Atravessamos uma nova situação mundial, marcada pela crise internacional do capital. Tal situação evoca o acirramento das relações antagônicas de classe e intensifica a luta de classes em todas as esferas da vida material. A recente movimentação de jovens e trabalhadores em diversos países do mundo, revoltada com as condições materiais de vida, mostra-nos a intensificação dos antagonismos de classe. O movimento que eclodiu na sociedade marroquina é, atualmente, um dos expoentes dessa intensificação.
A onda de revoltas no Marrocos teve início em um incidente em que houve o falecimento de oito mulheres grávidas em decorrência de partos cesarianos mal executados em um hospital público em Agadir, cidade do sudoeste do país. Esse incidente foi a última gota para a classe trabalhadora marroquina. Isso fez com que as revoltas crescessem e se espalhassem por todo o país, exigindo melhores condições nos hospitais, na educação como um todo, e nos serviços públicos, que se encontram totalmente precarizados; o alto índice de desemprego, que chegou a 12,8% no segundo trimestre de 2025; e o índice de desemprego juvenil, que alcançou 35,8%. Soma-se a isso o ódio contra a corrupção da monarquia e do parlamento marroquino, além do orçamento absurdo destinado à realização da Copa do Mundo de 2030, da qual o país será sede, de aproximadamente US$ 4,2 bilhões. Os manifestantes gritavam a plenos pulmões durante a revolta: “Os estádios estão aqui, mas onde estão os hospitais?”.
Os protestos estão sendo organizados por um grupo intitulado “Gen Z 212”, que adotou tal nome inspirado em outras revoltas que estão ocorrendo no mundo, que contam com a participação de amplas camadas da juventude, como as do Nepal, de Madagascar, da Indonésia e do Peru. O grupo, que se organiza majoritariamente por meio de servidores da plataforma de comunicação Discord, realizou o seguinte chamamento na plataforma dias antes dos protestos: “O direito à saúde, à educação e a uma vida digna não é um slogan vazio, mas uma demanda séria.”
A revolta, a cada dia, se radicaliza, já havendo uma série de conflitos diretos que resultaram em civis feridos e mortos. Os manifestantes exigem a renúncia do bilionário Aziz Akhannouch do cargo de primeiro-ministro, que ocupa atualmente. Os partidos institucionais do país tentam tirar proveito de toda a situação sem sucesso, como o Partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD), que acusou as autoridades de utilizarem violência sistemática contra os jovens manifestantes. O movimento respondeu ao PJD relembrando que o ex-primeiro-ministro Abdelilah Benkirane, líder do partido, quando estava no poder, defendia a redução do Estado na saúde e na educação para favorecer a iniciativa privada — a burguesia marroquina.
A revolta da juventude marroquina não pode ser compreendida sem a análise da estrutura de classe peculiar do país. Marrocos é uma monarquia constitucional em que o rei Mohammed VI, no poder desde 1999, concentra não apenas o poder político, mas também o controle direto dos meios de produção. Com uma fortuna pessoal estimada em US$ 5,7 bilhões, o monarca é um dos chefes de Estado mais ricos do mundo, enquanto 12% dos marroquinos vivem abaixo da linha da pobreza.
A riqueza real não é apenas ornamental ou produto de “corrupção”, mas resultado da propriedade direta sobre setores estratégicos da economia. Por meio do Al Mada Group (Royal Holding), o braço de investimentos da família real, a monarquia controla bancos como o Attijariwafa Bank, vastas extensões de terras agrícolas, empresas de mineração que exploram o fosfato, uma das principais exportações do país, e setores de energia e telecomunicações. Além disso, o rei recebe do tesouro estatal subsídios anuais superiores a US$ 200 milhões para cobrir despesas do palácio, viagens e a gestão das atividades reais. Doze palácios luxuosos estão distribuídos por todo o território marroquino, além de residências reais, uma frota de jatos particulares, incluindo um Boeing 747, e um iate de luxo avaliado em mais de US$ 88 milhões.

