Cuba e os dilemas da revolução

Vitoriosa em janeiro de 1959, a Revolução Cubana foi um dos mais importantes processos políticos protagonizados pelos trabalhadores na América Latina. Por décadas, os cubanos vêm enfrentando o imperialismo a poucos quilômetros da fronteira com os Estados Unidos. O processo revolucionário cubano mostrou a disposição dos trabalhadores na luta para a superação do capitalismo e pela construção de uma nova sociedade. Contudo, esse processo revolucionário sempre se mostrou marcado por contradições das mais diversas, tanto internas como externas, cujas consequências permanecem na atualidade.

A Revolução Cubana foi a confirmação prática da teoria da revolução permanente, elaborada por Leon Trotsky. A burguesia cubana era incapaz de realizar o seu programa democrático, deixando de cumprir um papel progressista. Coube aos trabalhadores a realização das tarefas não realizadas pela revolução burguesa. Os trabalhadores tiveram que superar didaticamente essas etapas, defendendo uma estratégia socialista que mantivesse a aliança do proletariado urbano com o campesinato. Embora muito se fale sobre a centralidade da guerrilha, que de fato acabou assumindo a direção do processo, a Revolução Cubana teve o protagonismo da classe trabalhadora e dos pobres urbanos, de estudantes e de trabalhadores rurais.

Na década de 1940 o Partido Socialista Popular (PSP), como era chamado o antigo partido comunista, chegou a ter cerca de 80 mil militantes, em uma população de seis milhões de pessoas. Neste momento, o partido adotava a política de conciliação de classe orientada pela Internacional Comunista (IC), completamente tomada pelo stalinismo. Em 1940, inclusive, o PSP apoiou a candidatura burguesa de Fulgêncio Batista, chegando a indicar membros para o seu governo. 

Depois do golpe de 1952, quando Batista assumiu ao posto de ditador, o PSP foi colocado na ilegalidade. Em 26 de julho de 1953, aconteceu o assalto ao Quartel Moncada. Embora a ação tenha fracassado, revelou a brutalidade da ditadura, mobilizando estudantes e trabalhadores. Esse processo também colocou em relevo a figura de Fidel Castro, que foi anistiado. Em maio de 1955, Fidel foi exilado no México, onde passou a preparar o retorno à ilha, formando o Movimento 26 de julho. O grupo desembarcou em Cuba no começo de dezembro de 1955

Nesse período, a guerrilha se fortaleceu a ponto de estar em condições de tomar o poder em dezembro de 1958. Diante da iminente vitória da guerrilha, a burguesia tentou estabelecer um novo governo, sem Batista. Fidel Castro respondeu com um chamado à greve geral, que durou quatro dias, no começo de janeiro de 1959. Che Guevara e Camilo Cienfuegos entraram em Havana no dia 2 janeiro e Fidel chegou à capital pouco depois, no dia 8.

Inicialmente a revolução tinha um programa democrático, de libertação nacional e de reforma agrária. Embora defendesse medidas de nacionalização de setores da economia, não se colocava como pretensão a expropriação da burguesia. Em maio de 1959, mostrado sua perspectiva de conciliação com a burguesia, afirmava Castro:

“Não é que sejamos contra o investimento privado; mas entendemos que devemos incentivar o investimento privado dos empresários nacionais, devemos procurar a ajuda dos empresários nacionais, facilitá-lo através das instituições de crédito do Estado, com capital mobilizado através de instituições de crédito internacionais. Acreditamos na comodidade da experiência, no estímulo aos investimentos privados, mas devemos aspirar que sejam investimentos privados de empresas nacionais.”1

Percebe-se nesta fala uma perspectiva nacionalista, de interesse da burguesia nativa, que, mesmo se chocando com eventuais interesses externos, não aponta no sentido de medidas que pudessem colocar fim à propriedade privada. Fidel Castro havia sido claro sobre essa perspectiva de conciliação em diálogo com jornalistas nos Estados Unidos, durante visita a Nova York, em abril de 1959: “Se alguém, ou algum empresário, quiser ir para Cuba e encontrar garantias, boas oportunidades e condições, que vá para Cuba.”2

