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O Que Fazer? Como Lênin construiu uma organização de combate

Em 1901, Lênin publicou o seu livro tão esperado: “O Que Fazer?”. Essa obra-prima da literatura marxista é um guia incomparável para qualquer um que deseja construir um partido bolchevique, para qualquer um que fale sério sobre lutar para derrubar o capitalismo hoje. Nesse artigo, nós explicamos o que dá a esse livro um poder duradouro e porque todos os comunistas devem se apropriar desse texto.

Após os delegados do primeiro congresso do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) serem presos em 1898, o movimento marxista na Rússia entrou em desordem. Métodos amadores, frouxidão e uma falta de clareza política prevaleceram nos pequenos e isolados círculos marxistas por toda a Rússia.

Após sair do exílio siberiano, Lênin foi em direção à Europa ocidental, onde ele, Martov e Potresov juntaram-se aos veteranos do movimento marxista: Plekhanov, Zasulich e Axelrod. Juntos, eles formaram um novo jornal, o Iskra, como uma ferramenta para remediar esses problemas. Através desse jornal, eles começaram a juntar todos os fios, trazendo direção, clareza e organização ao partido.

Mas alguns resistiram aos seus esforços. Existia uma tendência do partido que considerava como uma virtude a situação deplorável na qual os marxistas trabalhavam. Eles celebravam o amadorismo, os métodos confusos e louvavam a natureza puramente espontânea do movimento operário, em vez de tentar elevar o seu nível de consciência para um movimento organizado sob uma liderança comunista. Essa tendência era chamada de economicista.

Foi necessário desenvolver uma luta política implacável para derrotar essa tendência, para que o partido pudesse superar essa crise de adolescência e, assim, entrar na fase adulta. E foi sempre nos confrontos diretos de ideias que nós vimos Lênin em sua melhor performance.

O pequeno livreto, “O Que Fazer?”, é fruto dessa polêmica. Essa obra-prima da literatura marxista está repleta de lições para os dias atuais sobre como construir um partido revolucionário. Ele se mantém como uma leitura essencial para qualquer comunista sério.

Como a parceira de vida e camarada de Lênin, Nadejda Krupskaia, coloca, esse é um livro que deve “ser estudado por todos que desejam ser leninistas na prática, e não apenas em palavras”.

Desde meados dos anos 1890, a Rússia presenciou uma enorme ascensão na agitação política por parte dos trabalhadores. Greves estouraram em quase todas as grandes fábricas. Os marxistas jogaram-se na agitação em torno das demandas econômicas. Muito frequentemente, bastava que apenas um panfleto do POSDR aparecesse, expondo algum abuso em alguma fábrica, para que os trabalhadores entrassem em greve.

Esse foi um movimento espontâneo e elementar. Ele representou o primeiro vislumbre de um despertar de consciência na classe trabalhadora. Lênin e os apoiadores do Iskra compreenderam que o papel do partido de vanguarda da classe trabalhadora era de elevar o nível de consciência da classe operária – transformar esses primeiros vislumbres de consciência de classe em uma compreensão clara e revolucionária.

Com os trabalhadores começando a se movimentar contra os seus próprios patrões, era necessário elevar as suas compreensões – explicar como o inimigo não era apenas um patrão, mas todos os patrões como classe, os latifundiários, e toda a autocracia czarista.

Se a classe trabalhadora tinha de elevar o nível de sua força de combate para que pudesse desafiar a autocracia, seria necessário complementar a agitação econômica com uma agitação e propaganda política versátil e completa – em outras palavras, elevar esse despertar espontâneo e semiconsciente ao nível de um movimento organizado, consciente e revolucionário.

Os economicistas, pelo contrário, idolatravam o movimento espontâneo da classe operária. Os editores do Rabocheye Dyelo acusaram Lênin e os apoiadores do Iskra de colocarem muita ênfase na política e na teoria, que atrairia apenas os intelectuais e os trabalhadores avançados, ao mesmo tempo que davam pouquíssima importância ao trabalho “prático” do dia a dia e à agitação econômica simples focada no “trabalhador comum”.

Eles clamavam que a consciência política fluiria automaticamente da luta econômica – “a política flui a partir da economia”. A intervenção da vanguarda para elevar essa consciência era, portanto, desnecessária. Tudo o que era necessário era que os marxistas encorajassem energicamente o movimento grevista, e então os trabalhadores fariam todo o resto.

