O direito à educação pública, gratuita e para todos – história e atualidade

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 10, de 09 de julho de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

No dia 27/06/2020 a Esquerda Marxista realizou o “1º Seminário online em defesa da Educação Pública, Gratuita e para Todos em tempos de pandemia”. A atividade foi convocada com uma plataforma que, entre outras bandeiras, tratava do não pagamento da dívida pública e da revogação da Reforma da Previdência e defendia Tecnologia para o ensino SIM, EAD NÃO!, Abaixo o capitalismo! Fora Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais. O Seminário recebeu a inscrição de 364 pessoas e mais de 200 participaram das 4 horas de debate. Nos debates a necessidade de organização e a necessidade de combate foram falas que percorreram as intervenções durante toda a atividade.

Ao final, foi reforçada a necessidade de massificar algumas campanhas imediatamente e de ampliar o acesso aos temas que ali foram tratados.

Com essa perspectiva, apresentamos nesta edição do F&M o relato dos dois informes que foram apresentados no Seminário: “O direito à educação pública, gratuita e para todos – história e atualidade”, apresentado pela camarada Bruna Reis, e “Liberdade e Independência Sindical”, assunto abordado por Pedro Bernardes.

No seminário fiquei responsável por introduzir o tema “O direito à educação pública, gratuita e para todos – história e atualidade”. A ideia central, que não é novidade para ninguém, mas que procurei fundamentar com alguns dados, é de que nunca tivemos, no Brasil, o investimento necessário para garantir que a educação pública fosse gratuita e para todos, em todos os níveis, e a pandemia deixou isso muito mais exposto.

O Brasil é um país de economia dominada, por isso, obviamente, o direito à educação aqui nunca chegou perto da educação de países que atingiram o auge das conquistas democráticas. Mesmo quando confrontada com os também precários sistemas educacionais de países vizinhos, a educação brasileira fica atrás: “mesmo quando comparado com os países vizinhos da América Latina, como Chile, Argentina e México […] O Brasil gasta menos de mil dólares por aluno/ano, enquanto  estes países investem em torno de dois mil dólares” (Fundeb – 2008).

Um pouco de história

Os portugueses começaram a colonizar de fato o Brasil em 1532. Em 1549, a expedição de Tomé de Sousa já contava com os jesuítas, os primeiros responsáveis pela educação no país. Por 200 anos a Companhia de Jesus impôs a mesma língua, a mesma fé e a obediência ao mesmo rei – na tentativa de garantir a unidade nacional na Colônia.

As disciplinas de Gramática Latina, Filosofia, Teologia Dogmática, Moral Cristã, as primeiras letras, a Matemática elementar e o Tupi constituíam uma educação baseada na repetição, reforço e memorização do conteúdo, sob uma constante vigilância.

Em 1565, havia 14 colégios secundários e dezenas de escolas de primeiras letras. Apesar do atendimento parco, as concessões de terras e privilégios comerciais garantidos pela Coroa à Companhia de Jesus faziam com que ela fosse uma empresa com navios, milhares de cabeças de gado, ouro, produtos agrícolas e artesanato, cuja renda financiava o funcionamento e a expansão de sua estrutura educacional. Seus lucros representavam 25% do PIB colonial.

Mais tarde, Marquês de Pombal foi o responsável por expulsar os jesuítas de todo o império lusitano, com o objetivo de implementar uma reforma capitalista e uma pretensa laicização da educação, que, como sabemos, nunca se consolidou na prática. Longe de uma preocupação educacional, Pombal via nos bens da Companhia a solução imediata para a crise do Reino.

Foi só em 1772 que a primeira medida para financiar o ensino público foi criada no Brasil. O “subsídio literário” era um imposto sobre a carne, o vinho, o vinagre e a aguardente que garantiu que os brasileiros pagassem a conta da educação colonial. Mas nunca foi cobrado com regularidade e os professores ficavam longos períodos sem receber seus vencimentos.

Quando em 1808 a Família Real foi expulsa pelas tropas invasoras da França de Napoleão, veio para o Brasil e criou cursos que não existiam – medicina, cirurgia, matemática, agricultura. Ou seja, cursos para formar os trabalhadores do Estado, os funcionários públicos, as Academias Militar e da Marinha, destinados prioritariamente às famílias lusitanas e com o claro objetivo de servir à Coroa.