Nesse primeiro ano depois da revolução, houve, por parte do governo cubano, tentativas de não entrar em atrito direto com os Estados Unidos. Em abril de 1959, no mesmo evento diante dos jornalistas nos Estados Unidos, Castro dizia:

“O nosso comércio com os Estados Unidos pode melhorar de uma forma que seja melhor para todos, e é absolutamente impossível progredirmos se não marcharmos juntamente com os Estados Unidos, sem qualquer ameaça ao comércio de qualquer um de nós.”3

Castro mantinha um discurso em tom de crítica ao imperialismo e, ao mesmo tempo, evitava se comprometer com a política bloco soviético. Em outro discurso, no mês de janeiro de 1959, diante de eventuais críticas por ser supostamente comunista, Castro afirmava: 

“Considero que não estou dizendo nada mais do que uma verdade histórica, e não vão me chamar de comunista por isso, porque não sou comunista; estou dizendo a verdade. Aqui eles tentaram colocar coisas que quem não é um traidor e um miserável apoiador incondicional dos americanos, então ele é um comunista; pois bem, eu não sou comunista, nem me vendo aos americanos, nem recebo ordens dos americanos.”4

Contudo, o cenário de polarização política não permitia a neutralidade diante das duas grandes potências da época. Com o avanço da situação política, Castro elogiava a União Soviética, mas evidenciando que essa seria uma relação de solidariedade entre os povos e que Cuba não estaria comprometida com um projeto comunista. Castro dizia, em famoso documento, conhecido como “Primeira Declaração de Havana”, em setembro de 1960:

“[…] o único culpado desta Revolução estar a ocorrer em Cuba é o imperialismo ianque e, portanto, o povo de Cuba rejeita a acusação de que a União Soviética ou a República Popular da China estão a tentar aproveitar a situação política, económica e social de um Estado americano, para quebrar a unidade continental e pôr em perigo a paz e a segurança do hemisfério.”5

Segundo Castro, se Cuba recebia algum tipo de auxílio da União Soviética ou da China, se devia às pressões do imperialismo, não a uma questão ideológica. Contudo, com o avanço do processo revolucionário, ficou evidente que não seria possível atender as demandas da população sem atacar a propriedade privada. Os capitalistas passaram a sabotar a revolução, inclusive incitando uma guerra civil. Esse processo obrigou a revolução a se radicalizar, confirmando uma hipótese apontada por Trotsky no “Programa de Transição”:

“[…] é impossível negar categórica e antecipadamente a possibilidade teórica de que, sob a influência de uma combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, crack financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluídos aí os stalinistas, possam ir mais longe do que queriam no caminho da ruptura com a burguesia.”6

Sob a pressão dos trabalhadores organizados, a revolução cubana precisou ir para além da perspectiva de libertação nacional. No final de 1959, Che Guevara foi nomeado presidente do Instituto Nacional da Reforma Agrária e do Banco Nacional. Em março de 1960 foram demitidos os últimos conservadores que estavam no governo. Neste mesmo ano foram progressivamente decretadas as nacionalizações de empresas e de bancos estrangeiros e de todo o setor açucareiro.

Esse processo não se deu por conta das intenções da direção castrista ou por uma perspectiva estratégica do governo no sentido do socialismo, mas diante da pressão exercida pelas massas, que se organizavam em organismos de poder de base. Diante disso,

“[…] a variante, plausível no momento em que era formulada, da reconstrução de um Estado burguês, não se realizou, assim como também não a ditadura do proletariado. Foi uma outra variante que tomou corpo: a constituição de um Estado operário parecido com os Estado operários burocráticos desde seu nascimento, embora tendo suas particularidades históricas.”7

Em abril de 1961, a invasão imperialista da Praia de Girón, pelo governo de Kennedy, aprofundou as tensões com os Estados Unidos. Essa situação, em meio ao processo de mobilização interna no sentido das nacionalizações e do avanço de outras medidas, levou a que fosse proclamado o caráter socialista da revolução. Castro dizia, em discurso no mês de julho de 1961: 

