram debatidas com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Novo Ensino Médio (Resolução CNE/CEB 3/2018), as quais preveem que pelo menos 20% da carga horária total pode ser cumprida à distância pelos alunos do turno diurno e até 30% para os alunos do turno noturno. No caso da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), essa carga horária pode ser de até 80%. Todas essas contrarreformas da educação, aliadas à emenda constitucional 95, que limita o investimento na saúde e educação, já eram ataques significativos que ameaçavam a existência das instituições públicas de ensino, fato que gerou uma das maiores manifestações de rua da história do estado do ES no 15M de 2019. 

Com a pandemia do novo coronavírus, todos os membros da comunidade escolar estão pressionados, seja com a ameaça de redução de salários seja com a rescisão de contratos, sentindo na pele as contradições do capitalismo e do acirramento da luta de classes. O fato é que mais de 500 merendeiras, funcionárias de uma prestadora de serviços ao governo do Estado do ES, foram demitidas por conta da paralisação das atividades escolares. O mesmo ocorreu com 1391 professores em designação temporária (DTs) e mais 146 estagiários da prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim-ES. No dia seguinte à demissão em massa, o prefeito  voltou atrás na decisão, embora os professores tenham sido readmitidos recebendo apenas um salário mínimo

Um professor da rede pública estadual, que prefere não se identificar, afirma que a classe está desorientada: “Desde o início há muitos questionamentos e poucas respostas. Não se sabe a finalidade do trabalho que está sendo realizado, e há muita pressão diante da pouca participação dos alunos. Corremos o risco de ver todo esse trabalho ir para a lata de lixo, pois não há nenhuma posição sobre o que se conta efetivamente nesse trabalho. Caso tenhamos que repor essas aulas, então esse trabalho que estamos agora fazendo é extra? Nada disso é dito — e o sindicato também nada esclarece, mesmo quando questionamos”.

Diante da apatia do SINDIUPES, 927 professores assinaram uma carta pedindo a revogação do programa EscoLAR. Nessa carta os professores declaram: “Em nosso entendimento, buscando atender os interesses de instituições privadas de ensino, a decisão não só abre um precedente perigoso, pois segundo o secretário de educação ‘O programa EscoLAR poderá, também, se estender a médio e longo prazo em outras ações’, mas aprofunda o fosso que separa a rede pública e privada e no próprio interior da escola pública, bem como entre os níveis de ensino e no interior da própria educação Básica, uma vez que em nome das possibilidades da Educação a Distância (EAD), não leva-se em consideração as desigualdades sociais […]”. Primeiramente, em diálogo com a carta, precisamos esclarecer que não basta levar em consideração as “desigualdade sociais”. “Levar em consideração” resulta em uma política de reparos que não resolve o problema da maioria da população pobre. 

Temos de fechar as portas à EAD e lutar para que toda a educação, da creche à pós-graduação, tenha os recursos humanos e materiais necessários para seu pleno desenvolvimento. Em tempos de pandemia, se o governo estivesse de fato comprometido com a segurança da comunidade escolar, ele deveria contratar mais profissionais para dar conta do novo contexto e não demitir em massa. A preocupação dos professores com a abertura do precedente da EAD no ensino básico é correta, pois vai gerar ainda mais desemprego, sem contar com as questões pedagógicas. As salas de aula da EAD no Ensino Superior Público (Universidade Aberta do Brasil) que já existem possuem em média 200 alunos. Ou seja, em vez de abrirem novas universidades, e abrirem novas vagas para a carreira no magistério superior, o governo amplia a EAD. Imaginem isso no contexto do Ensino Básico. 

A carta continua: “As repercussões da pandemia serão distintas entre as famílias, os profissionais da educação e os nossos estudantes. Teremos os que perderão familiares e/ou poderão ser ceifados pela doença. Os que terão redução salarial e/ou perderão empregos e/ou as suas fontes de renda serão suprimidas. Essa situação terá enormes reflexos sobre a condição de ensino e de aprendizagem, o que potencializará o aumento das distâncias já existentes”. Portanto, a proposta de EAD, paradoxalmente reforçará a desigualdade educacional – Pelo direito à qualidade da educação para todos/as! – Não ao programa escolar! – É hora de salvar vidas!” 

Nesse trecho, a palavra de ordem “Pelo direito à qualidade da educação para todos/as” também não nos parece acertada. Primeiro, porque a maioria das escolas particulares não possui uma qualidade superior à escola pública e segundo, e mais importante, porque a educação tem de ser pública, gratuita e para todos, da creche à pós-graduação.  

