Da Constituição de 1988 à “Reforma Política”: 25 anos de ataques a democracia

Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição Federal do Brasil. Após 24 anos de ditadura militar, o povo impunha uma série de conquistas: democráticas. Apesar de seus avanços, o PT votou contra o texto integral da Constituição e tinha motivos para tal. Entretanto, chegando aos 25 anos de sua promulgação, muito do que foi conquistado foi retirado e outras partes desfiguradas. Em termos gerais, dois movimentos aconteceram:

1 – Privatização dos Serviços Públicos e das Estatais, que continua em pleno vapor.

2 – Estatização, controle do estado, dos órgãos que deveriam ser independentes – Partidos e Sindicatos.

Em outras palavras, nestes 25 anos as poucas conquistas foram sendo retiradas e o Estado tornando-se cada vez mais totalitário. Este artigo faz um balanço disso e apresenta algumas sugestões para um debate do que seria uma verdadeira reforma política que sirva aos interesses da classe trabalhadora.

Constituição 88 – avanços e recuos

Lula e Paim, então deputados constituintes, os dois tendo origem na categoria metalúrgica explicaram a votação do PT (relato do site www.agenciasindical.com.br/HistoriaSindical/HistoriaSindical%20PT%20Constitui%C3%A7ao.html):

Dia 23 de setembro de 1988, ou seja, a 12 dias da promulgação da Constituição-cidadã, Lula fez um longo discurso e disse: “O partido vota contra o texto, e amanhã, por decisão do nosso diretório – decisão majoritária – assinará a Constituição, porque entende que é o cumprimento formal da sua participação nessa Constituinte”.

O então deputado Paulo Paim (metalúrgico também), afirmou: “O PT não pode votar a favor de um texto que é contra a reforma agrária, dá cinco anos para o presidente Sarney e mantém íntegra a estrutura militar. O PT assina a Carta porque reconhece os avanços, principalmente nos direitos dos trabalhadores”.

No Diretório Nacional do PT a ala esquerda propunha que o PT votasse contra e não assinasse a Constituição. Ainda assim, a decisão de votar contra foi positiva e denunciava o texto. Paim só não citou como uma questão importante a permanência do imposto sindical, que é um dos pilares do estado burguês corporativo e a manutenção da unicidade sindical (exigência de um só sindicato por categoria profissional e por localidade) que mantinha de pé esta estrutura.

Ressalte-se que a constituição começa, no seu artigo 1º explicando que o Brasil fundamenta-se nos “valores sociais do trabalho e na livre iniciativa”, ou seja, na exploração capitalista do trabalho, que promove o “valor social do trabalho” e através da livre iniciativa garante os lucros daí resultantes para empresas e empresários. Este fundamento é reforçado no art. 170 sobre a ordem econômica, onde é estabelecido claramente o princípio da propriedade privada como esteio da ordem econômica.

Podemos citar também que apesar do direito de greve ter sido reconhecido pela Constituição para os servidores o direito de negociação coletiva não o foi. E a manutenção da estrutura sindical impedia na prática a existência legal de Centrais Sindicais com poder de negociação e assinatura de contratos coletivos. Sim, existiram avanços, mas os problemas existentes mostraram que o voto contra a Constituição de 88 do PT, ao contrário de todos os que hoje procuram negar o seu passado, foi positivo e correto.

A Constituição não revogou as leis promulgadas pela Ditadura Militar. Assim, a Lei de Segurança Nacional vale até hoje! Aliás, presume-se no direito que todo cidadão conhece todas as leis. Mas o Brasil possui 17 códigos – Leis gerais sobre um determinado assunto[i], 132 Leis Complementares – que complementam a Constituição e são previstas por esta e 12.836 Leis Ordinárias! Ou seja, para o cidadão comum, a legislação é um cipoal incompreensível e totalmente impossível de ser conhecido. Dizer que isto é “democrático” é forçar a barra.