Essa concentração obscena de riqueza nas mãos da monarquia contrasta brutalmente com a realidade material da classe trabalhadora marroquina. Enquanto o rei ostenta uma coleção de relógios de luxo avaliada em milhões de dólares, cerca de 40% dos marroquinos labutam na agricultura de subsistência, utilizando ferramentas primitivas e arados puxados por animais, muitas vezes à vista dos modernos trens-bala que ligam Casablanca a Tânger, construídos para servir à elite e aos turistas. A agricultura, que emprega essa massa de trabalhadores em condições medievais, representa apenas de 15% a 17% do PIB nacional.
A juventude marroquina, ao gritar “Os estádios estão aqui, mas onde estão os hospitais?”, denuncia não apenas uma “má gestão” ou “prioridades erradas”, mas a própria natureza do Estado burguês. A monarquia marroquina funciona, portanto, como uma fração particular da burguesia, que unifica em si o controle do aparato estatal e a propriedade direta dos principais meios de produção, tornando-se um exemplo cristalino da natureza de classe do Estado burguês. Isso representa, para as massas trabalhadoras, o aumento da miséria produzida pelo sistema. Os US$ 4,2 bilhões destinados à Copa de 2030 não são um “desperdício”, mas um investimento rentável para o capital imperialista e para a elite marroquina, que lucrarão com a construção de estádios, hotéis de luxo e infraestrutura turística. Assim, a monarquia garante, por meio do esporte, uma limpeza de seus próprios crimes, como, por exemplo, a guerra contra o povo saaraui, enquanto hospitais permanecem sem equipamentos básicos e mulheres morrem em partos cesarianos por falta de condições sanitárias mínimas.
A questão saaraui
Essa contradição extrema entre a opulência da monarquia e a miséria das massas não é exclusividade marroquina, mas expressa, em grau agudo, a contradição fundamental do capitalismo em sua fase imperialista: a produção social das riquezas e sua apropriação privada por uma minúscula classe parasitária. O parasitismo da burguesia marroquina não pode ser entendido sem falarmos da questão nacional, da ocupação militar do Saara Ocidental e da opressão secular do povo saaraui.
Desde 1975, quando a Espanha abandonou sua colônia no Saara Ocidental, o Marrocos ocupa militarmente esse território, anexando-o ilegalmente e impondo um regime de terror contra a população nativa. A Frente Polisário, movimento de libertação nacional do povo saaraui, trava há quase 50 anos uma luta pela autodeterminação e pela construção de um Estado independente, a República Árabe Saaraui Democrática, reconhecida por dezenas de países, mas não pelos capachos do imperialismo, que apoiam tacitamente a ocupação marroquina.
O Saara Ocidental não é apenas um território disputado, mas uma fonte crucial de riqueza para a monarquia marroquina. O fosfato extraído em Bou Craa, no Saara ocupado, alimenta as exportações controladas pelo Estado marroquino e enriquece ainda mais o Al Mada Group. A exploração desse recurso natural, que pertence legitimamente ao povo saaraui, é realizada sob ocupação militar, com a expulsão de milhares de saarauis para campos de refugiados na Argélia, onde vivem em condições precárias há décadas.
A causa saaraui não é uma “questão humanitária” abstrata, mas uma questão de classe e anti-imperialista concreta. O Marrocos atua como capacho do imperialismo, apoiado pelos Estados Unidos e pela França, que veem no reino alauíta um aliado estável no Norte da África para conter movimentos revolucionários e garantir os interesses do capital ocidental na região. A ocupação do Saara Ocidental é parte integrante dessa arquitetura de dominação imperialista, e a luta pela autodeterminação saaraui é inseparável da luta contra o capitalismo marroquino e o imperialismo.
A necessidade de uma direção
A revolta da juventude marroquina, no entanto, não pode se limitar às demandas por saúde, educação e emprego, por mais justas que sejam. Assim, esse movimento carrega limites políticos que precisam ser superados. Sua organização descentralizada via Discord, embora dificulte a repressão imediata, revela a ausência de uma direção capaz de orientar a luta até suas últimas consequências. A desconfiança genérica de “todos os partidos”, embora compreensível diante da traição histórica do PJD e dos demais partidos burgueses, abre um vazio político perigoso, que pode ser preenchido por ONGs financiadas pelo imperialismo ou por setores “democráticos” da própria burguesia marroquina, que prometem reformas sem tocar na propriedade privada e na dominação imperialista.