No programa EscoLAR, os professores da rede são incumbidos de elaborar atividades e monitorar os estudantes a partir do conteúdo ministrado nessas videoaulas, atuando mais como tutores da EAD do que propriamente como professores. Como ressaltam muitos professores, os conteúdos das aulas apresentam erros conceituais, referências diretas ao cristianismo para embasar posições que deveriam ser científicas, além do uso do autointitulado filósofo e guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho para definir o conceito de história, fato que provocou repúdio Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB-ES) e da Associação Nacional de Professores de História (ANPUH-ES), que publicou uma nota a respeito em que declaram: 

“o material disponibilizado apresenta um descompasso entre as abordagens atuais da historiografia, incluindo-se aí erros factuais sem qualquer comparação com a literatura especializada. Este fato traduz-se em prejuízo pedagógico aos alunos da rede, uma vez que veicula conceitos e informações equivocadas, do ponto de vista da História, desconsiderando a produção da área e o diálogo dos historiadores locais com a comunidade científica internacional.” 

O desabafo de outra professora da rede pública estadual, demonstra a situação à qual os profissionais e alunos estão submetidos: “Nós professores precisamos assistir uma série de vídeos, inclusive, em uma das aulas de Ensino Religioso, o professor se intitulou como pastor e utilizou a bíblia durante todo o vídeo, exercendo uma prática de ensino religioso confessional, o que é bastante problemático. Os alunos não dão qualquer retorno para nós professores, tanto por falta de incentivo devido à baixa qualidade do material (vídeo aulas) e devido a falta de hábito dos alunos com esse modo de aprendizagem”. Ressaltamos, além de “problemático” a aula fere o princípio do Estado laico e professa uma religião.

Um questionamento que surge, obviamente, é sobre as condições materiais para se implementar o programa. Isso aparece tanto na fala de professores como na de pais e alunos que, por meio da Associação de Pais e Alunos, entraram com pedido de liminar para suspender imediatamente o programa, pedido este que foi negado recentemente pelo desembargador Adalto Dias Tristão. Não é novidade que, mesmo em períodos de normalidade capitalista, os recursos não são distribuídos de maneira igualitária entre as escolas, nem tampouco são suficientes para garantir a educação para todos. A Covid-19 intensifica essa diferença de maneira dramática, pois aliena as possibilidades de acesso ao saber ao campo individual, deixando a cargo do núcleo familiar organizar o processo de ensino e aprendizagem.

A Secretaria da Educação (SEDU-ES) joga nas escolas a responsabilidade de alcançar os alunos que não possuem recursos para acompanhar as atividades remotas, deixando a cargo de pedagogos e professores o contato com esses estudantes, sobrecarregando o corpo pedagógico e administrativo. Segundo declara a SEDU, 85,7% dos estudantes tem acesso à internet, além disso, ao baixar o aplicativo do EscoLAR, é possível acessar o conteúdo da sala de aula sem gastar dados do celular, o que permite o acesso às atividades offline. A contratação do envio desses dados custou 2 milhões e 500 mil reais aos cofres públicos. No entanto, nas quatro semanas de aplicação do programa, a participação tem sido muito baixa, contando com cerca de 15 a 20% em cada turma. 

A ciência e a tecnologia deveriam servir para a humanidade superar seus problemas, mas sob o domínio do capitalismo ela é usada em prol de uma concentração ainda maior de capital na mão de uma minoria. Em tempos de pandemia, a instituição do ensino à distância e/ou do trabalho remoto sem a garantia de condições igualitárias de acesso aos conteúdos, assim como sem qualquer proteção aos empregos dos professores, e demais trabalhadores envolvidos com a escola promete agravar em escala exponencial a degradação do ensino público, tornando a educação uma mercadoria barata a ser vendida para os conglomerados de empresas privadas de ensino. 

Há muita luta pela frente e precisaremos nos armar com o melhor arsenal da classe trabalhadora: a organização. A organização será uma arma tão mais necessária quanto a luta de classes venha se acirrar, e a crise econômica seja potencializada pela pandemia do novo coronavírus. Por isso, a Esquerda Marxista se apresenta como uma alternativa e convida os professores e demais profissionais da educação a participarem do Seminário Nacional Online sobre educação Pública e Gratuita e em defesa dos direitos dos trabalhadores e dos estudantes, que ocorrerá no dia 27 de junho. 

Exigimos a readmissão imediata das 500 merendeiras e a imediata restituição dos salários dos professores de Cachoeiro de Itapemirim, além da readmissão de todos os trabalhadores demitidos devido à paralisação das atividades presenciais nas escolas.