Mas Lênin explicou que os trabalhadores sabem muito melhor do que os marxistas que eles são explorados economicamente! Se os marxistas restringirem as suas agitações em dizer aos trabalhadores o que eles já sabem, é bem possível que eles entediem esses trabalhadores. Voltando aos dias atuais, existem muitas seitas autoproclamadas marxistas que continuam a pensar, assim como os economicistas, que os trabalhadores só estão interessados em questões práticas sobre as suas necessidades mais palpáveis. Os seus jornais se parecem menos com órgãos de uma luta revolucionária e mais com uma leitura noturna feita para curar a insônia.

O verdadeiro Lênin é um mistério para essas seitas modernas, apesar delas falarem em seu nome em quase todas as suas proclamações. Elas tentam encontrar um atalho para os trabalhadores atrasados ao diluir o seu material e, ao fazer isso, elas tratam os trabalhadores como crianças:

“Vocês, cavalheiros, que estão tão preocupados com o ‘trabalhador comum’, na verdade vocês insultam os operários com o seu desejo de discursar de forma didática? para eles quando discutem política e organização operária. Falem sobre coisas sérias de uma maneira séria: deixem a pedagogia aos pedagogos, e não aos políticos e organizadores!”

Ao se restringirem a questões econômicas, Lênin acusou os economicistas de reduzirem o papel dos membros do partido ao papel de um secretário sindical.

Pelo contrário, o que era necessário era um partido fundado com base em revolucionários profissionais, forjados na teoria marxista, que pudessem agir como “tribunas do povo”, expondo e educando os trabalhadores sobre todos os funcionamentos internos do capitalismo, trazendo relatórios vivos e análises que ajudem os trabalhadores a ver a luta de classes a partir de seus tantos lados variados.

Ele explicou que havia muitas outras formas de agitação e propaganda que poderiam elevar e educar as massas além das questões econômicas:

“Os inspetores rurais e a flagelação dos camponeses, a corrupção dos oficiais e o tratamento policial às ‘pessoas comuns’ nas cidades, a luta contra a inanição e a supressão do desejo popular de ir em direção ao iluminismo e ao conhecimento, a extorsão de impostos e a perseguição de seitas religiosas, o tratamento humilhante de soldados e os métodos militares no tratamento de estudantes e de intelectuais liberais – todas essas e milhares de outras manifestações similares de tirania, apesar de não estarem conectadas diretamente à luta ‘econômica’, representam por acaso, no geral, métodos e ocasiões menos ‘amplamente aplicáveis” de agitação política e de incentivo às massas para se engajarem na luta política?”

Apenas quando os trabalhadores ascenderem ao nível de compreensão de que eles não estão em conflito apenas contra esse patrão, mas contra a classe dos patrões, contra o seu aparato estatal, o sistema midiático e educacional; apenas quando os trabalhadores aprenderem a entender o verdadeiro significado das frases dos políticos, ao verem as forças e fraquezas da oposição dos elementos não-operários,  eles poderão estar verdadeiramente prontos para a batalha final pelo socialismo. O papel dos comunistas é de organizar e de oferecer uma educação política ampla para a classe operária, iniciando com as suas camadas mais avançadas.

Mas, ao em vez de se esforçarem para guiar os trabalhadores e elevar os seus entendimentos políticos, os economicistas se rebaixam à noção preconcebida deles de onde a consciência dos trabalhadores deve estar.

Eles repudiam os “teóricos” do partido, os quais eles acusam de “elitismo” por falarem sobre coisas que eles alegam estar além dos interesses e compreensões do “trabalhador médio”. Em uma palavra, eles celebram o atraso e a ignorância entre a classe operária, e apelam aos piores preconceitos que existem contra os “líderes” e teóricos com frases demagógicas sobre “as massas”, “os trabalhadores pelos trabalhadores” etc.

Em vez de ajudar o movimento a amadurecer pra além de sua fase inicial, esse obreirismo, como os marxistas se referem, na verdade ajuda artificialmente a manter o movimento de massas em sua infância. E ao abandonar a luta política, eles entregam na prática a influência sobre a classe operária aos liberais burgueses.