A primeira constituição, de 1824, trazia que “A instrução primária é gratuita para todos os cidadãos”, mas não apontava a origem dos recursos.

Uma curiosidade é que o Dia do Professor é comemorado em 15 de outubro porque foi nessa data que a primeira Lei da Instrução Pública foi promulgada, em 1827: “em todas as cidades, vilas e lugares populosos haverá escolas de primeiras letras que forem necessárias.”

Uma característica da educação brasileira que persiste ainda hoje, que é a descentralização, foi oficializada em 6 de agosto de 1834, quando o poder local ficou encarregado de criar os estabelecimentos escolares, além de regulamentar e promover a educação primária e secundária. Ao Governo Central ficou reservada a responsabilidade apenas sobre o ensino superior.

O Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos (assim, tudo misturado mesmo) foi o primeiro ministério que tratava da educação, surgido só em 1890. Em 1891, a Primeira Constituição Republicana consagrou a descentralização do sistema.

O vestibular, esse injusto funil que impede a maior parte da juventude de acessar o ensino superior público, foi criado na Reforma Carlos Maximiliano (1915). Já a Reforma Rocha Vaz (1925) ampliou os poderes da “Polícia Escolar”, que tinha a função de reprimir qualquer manifestação contrária aos governos no espaço educacional.

Getúlio Vargas, pressionado pela crise de 1929 e pelas demandas da crescente urbanização, implantou em 1930 uma expansão do sistema escolar extremamente improvisada, ampliando a distribuição de vagas, mas sem que as escolas tivessem condições de garantir qualidade no ensino. Nesse ano, surge o Ministério da Educação e Saúde Pública.

A Constituição de 1934 regulamentava que a União e os municípios investiriam 10% de sua receita na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos, e os estados e o Distrito Federal, nunca menos de 20%. Mas essa regra durou pouco tempo, apenas três anos. Muito provavelmente vem daqui o fetiche pelos 10% do PIB, defendido por muitas organizações de esquerda em vez de exigir toda a verba necessária para a educação.

A Reforma Capanema (1942-1946) instituiu as Leis Orgânicas do Ensino, um conjunto de reformas no Ensino Secundário, Industrial e Agrícola. Criou o Senai e o Senac, grosso modo, as primeiras Parcerias Público-Privado na educação.  Também é a primeira vez que na constituição brasileira surge a expressão “diretrizes e bases”.

Em paralelo, fizemos um comparativo com a situação da educação ao redor do mundo. O ensino primário obrigatório foi instituído pela primeira vez na Prússia, no ano de 1717. Crianças entre cinco e 12 anos eram obrigadas a frequentar a escola e a contratação de qualquer criança que não houvesse concluído esta etapa de estudo era proibida. O objetivo nesse direito imposto, estava claro: formar o bom soldado e o bom trabalhador.

Na Revolução Francesca, Condorcet apresentou à Assembleia Nacional o que hoje são os pilares do direito republicano à educação:

“Nós não queremos que um só homem possa dizer: ‘A Lei me assegurou plena igualdade de direitos, porém me recusou meios de conhecê-la. Ensinaram-me suficientemente na minha infância aquilo que precisava saber, mas, forçado a trabalhar para viver, essas primeiras noções foram rapidamente esquecidas, e só me resta a dor de sentir na minha ignorância, não a vontade da natureza, mas a injustiça da sociedade’. Cremos que o poder público deve dizer aos cidadãos pobres: ‘Se a natureza vos deu talentos, vós podeis desenvolvê-los e eles não estarão perdidos para vós nem para a Pátria’. Assim, a instrução deve ser universal, melhor dizendo, deve estender-se a todos os cidadãos.”

Parte de suas ideias foram incorporadas à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793: “A instrução é a necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos”. Essa declaração foi elaborada durante o governo dos jacobinos, mas já em 1795 foi substituída pela declaração termidoriana e o artigo sobre a instrução pública foi suprimido.

Foram os trabalhadores que, em 1871, ao tomarem, mesmo que parcialmente, o poder na França durante a Comuna de Paris, garantiram que todas as instituições de ensino fossem abertas gratuitamente ao povo e abolida de fato a intromissão da Igreja na escola.