O principal instrumento que paira sobre a cabeça da população é a instituição do “estado de defesa” para “restabelecer” a “ordem pública e a paz social” (art. 136, CF), instrumento que garante ao executivo convocar as Forças Armadas a intervir para garantir a ordem que ele achar necessária. Em suma, permite que se chame o exército contra o povo. Isto é reforçado no art. 142 que estabelece “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifo nosso). Uma decisão do STF, órgão que ninguém elegeu, pode solicitar que as Forças Armadas destituam o Executivo e o Legislativo. Mais claro impossível.

A Constituição Federal também “regulamenta” os partidos políticos e os sindicatos, estabelecendo normas para o funcionamento de um e de outro. Isto é contra a democracia, já que tanto um como outros são entidades privadas, nas quais não deveria ingerir o poder público. O resultado disso é que temos uma série de normas e regulamentos (existe uma lei para disciplinar como devem funcionar os partidos políticos[ii]) e os sindicatos dependem do imposto sindical, do registro no Ministério do Trabalho e da “unicidade sindical”.

Ela estabelece como motivo para “intervir” em Estados e Municípios deixar de pagar a dívida ou para “promover a lei e a ordem” (art.34 e 35, CF).

Se a Constituição, apesar de todos estes problemas, teve avanços que foram impostos pelo movimento de massas, o que aconteceu depois de sua promulgação, foram, de forma geral, retrocessos. Em 1989 a queda da URSS levou a um retrocesso geral para os trabalhadores no mundo e teve suas consequências no PT[iii]. Se os governos de Collor, Itamar e Fernando Henrique foram um retrocesso, o próprio retrocesso do PT colaborou nesta situação. E isto teve consequências para a democracia no País.

As emendas Constitucionais

Depois da Constituição de 88 foram promulgadas 73 emendas constitucionais e 6 Emendas previstas nos artigos das Disposições Transitórias. O interessante é que estas emendas tratam tanto de assuntos aparentemente inócuos ou que pouca importância tem na vida do cidadão comum, como tratam de retirar direitos[iv]. Em termos de retirada de direitos, isso começa com a EC 3 (17/03/93) e vai até hoje.

Os ataques foram generalizados. O Salário Família passa a ser pago apenas aos trabalhadores “de baixa renda” ao invés de ser garantido a todos (EC 20); Foram extintos os monopólios estatais do petróleo, do gás, das telecomunicações, da produção e comercialização de produtos nucleares; O conceito de empresa nacional foi extinto, substituído pelo conceito de “empresa com sede no Brasil”, o que permitiu a abertura do mercado para multinacionais no setor de comunicação, mineração e navegação; foi introduzido o conceito de “eficiência” e “produtividade” no serviço público – inclusive no judiciário – o que se traduz em serviços públicos que devem ser “econômicos”, mais “eficientes”, sem que o atendimento a população esteja garantido; abriu-se a possibilidade de criação das “organizações sociais” no serviço público, medida que permite a terceirização e privatização direta de serviços como saúde e educação.

Além disso, ao invés de avançar nos direitos como a estabilidade no emprego e aposentadoria integral para todos os trabalhadores, estes direitos foram retirados dos servidores públicos; a aposentadoria foi atacada com a abertura da possibilidade de desoneração da folha de pagamentos e privatização da aposentadoria dos servidores (medidas implantadas no governo Dilma); foi introduzido para os servidores o conceito de idade mínima para aposentadoria (a famosa formula 95) que hoje buscam ampliar para os demais trabalhadores.

Duas medidas também foram ataques aos servidores, a relativização do conceito de isonomia salarial – é uma das discussões que entram na questão da terceirização, salário igual para função igual – e a desvinculação do reajuste de servidores civis e militares.

Por último, todo o capítulo referente à fiscalização e obrigações das instituições financeiras foi simplesmente retirado!