Em “O Que Fazer?”, Lênin é duro contra esse desprezo pela teoria – justificado pela necessidade de focar em ações pequenas e práticas – que, tanto antes como agora, leva inevitavelmente à subserviência política, à burguesia liberal:

“Nós podemos julgar [o quão] deslocado o Rabocheye Dyelo é da realidade quando, com um ar de triunfo, eles citam a declaração de Marx: ‘Qualquer passo no movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas’. Repetir essas palavras em um momento de desordem teórica é como desejar em um funeral muitas felicidades e um ótimo dia aos enlutados.

‘Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Nunca é demais insistir nessa ideia em um momento em que a pregação oportunista que está na moda anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais estreitas de atividades práticas.

‘…o papel de um combatente de vanguarda só pode ser cumprido por um partido que é guiado pela teoria mais avançada’”.

Nós vimos a mesma atitude obreirista de desprezo em relação à teoria sendo utilizada atualmente para justificar o oportunismo mais repugnante. Em um artigo de 2018 de Vanity Fair, Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) deu um exemplo cru dessa atitude:

“Eu acho que é realmente uma coisa de burguês crescer com uma ideologia política definida. Você precisa ter pais formados na faculdade para isso, com um léxico político. A minha mãe sequer tem o léxico do inglês! Quando as pessoas dizem que eu não sou socialista o suficiente, eu acho que isso é muito classista. É tipo, ‘O quê? Eu não li livros o suficiente para você, companheiro?’.”

Por um lado, ela ostenta as suas credenciais de classe operária para desprezar as comunidades burguesas e estudiosas que levam as ideias e a teoria a sério. Por outro lado, o que ela fez? Ela usou a sua influência para canalizar os trabalhadores diretamente para os braços da classe dominante! Em 2019, ela, Sanders, e todo o ‘Esquadrão’ apoiaram vergonhosamente Biden e os Democratas. Coisas muito piores ocorreram posteriormente, incluindo o apoio à proibição da greve de ferroviários por Biden, e as novas ajudas militares a Israel desde o 7 de outubro.

É uma calúnia contra a classe trabalhadora dizer que eles não estão interessados em teoria, ou que são incapazes de entendê-la / Imagem: nrkbeta, Flickr

É claro, AOC é evidentemente uma carreirista oportunista. É uma ofensa à classe operária dizer que eles não têm interesse em teoria ou que são incapazes de compreendê-la. Se simplesmente explicarem de uma maneira simples, hábil e animada, se os marxistas escreverem uma boa agitação e uma boa propaganda sobre diversos assuntos, os trabalhadores, começando pela sua camada mais avançada, certamente serão capazes de compreender. O poder da teoria marxista é de que ela é verdadeira, e a vida ensina essas mesmas verdades aos trabalhadores diariamente.

O papel dos marxistas é precisamente ajudar os trabalhadores a chegarem em todas as conclusões revolucionárias corretas a partir de suas experiências. Nós não podemos considerar como uma verdade absoluta que as conclusões políticas corretas irão automaticamente e espontaneamente fluir a partir das lutas econômicas dos trabalhadores.

Lênin apontava para o exemplo da Grã-Bretanha – onde os advogados do fabianismo, das reformas lentas e graduais, dominaram a liderança do Partido Trabalhista – para mostrar como o movimento operário por concessões no plano econômico podem também cair sob influência política dos liberais de classe média que não conseguem vislumbrar para além de pequenas reformas no campo parlamentar. Para evitar isso, uma luta determinada pela influência política deve ser erguida pelos comunistas.

Como um breve aparte, nós devemos perceber que ao confrontar as distorções dos economicistas, Lênin, às vezes, entorta o galho na direção contrária. Isso levou a uma formulação em particular em “O Que Fazer?”, na qual Lênin, de fato, pegou emprestada de Kautsky, mas nunca mais repetiu, de que a classe trabalhadora “é capaz de desenvolver, exclusivamente com seu próprio esforço, apenas a consciência sindical”.

Esse é claramente um erro nascido do exagero. Como Lênin explicou no próprio livro, isso era uma “simplificação grosseira” e uma “fórmula cega”. Isso não impediu muitos autoproclamados leninistas de repetirem essas palavras. Na verdade, a história está repleta de exemplos de trabalhadores chegando a conclusões políticas extremamente avançadas, sem essas ideias terem sido necessariamente trazidas de fora pelos marxistas. É suficiente, por exemplo, destacar as conclusões políticas avançadas da força física do cartismo na Grã-Bretanha na década de 1830.