Em 26 de dezembro de 1919, na União Soviética, Lenin decretou a campanha “Sobre a erradicação do analfabetismo entre a população”, em que todas as pessoas entre 8 e 50 anos de idade eram obrigadas a se alfabetizar em sua língua materna.

Após a Revolução Russa de 1917, assim como na Comuna de Paris, a chamada velha escola seria alvo das mais duras críticas, e mudanças seriam exigidas pela sociedade:

“A velha escola era livresca, obrigava a armazenar uma massa de conhecimentos inúteis, supérfluos, mortos, que atulhavam a cabeça e transformavam a geração jovem num exército de funcionários talhados pelo mesmo padrão.”

Mas há no direito à educação pública, mesmo no capitalismo, aspectos positivos:

“Seria errado pensar que basta assimilar as palavras de ordem comunistas, as conclusões da ciência comunista, sem adquirir a soma de conhecimentos adquiridos de que o próprio comunismo é um produto. O marxismo é um exemplo que mostra como o comunismo saiu do conjunto dos conhecimentos humanos”. (Lenin, em As tarefas revolucionárias da juventude)

Portanto, ainda que o objetivo dos marxistas seja outra sociedade, uma sociedade comunista, e por isso também uma outra escola, a pauta pela qual o seminário foi chamado, a pauta  republicana, é fundamental como um elemento imediato de organização e luta pelo direito à educação. O problema é que o capitalismo hoje não tem condições de fornecer nem mais os direitos que surgiram em sua fase progressista. É por isso que países que avançaram em processos revolucionários contra o capital, como Venezuela e Cuba, conseguiram garantir uma educação pública muito superior à nossa, ainda que a continuidade dessas conquistas necessite da retomada das lutas revolucionárias nesses países.

Por isso, a luta pelo direito à educação no Brasil hoje é também uma luta anticapitalista. Porque para que a classe trabalhadora possa viver e, inclusive, para que possa se organizar para derrubar o capitalismo, precisa defender com unhas e dentes todos os direitos, incluso o acesso à educação.

Diferente do que se apregoa pelos governos petistas, as práticas destes só fragilizaram a educação pública, pois, por meio de programas como o ProUni, Pronatec e FIES, transferiram dinheiro público para instituições privadas de ensino, enriquecendo os tubarões do ensino que agora avançam sobre a educação básica.

A Reforma do Ensino Médio, gestada no governo Dilma e apresentada em 2016 por Temer, regulamentava a total privatização da escola pública. Um filão de mercado importante para os milionários grupos Kroton e outros, que poderão oferecer disciplinas à distância, acabando com a escola pública básica.

A pandemia, como a Esquerda Marxista vem afirmando, aprofundou o caos. O ensino remoto implementado pelos governos não garantiu tecnologia para que, em tempos de isolamento social, todos pudessem continuar acompanhando as aulas. As desigualdades aumentaram, ampliando o fosso entre o ensino privado e o público.

Meses se passaram com esse ensino para inglês ver. O número de estudantes que realizavam as atividades, que já era baixo, reduziu e agora alguns governos, como o do estado de Santa Catarina, ameaçam os jovens e seus pais com o Ministério Público. Esse mesmo ministério deveria exigir dos governos que fornecessem o básico: internet, computador, alimentação e todas as necessidades para o acesso à educação para todos.

Os professores sofrem ao exercer funções sobre as quais não tinham domínio antes da pandemia, com o acúmulo de burocracia criada pelo Estado para “garantir que os professores estão trabalhando” e aumento do número de estudantes por sala de aula, vindos das escolas particulares – que mesmo fornecendo uma educação inferior (pois a base da educação é social, do convívio, da presença), continuam cobrando as mesmas mensalidades. Uma outra parte da categoria dos professores sofre com o desemprego. Outros, ainda, tiveram redução dos seus salários, mesmo com o aumento da jornada.

Enquanto troca um ministro da Educação por outro pior, todos de acordo com o nível do governo,  Bolsonaro essa semana autorizou a desobrigação de máscaras em vários ambientes, inclusive as escolas. Hoje 76% dos brasileiros (Datafolha) temem e rejeitam o retorno das aulas presenciais.

O Seminário deu a largada a uma luta árdua que temos que travar desde já, mas o ânimo e o número de presentes deixam evidente que essa luta é possível, só está começando e temos condições de ganhá-la se organizados.