“Declaramos que a Revolução é socialista. O que significa que a Revolução é socialista? Significa que tudo aqui é socializado? Não. Quer dizer que tudo aqui vai ser socializado na hora? Não. A Revolução é um processo e o socialismo também não se consegue por decreto. O socialismo é um regime econômico e social que se consegue através de um processo; não é alcançado por decreto.  Por decreto podem-se nacionalizar as usinas de açúcar, por decreto podem-se nacionalizar os bancos, por decreto podem-se nacionalizar as grandes indústrias, por decreto pode-se adotar uma série de medidas, mas por decreto não se consegue um regime econômico-social completo. Entre outras coisas, a Revolução é um processo de educação do povo, é um processo de formação da consciência revolucionária.”8

O processo de nacionalização e a planificação econômica permitiram importantes avanços sociais e consolidaram o apoio à revolução. Por outro lado, Castro continuava a semear ilusões na conciliação de classes. No documento conhecido como “Segunda declaração de Havana”, de fevereiro de 1962, afirmava Castro:

“Na luta anti-imperialista e antifeudal é possível estruturar a imensa maioria do povo sob objetivos de libertação que unam o esforço da classe trabalhadora, dos camponeses, dos trabalhadores intelectuais, da pequena burguesia e das camadas mais progressistas da burguesia nacional. Estes setores compreendem a imensa maioria da população e reúnem grandes forças sociais capazes de varrer o domínio imperialista e a reação feudal. Nesse amplo movimento, eles podem e devem lutar juntos pelo bem das suas nações, pelo bem dos seus povos e pelo bem da América, do velho militante marxista ao católico sincero que nada tem a ver com os monopólios ianques e os senhores feudais da terra.”9

Nesse contexto, houve o aprofundamento da relação com a União Soviética. O comércio entre os dois países foi feito em condições favoráveis para Cuba, proporcionando um certo desenvolvimento econômico e social da ilha. Em troca do envio de suprimento de petróleo, matérias-primas e equipamentos industriais e militares para Cuba, a União Soviética exigia a manutenção de um caráter subordinado deste país em sua estratégia política em âmbito internacional e uma organização interna baseada no modelo de planejamento soviético.

O modelo soviético de “coexistência pacífica”, que orientava a política externa de Moscou, restringiu a luta pelo socialismo. Para Cuba, o avanço do processo de transformação social que poderia levar ao socialismo dependia da revolução em âmbito internacional, o que não estava nas perspectivas de Moscou. Essa estagnação tinha impacto direto sobre a possibilidade de avanço das transformações econômicas e sociais de Cuba. Em setembro de 1939, Trotsky comentava sobre a União Soviética algo que, em certa medida, pode ser aplicado à situação da revolução em Cuba:

“[…] o regime soviético deu um poderoso impulso à economia. Porém, a origem deste impulso foi a nacionalização dos meios de produção e o início da planificação da economia, e de forma alguma o fato de a burocracia ter usurpado a direção da economia. Ao contrário, a burocracia, como sistema, se converteu no pior dos freios ao desenvolvimento técnico e cultural do país.”10

Essa estagnação não se deu apenas em relação à aplicação de um programa de aprofundamento da revolução, mas também em relação às lutas ocorridas em outros países. No contexto latino-americano se levantaram alguns focos de luta, bastante centrados em guerrilhas locais, em grande medida em oposição a ditaduras que existiam em diferentes países. Em 1979, se deu a vitória do processo revolucionário na Nicarágua, encabeçada pelos sandinistas, que, sob a influência castrista, seguiram a orientação da buscar pela conciliação com setores da burguesia nativa. 

Em âmbito interno, o regime político de Cuba se viu marcado por medidas que incorporavam elementos do regime soviético. Um desses aspectos passava pelo partido único, o que, no caso cubano, se mostrava ainda mais centralizado considerando o peso do militarismo em sua estrutura. Outro aspecto passou pela cultura, na medida em que foi imposto em Cuba o modelo realista socialista soviético. Comentando o congresso sobre educação e cultura realizado em 1971, o escritor cubano Leonardo Padura se remete a “um longo período de instrumentalização de uma política cultural férrea, ortodoxa e em boa medida repressiva”.11 O mesmo congresso condenou a homossexualidade, afirmando que “deve-se evitar que nosso país seja representado artisticamente no estrangeiro por pessoas cuja moral não corresponda ao prestígio de nossa Revolução.”12