O movimento precisa romper o caráter nacional e avançar para um entendimento da necessidade de uma luta internacionalista e anti-imperialista de todos os povos da região. Não se pode derrotar a monarquia marroquina sem combater seu caráter expansionista e opressor sobre o povo saaraui. A luta da classe trabalhadora do Marrocos e da República Saaraui deve ser a mesma; devemos combater dividindo os povos da região em classes, e não por divisões étnicas. A luta é contra Mohammed VI, pela autodeterminação do Saara Ocidental e contra o capital.
Embora a classe trabalhadora tenha começado a aderir às manifestações, o movimento ainda não conseguiu mobilizar plenamente os batalhões pesados do proletariado organizado — os portuários, os mineiros de fosfato, os operários industriais e do campo. Sem uma greve geral, sem paralisação da produção, o movimento pode ser isolado e massacrado pela repressão.
Todo processo revolucionário será espontâneo quando se referir ao movimento de classe. Esse processo só se inicia quando as contradições do sistema atual estão maduras e as massas não encontram mais alternativas dentro da ordem vigente. Entretanto, essa espontaneidade tem seus limites. A construção de uma direção consciente, de um verdadeiro partido operário independente, armado com o programa marxista, é fundamental para organizar e pavimentar o caminho, dirigindo a ação das massas. A experiência histórica do movimento operário demonstra que, sem essa ferramenta política, mesmo os processos mais intensos podem ser derrotados ou cooptados pela burguesia.

A revolta da juventude marroquina não está isolada. Ela é parte de uma onda revolucionária que varre o mundo neste momento. No Nepal, em setembro, os jovens derrubaram o primeiro-ministro em 48 horas. Em Madagascar, as massas exigem a renúncia do presidente em meio a cortes de água e energia. No Peru, a juventude enfrenta nas ruas o governo corrupto de Dina Boluarte. No Quênia, milhares desafiam a repressão policial. Esses movimentos não são coincidências, mas manifestações de uma única realidade: a crise do capitalismo mundial e o acirramento da luta de classes em escala global.
As contradições sociais causadas pela decadência do sistema capitalista atingem diferentes países em diferentes graus, mas há uma aceleração da luta de classes em todo o mundo. Com cada nova manifestação, a juventude e a classe trabalhadora enviam um recado à burguesia: não estamos derrotados, estamos cansados de viver assim, exigimos um futuro, e esse futuro não pode ser oferecido pelo sistema capitalista. A questão central permanece sendo a construção do fator subjetivo das revoluções: a direção política revolucionária capaz de transformar a energia das massas em poder operário.
Para conquistar esse futuro, as demandas imediatas da juventude marroquina por saúde, educação e emprego devem estar ligadas a um programa revolucionário que aponte para a destruição do Estado burguês monárquico e a construção de uma nova sociedade. A organização em comitês de ação nos locais de trabalho, estudo e moradia, a convocação de uma greve geral por tempo indeterminado que paralise o país e a construção de um partido operário revolucionário são os caminhos para que o movimento supere seus limites espontâneos e avance rumo à vitória. A luta no Marrocos está organicamente conectada às lutas de todos os explorados e oprimidos do mundo. É socialismo ou barbárie!
Levantamos as seguintes palavras de ordem:
- Abaixo a monarquia parasitária de Mohammed VI!
- Expropriação do Al Mada Group e de toda a burguesia, sem indenização, sob controle dos trabalhadores!
- Autodeterminação para o Saara Ocidental! Retirada imediata das tropas marroquinas!
- Não pagamento da dívida externa! Todo dinheiro para saúde, educação e emprego!
- Expropriação das terras da família real e dos latifundiários!
- Mobilizar toda a classe trabalhadora por uma greve geral para derrubar o governo e todo o regime!
- Pela revolução socialista internacional!
Organização Comunista Internacionalista (Esquerda Marxista) Corrente Marxista Internacional