Lênin estava destacando corretamente, contudo, o papel indispensável do partido revolucionário em dirigir a luta política, reunindo os primeiros quadros nos quais podem ser ganhos de todas as classes – que, no caso da Rússia, incluía não apenas muitos estudantes, mas até os filhos e filhas dos capitalistas e mesmo dos aristocratas – e a construção de algo que fosse, em certo grau, independente do crescimento do movimento operário.

Os economicistas apontavam para todos os problemas reais que afligiam o movimento marxista – particularmente os métodos amadores e as batidas policiais resultantes que constantemente interrompiam os trabalhos – mas eles chegavam somente às conclusões erradas.

Em particular, eles colocavam a culpa desses problemas no fato de que os estudantes predominavam por muito tempo na liderança dos círculos marxistas. Eles argumentavam, em oposição a isso, que eles deveriam negligenciar o trabalho entre os estudantes para favorecer um partido amplo de trabalhadores; um partido de massas, não de líderes.

Mas Lênin explicou que o oposto de uma organização frouxa, amadora e com uma direção débil é uma organização centralizada, disciplinada, com uma boa liderança e composta por revolucionários treinados e profissionais. Com isso, Lênin não falava apenas sobre os trabalhadores liberados do partido. Como ele apontou no editorial da primeira edição do Iskra, um revolucionário profissional é alguém “que devotará a sua vida inteira, não apenas seus horários livres, para a revolução”. É irrelevante se esse revolucionário profissional tiver sido um estudante, um intelectual ou um trabalhador.

Para explicar o seu ponto, Lênin fez uma comparação direta entre a guerra de classes e a guerra convencional. Houve muitas vezes na história em que uma força combativa pequena, porém bem disciplinada, composta por bons oficiais, derrotou grandes exércitos, compostos por bravos soldados, mas liderados por oficiais despreparados. O mesmo é verdade na guerra de classes. Um partido revolucionário, se for para ser efetivo, deve ser construído em torno de quadros treinados e profissionalizados politicamente e tecnicamente.

A única forma de um partido assim alcançar, tanto a clareza política, quanto a unidade na ação, é através do centralismo democrático. A discussão é feita nas fileiras do partido de uma forma completamente democrática, antes de uma decisão ser tomada, para que seja possível alcançar a clareza e para elevar o nível de consciência. Mas, depois de decidido, a unidade mais estrita de ação é absolutamente necessária.

Isso não foi algo que Lênin inventou. Na verdade, ele pegou como modelo todo o movimento marxista antes dele, particularmente o exemplo do Partido Social Democrata Alemão (SPD), no qual, naquele tempo, ainda se declarava como uma organização marxista, e era considerada como um modelo internacionalmente.

Hoje em dia, existem muitas pessoas autodeclaradas de esquerda que desprezam o centralismo democrático, tendo comprado as mentiras dos historiadores burgueses que caluniam o nome de Lênin ao conectá-lo ao stalinismo, igualando falsamente o centralismo democrático com o centralismo burocrático monstruoso da ditadura de Stalin.

Esses esquerdistas caem nessa falácia, acreditando que eles descobriram algo muito mais democrático do que Lênin em redes amplas e frouxas, em oposição ao partido centralizado. Invariavelmente, as suas inovações na democracia sempre levam à emergência de cliques burocráticos de líderes não eleitos e que não respondem a ninguém e, finalmente, elas acabam em um desastre. Era precisamente isso que Lênin buscava prevenir.

Na verdade, os líderes do Momentum e do Podemos tinham medo de perder o controle da organização ao instigar a iniciativa nas bases

Para dar um exemplo, logo após Corbyn ser eleito líder do Partido Trabalhista, em 2015, quando centenas de milhares de trabalhadores comuns e jovens afluíam para dentro do partido, foi feita uma tentativa de dar ao corbynismo uma expressão organizada através do Momentum. Nos seus primeiros dias, centenas de grupos do Momentum floresciam por todo o país, e dezenas de milhares de pessoas se agruparam em torno de sua bandeira.

Os seus líderes, como Jon Lansman, diziam criar um “movimento amplo e enraizado”. Tudo isso parecia muito bonito, muito democrático, mas o que isso significava na prática? Em vez de conferências democráticas de delegados que poderiam discutir ideias políticas, elevar o nível de consciência e desenvolver um programa de ação, que pudesse empurrar uma revolução interna dentro do Partido Trabalhista até a sua completude, eles ergueram uma farsa de democracia com votos digitais ocasionais.