Comparando-se, os únicos direitos que foram incluídos, foram os direitos dos trabalhadores domésticos – sendo que sua regulamentação pode levar a não implementação das medidas votadas, o aumento da idade de proibição de trabalho de 14 para 16 anos e o que iguala o prazo prescricional de processos trabalhistas dos trabalhadores rurais aos urbanos.

Reforma Política

As propostas de Reforma Política hoje apresentadas pelo PT são um retrocesso ao que existe. As propostas principais são o fim dos suplentes de senadores, o financiamento público das campanhas eleitorais e as “listas fechadas” de votação para deputados e vereadores.

Ressalte-se que a CF e a lei que regulamenta a existência de partidos é um dos instrumentos antidemocráticos existentes. Enquanto que a CF foi modificada para desregulamentar o que tinha sido regulamentado, para retirar direitos, para acabar com conceitos como o de empresa nacional, para acabar com monopólios estatais e para privatizar empresas e serviços públicos, as leis que foram aprovadas vieram para impedir a ação independente de sindicatos e dos partidos. A Lei de greve, a decisão do STF que iguala os servidores a trabalhadores de serviços essenciais para efeito de greve, a lei dos partidos políticos (que ainda é a lei de 1965 feita pela ditadura militar), tudo isso são leis contrárias à democracia.

Por iniciativa do governo Lula, foram “reconhecidas” as Centrais Sindicais. Mas este “reconhecimento” foi de fachada, já que as Centrais continuam sem o direito de negociação coletiva e de assinar acordos e contratos coletivos. A única coisa que mudou foi o aumento do controle estatal sobre as centrais, ao estabelecer que uma parcela do imposto sindical seja distribuída para estas centrais. Ou seja, exatamente contra aquilo que previa o programa original do PT, de fim do imposto sindical.

Mais ainda, a proposta de lei que existe para substituir a Lei de Segurança Nacional (LSN) da ditadura militar visa adequar a legislação nacional ao conceito de “guerra permanente contra o terror” feita nos EUA e consegue igualar a terrorismo ações como as manifestações de massa que foram realizadas durante o mês de junho de 2013. Sim, a CF está sendo modificada para retirar direitos e está sendo regulamentada para impedir a livre manifestação e organização.

A Fundação Perseu Abramo do PT promoveu uma pesquisa sobre a Reforma Política. Perguntado livremente o que o povo queria com a Reforma Política, o item mais votado foi “diminuir o salário dos políticos”, depois melhorias na saúde e em terceiro lugar melhoria na educação! Sim, o povo sabe o que quer, ainda que esteja bombardeado pela imprensa e pelo próprio PT com propostas reacionárias.

Na pesquisa, a maioria colocou-se contra o voto distrital, contra o sistema de listas fechadas para votação de deputado, contra o financiamento de partidos e campanhas por empresas e contra o financiamento estatal de eleições.

Bastante sábio o povo brasileiro. Nós nos colocamos ao lado povo, contra estas propostas reacionárias. Partidos e sindicatos não podem e não devem depender do Estado para funcionar. A CF devia simplesmente estabelecer “é livre o funcionamento de partidos e sindicatos, proibido o financiamento estatal ou por empresas”. O resto, cada partido e cada sindicato decide como funcionar, como ser financiado, através da contribuição individual de seus membros (filiados).

 


[i] http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/codigos-1#content. Foge ao escopo deste artigo explicar o que são os códigos e a sua história. Ressalte-se apenas que o código eleitoral vigente é de 1965, editado pela ditadura militar.

[ii] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9096.htm – Lei que regulamenta os partidos políticos.

[iii] Ver artigo de Serge Goulart, sobre a origem e o desenvolvimento do PT, https://marxismo.org.br/?q=content/sobre-origem-e-o-desenvolvimento-do-pt

[iv] Ver a lista completa destas emendas, com um curto comentário em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/ECR/quadro_ecr.htm . Como um grande número delas diz apenas “revoga-se” um parágrafo ou inciso, torna-se necessário ler a emenda e, as vezes, a Constituição original para entender o que foi retirado ou modificado.