Cuba sofreu as consequências do colapso da União Soviética, em 1991. Cerca de 80% de comércio exterior de Cuba se dava com o governo de Moscou. No período entre 1989 e 1993 o PIB cubano caiu 35%. Leonardo Padura afirma que “a desintegração do bloco socialista europeu e a consequente crise econômica em que a ilha se viu lançada fizeram da década de 1990 um período de intensas carências materiais e de patente desencanto político”.13 Enquanto na União Soviética a casta burocrática governante permitiu a restauração capitalista e se tornou ela própria burguesa, mediante o roubo da propriedade estatal, em Cuba a revolução vem resistindo a esse processo. 

Contudo, Cuba segue submetida ao bloqueio econômico imposto pelo imperialismo, aprofundado no governo Trump e mantido por Biden. Como resposta, vem buscando formas de abrir sua economia, inclusive permitindo um paulatino retorno da propriedade privada. Por outro lado, vem estabelecendo relações econômicas com a burguesia de outros países, especialmente da Rússia. Esses são elementos que apontam para o risco de restauração capitalista em Cuba, diante da abertura econômica e da manutenção do poder da burocracia. 

O processo histórico e político de Cuba mostra a necessidade da expansão da revolução para todo o mundo, inclusive nos países centrais do imperialismo. Essa perspectiva é diferente do apoio diplomático e econômico que recebeu Cuba por parte da União Soviética, que visava principalmente fortalecer uma casta burocrática dentro da ilha e o regime político, e não ser um fomentador do socialismo em outros países. O regime político ficou estagnado em um Estado burocratizado que cada vez mais se fortalece e vem abrindo as portas para a restauração capitalista. Cuba ficou limitada a um governo burocrático que, apesar de ter dirigido a expropriação da burguesia, não se colocou no papel de luta pelo socialismo. 

Cabe lembrar a lição de Trotsky sobre a necessidade de uma revolução política, que derrube a burocracia governante e garanta o poder efetivo para os trabalhadores. Foram os trabalhadores que até o momento impediram a restauração capitalista e o avanço da ofensiva imperialista sobre Cuba. O destino de Cuba depende da luta dos trabalhadores em âmbito internacional, tanto para derrotar a burocracia e impedir a restauração capitalista como para avançar no sentido da construção do socialismo.

Artigo publicado com a autorização do autor, originalemente postado no portal Contrapoder.

  1. Discurso no Conselho Econômico, Buenos Aires, 2 de maio de 1959, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1959/esp/f020559e.html ↩︎
  2. Discurso na Associação Americana de Editores de Periódicos, 17 de abril de 1959, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1959/esp/f170459e.html ↩︎
  3. Discurso na Associação Americana de Editores de Periódicos, 17 de abril de 1959, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1959/esp/f170459e.html ↩︎
  4. Discurso, Havana,15 de janeiro de 1959, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1959/esp/f150159e.html ↩︎
  5. Discurso na Assembleia Popular, 2 de setembro de 1960, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1960/esp/f020960e.html ↩︎
  6. Leon Trotsky. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 61. ↩︎
  7. Stéphane Just. A revolução proletária e os Estados operários burocráticos. São Paulo: Palavra, 1979, p. 113. ↩︎
  8. Discurso, Havana, 26 de julho de 1961, http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1961/esp/f260761e.html ↩︎
  9. “Segunda Declaração de Havana”, Havana, 4 de fevereiro de 1962, https://traduagindo.com/2020/11/12/fidel-castro-segunda-declaracao-de-havana/ ↩︎
  10. Leon Trotsky. Em defesa do marxismo. São Paulo: Sundermann, 2011, p. 26-7 ↩︎
  11. Leonardo Padura. Água por todos os lados. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 234. ↩︎
  12. Resoluções do 1º Congresso Nacional de Educação e Cultura. São Paulo: Livramento, 1980, p. 29 ↩︎
  13. Leonardo Padura. Água por todos os lados. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 236. ↩︎