Eles usaram, como modelo, o Podemos, que realizou debates e consultas online numerosas e aparentemente muito democráticas. No último caso, apenas aqueles que tinham todo o tempo para dedicar-se a esse mundo online de discussões, poderia participar. Sem canais internos apropriados, a maioria acabou alienada de todo o processo, reduzida a uma posição de passividade.

Na verdade, os líderes do Momentum e do Podemos tinham medo de perder o controle de suas organizações ao dar a iniciativa às fileiras de base. Em vez disso, os membros eram tratados como soldados rasos sem pensamento crítico, que trabalhavam para uma máquina eleitoral e que podiam ser acionados e descartados quando necessário, com um simples botão.

No final, o Podemos tornou-se um parceiro menor do governo social-democrata de direita. Enquanto isso, o Momentum levou o movimento de Corbyn à ruína completa e, atualmente, não é nada além de uma organização morta. Merecidamente.

Os líderes do Momentum nunca tiveram nenhuma pretensão de serem marxistas. Mas a situação não é muito melhor em muitos grupos sectários que se autoproclamam marxistas e, até mesmo, leninistas.

Tendo rejeitado as organizações de massa existentes dos trabalhadores como apodrecidas e burocratizadas, o Partido Socialista da Grã-Bretanha tentou, repetidamente, apenas proclamar novos partidos amplos e operários de massas. Na prática, eles simplesmente acabaram dissolvendo o seu perfil revolucionário, como os economicistas fizeram, tomando uma coloração reformista, falando exclusivamente das questões mais primárias como o “pão de cada dia”, e gastando uma quantidade enorme de tempo para manter a sua condenada “frente ampla” viva.

Sem exceção, tentativas como essa sempre falharam.

Para nós, como comunistas revolucionários sérios, a construção de uma organização firme e disciplinada de revolucionários profissionais, formados na teoria marxista, não é uma fantasia utópica. É um pré-requisito absolutamente indispensável para construir um partido revolucionário combativo, que possa se tornar uma liderança política para a classe operária. A Revolução de Outubro provou, de uma vez por todas, que a concepção de Lênin estava correta. “O Que Fazer?” permanece, portanto, como um livro de cabeceira para nós, conforme seguimos adiante para fundar uma Internacional Comunista Revolucionária.

Uma vez compreendido e acordado que precisamos de um partido de revolucionários profissionais, a questão colocada é a do plano. Como nós faremos isso? A resposta de Lênin é clara: o movimento revolucionário precisa de um jornal marxista para toda a Rússia.

Os economicistas ficaram perplexos. Para eles, a questão de um plano sequer entrava em seus horizontes, e o plano de Lênin parecia, para eles, demasiado “livresco”. Não, eles diziam, nós só precisamos fazer algo: fazer mais atividades “práticas, construir o movimento, coletar fundos de greve etc.

Mas os revolucionários já estavam fazendo em toda a Rússia uma quantidade absurda de atividades! No entanto a atividade era mal coordenada. Os grupos de uma parte do país não eram capazes de aprender com as outras áreas. As novidades das greves nos Urais, os massacres no interior etc., não eram noticiados em lugar nenhum. Um material teórico de boa qualidade aparecia apenas ocasionalmente nos grupos locais, e as conexões com a liderança nacional eram desorganizadas, no melhor dos casos. Havia um esforço massivo em dobro conforme os jornais locais pipocavam por todos os lugares, apenas para serem fechados após a onda de prisões realizadas pela Okhrana (a polícia secreta czarista).

Assim como um livro de instruções ajuda a coordenar o trabalho comum, o jornal serviria para guiar o trabalho comum do partido / Imagem: domínio público

Um jornal nacional permitiria que o partido resolvesse todos esses problemas de uma só vez. Tal jornal poderia condensar e expor aos seus leitores os principais pontos políticos, as principais lições e os acontecimentos chave na luta de classes nacional e internacional, no que as mentes dos trabalhadores deveriam focar.

Mas mais do que isso, até mesmo a preparação técnica do jornal fortaleceria e disciplinaria a organização. Lênin explicou o papel do jornal usando a analogia brilhante de um livro de instruções usado pelos pedreiros:

“A publicação de um jornal político de toda a Rússia deve ser a linha principal na qual nós poderemos desenvolver, aprofundar e expandir a organização inabalavelmente (ou seja, a organização revolucionária que está sempre pronta para apoiar todo protesto e toda explosão). Por favor, me diga, quando os pedreiros colocam os tijolos, várias partes de uma estrutura enorme sem precedentes, não é básico que eles usem um guia para ajudá-los a encontrar o lugar correto para colocar os tijolos; para indicar a eles o objetivo final do trabalho comum; para permitir com que eles usem, não apenas cada tijolo, mas até cada pedaço de tijolo no qual, cimentado aos tijolos antes e depois, formam uma linha acabada e contínua? E nós não estamos passando precisamente por tal período na vida de nosso partido, onde nós temos os tijolos e os pedreiros, mas que nos falta um guia para todos analisarem e seguirem?

“[…] Se nós tivéssemos um grupo de pedreiros experientes, que aprenderam a trabalhar tão bem juntos que eles podem colocar os seus tijolos exatamente conforme o necessário, sem um guia (o que, falando abstratamente, não é de nenhuma forma impossível), então talvez nós poderíamos expandir a nossa ação. Mas é um infortúnio que, enquanto nós não temos pedreiros treinados para o trabalho em equipe, esses tijolos são muitas vezes colocados onde não são nem um pouco necessários, que eles não são colocados de acordo com uma linha geral, mas são tão quebradiços que o inimigo pode romper a estrutura como se fosse feita de areia, e não de tijolos.”

Assim como um guia ajuda a coordenar o trabalho comum, um jornal serviria para guiar o trabalho comum do partido. Ele estimularia o contato regular e a correspondência entre as regiões e o centro. Ele necessitaria de uma rede de distribuidores, da coleta de dinheiro para financiar a organização revolucionária, e do desenvolvimento de uma rede confiável de contatos nas fábricas.

Os mesmos contatos que o Iskra e os vários jornais posteriores do partido bolchevique estabeleceram entre as massas russas, agiriam como uma rede neural quando o dia de preparar a insurreição chegasse.

Continuando esses métodos tentados e testados, no trajeto para lançarmos a Internacional Comunista Revolucionária, os nossos camaradas lançaram ou relançaram recentemente a imprensa comunista em vários países nos últimos meses, incluindo na Grã-Bretanha, Canadá, Alemanha, El Salvador, Portugal, Suécia, Suíça e Hungria, com novos jornais sendo preparados em uma série de outros países.

Atualmente, existem muitos indivíduos da então chamada esquerda (incluindo muitos que se consideram discípulos de Lênin!), que continuam zombando dos verdadeiros leninistas por insistirem na publicação de um jornal. Eles apontam para as novas formas de mídia eletrônica e social. Inclusive, com um blog, qualquer indivíduo sentado em seu quarto pode dizer o que quiser.

Mas construir um jornal requer uma organização profissional. Requer uma linha editorial clara, e uma forte rede de correspondentes treinados e educados. Os críticos fervorosos da imprensa revolucionária falham em entender que, o que nós estamos realmente construindo, não é meramente um jornal: nós estamos construindo o embrião de uma organização revolucionária.

Embora Lênin fosse um líder marxista russo, a sua visão era qualquer coisa, menos puramente nacional. Ele, rapidamente, denunciou a grande visibilidade do economicismo como, meramente, a forma russa da tendência oportunista global que emergia dentro do movimento operário.

Por todos os lugares, uma divisão clara estava se desenvolvendo dentro da Internacional Socialista entre uma ala revolucionária e uma ala oportunista do movimento operário.

Na Alemanha, o movimento operário estava, ao menos em palavras, ainda comprometido com o marxismo, mas uma burocracia traidora, de carreiristas confortáveis com suas posições, estava cada vez mais se inserindo no movimento, particularmente nos altos escalões do partido e dos sindicatos. Um grande período de boom econômico, que durou até 1914, no qual a classe dominante garantiu concessões importantes, sem que batalhas sérias fossem travadas entre as classes sociais, semeou a ilusão entre uma camada de que as coisas continuariam a melhorar cada vez mais.

Eduard Bernstein foi o primeiro a tentar dar uma justificativa teórica para esse oportunismo / Imagem: domínio público

Eduard Bernstein foi o primeiro a tentar oferecer uma justificativa teórica para esse oportunismo, ao tentar revisar o marxismo. O capitalismo, de acordo com ele, estava caminhando na direção de resolver as suas próprias contradições internas. O desenvolvimento pacífico continuaria indefinidamente.

Para ele, reformas graduais poderiam tornar uma revolução supérflua – tudo o que o SPD precisava fazer era aumentar o tamanho de sua fração parlamentar, forçando pequenas reformas, e pressionando, a cada momento, mais concessões econômicas. Esses argumentos foram respondidos posteriormente, contudo, por Rosa Luxemburgo, no seu panfleto brilhante de 1899, Reforma ou Revolução.

Todos os prognósticos de Bernstein sobre o capitalismo se livrando de suas contradições seriam, mais tarde, despedaçados em 1914, pelo início da Primeira Guerra Mundial.

Ao contrário da Alemanha, os comunistas russos tinham que trabalhar clandestinamente. Existiam poucas vias legais abertas ao partido. Uma vida de perigos e sacrifícios era tudo que poderia ser oferecido aos seus membros. Apenas aqueles, motivados pelas intenções mais nobres, foram arrastados para dentro do movimento. Carreiristas preocupados apenas consigo mesmos não podiam encontrar nada para eles lá. Ainda assim, a mesma tendência oportunista se expressou, só que de uma maneira mais sutil. Mas foram precisamente os perigosos e as dificuldades do trabalho revolucionário na Rússia, e o exílio forçado de toda uma geração, que passou a aprender dessa forma as lições do movimento internacional, que moldaram as mentes de milhares de jovens revolucionários.

Não há nada de acidental nessa divisão do movimento operário entre oportunismo e revolução. É um sinal dos tempos. Com o capitalismo cambaleando de uma crise para a outra, a viabilidade de reformas sérias e duradouras está se evaporando. Já se foram os dias nos quais reformas sérias podiam ser conquistadas, enquanto se falava da boca para fora sobre uma revolução socialista futura, que aparecia como uma perspectiva para um futuro muito distante. Está colocada a questão da derrubada revolucionária do capitalismo pela classe trabalhadora. Nesses dias, o reformismo acaba rapidamente em traição e põe fim à capitulação diante da classe dominante. As carcaças do Syriza e dos movimentos de Corbyn e Sanders são uma grande recordação desse fato.

A luta para unir todos os comunistas revolucionários em um partido, que lutará para romper a influência do oportunismo reformista sobre as amplas sessões da classe trabalhadora, é a luta decisiva de nossa época. Antes dos comunistas poderem conquistar o poder, nós devemos conquistar a classe operária.

Nesse sentido, “O Que Fazer?” não perdeu nada de sua vitalidade. Reformistas, sectários e anarquistas de todo o mundo regurgitam frequentemente os argumentos dos economicistas.

Eles menosprezam a classe trabalhadora. Eles nos dizem que “a consciência da classe operária é muito baixa” para entender a agitação revolucionária. Em vez disso, nós devemos nos restringir às pequenas lutas, eles dizem. Nós devemos estreitar o nosso foco para coisas como o sindicalismo puro e simples, questões de “ajuda mútua” e do “pão de cada dia”; nós devemos nos fazer “aceitáveis” para as amplas massas, no lugar de elevar a visão das massas para a altura das grandes tarefas históricas que eles terão de enfrentar.

Eles tratam os trabalhadores como crianças e, de fato, confundem o seu próprio atraso e seu baixo nível de consciência, com o nível de consciência dos trabalhadores. Eles desprezam a ideia de um partido de vanguarda da classe trabalhadora baseada em revolucionários profissionais, considerando essa ideia como “elitista”. No lugar, os reformistas vislumbram o partido meramente como uma máquina eleitoral para os levarem para dentro do parlamento; ao mesmo tempo em que os anarquistas louvam as ações espontâneas da classe trabalhadora, convenientemente absolvendo a si mesmos da necessidade de fazer algo, exceto, talvez, por dar um empurrãozinho nos trabalhadores através da ”ação direta”.

Lênin respondeu tudo isso há muito tempo, em um estilo afiado e polêmico, em O Que Fazer?”. Os comunistas devem voltar, ler e reler esse livro, para se prepararem para o próximo período.

TRADUÇÃO DE JOÃO LUCAS BRANDÃO.