Os quilombos no Brasil e a luta pela libertação dos escravos

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 19, de 12 de novembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

A diáspora africana e a acumulação de capital no Novo Mundo

O Brasil ocupa o vergonhoso segundo lugar na história da diáspora africana ficando atrás apenas dos EUA. Durante o período colonial cerca de cinco milhões de africanos desembarcaram no Brasil. O tráfico negreiro, que se estendeu do século 15 ao 19, foi uma das atividades econômicas mais rentosas dos negociantes europeus e, por 300 anos, caracterizou o modo de produção da colônia. Nesse modelo, o escravo era uma mercadoria como outra qualquer e, sendo uma propriedade privada, era objeto das mais variadas transações mercantis: compra, venda, doação, empréstimo, transmissão por herança, penhor, sequestro, embargo, depósito, arremate e adjudicação.

Com a benção da igreja, a coroa portuguesa autorizou a escravatura, documentada nas bulas de Nicolau V, Dum diversos e Divino Amorecommuniti, ambas de 1452. As referidas bulas permitiam que os portugueses com o intuito de cristianizar poderiam reduzir os africanos à condição de escravos. Obviamente que a conversão ao cristianismo não garantia nada aos escravos, além da graça de Deus. Não havia dúvidas sobre o destino do africano: a importação dele tinha como objetivo a escravidão, assim como aos seus descendentes. A igreja aconselhava, de um lado, a benevolência aos senhores, cujo pecado era a crueldade, e, por outro, a resignação aos escravos, que pecavam com a revolta.

A violência caracterizou todo esse processo que deslocou os africanos para o novo mundo. Os negros eram capturados, arrancados de suas casas e famílias e, em condições subumanas, transportados em navios numa viagem sem volta na qual milhares sucumbiam. Os que resistiam eram levados para terras distantes, vendidos e obrigados a executar toda espécie de atividade no cativeiro. Nas longas travessias a bordo dos navios negreiros a mortalidade grassava, seja por epidemias, rebeliões ou suicídios.

O historiador Manolo Florentino chama a atenção para um aspecto da organização jurídica da sociedade colonial que constituía o escravo como um bem material à exceção de caso de transgressão da lei. Ele observa que “têm razão os historiadores que consideram que o primeiro ato humano do escravo é o crime – sintetizado, por exemplo, no roubo, no assassinato de senhores ou na fuga e na formação de quilombos. A legislação cuidou, é verdade, de regular o seu uso, como normalmente acontece com outros tipos de propriedade. Mas apenas reconhecia humanidade no escravo por ocasião do crime, pois, afinal, nenhuma outra propriedade é punível”.

Esse foi um dos paradoxos que se impôs na relação senhor – escravo, uma vez que na proporção em que castigos físicos, punições e humilhações eram impingidos aos negros, a resistência à escravidão, e, portanto, a humanidade dos escravos, se colocava de forma definitiva na história dos africanos nas colônias da América.

Do cativeiro ao mocambo

A resistência africana à chibata do sistema colonial se deu de diversas formas. Os escravos podiam se rebelar individual ou coletivamente e as ações mais comuns iam desde fazer “corpo mole” no trabalho, doenças fingidas, quebrar ferramentas, incendiar plantações, agredir senhores e feitores até cometer aborto e suicídio. Entretanto um tipo de resistência muito característico de diversas formas de trabalho forçado é a fuga, que poderia levar à formação de grupos de fugitivos. O local que reunia os negros fugidos do cativeiro, mas não só negros, eram os quilombos. De acordo com registros, em 1757, eram considerados quilombos os grupos acima de seis escravos que estivessem arranchados e fortificados com ânimo de se defenderem. Por definição, a palavra “quilombo”, de origem banto, significa acampamento ou fortaleza, que também podiam ser chamados de arranchamentos ou mocambos, e, assim, seus membros eram conhecidos como callombolas, quilombolas ou mocambeiros.

Os quilombos não tinham uma caracterização homogênea e a complexidade da sua organização variava muito em função da sua localização, do seu tamanho e dos seus integrantes. Efetivamente era um lugar de refúgio que abrigava os marginais da sociedade escravista. Nesse aspecto, além dos escravos fugidos, os quilombos recebiam desertores militares, prostitutas, criminosos foragidos, brancos pobres e indígenas que desejavam se livrar das barbaridades daquela sociedade e construir um espaço de resistência comum. Os quilombos eram espaços de rejeição ao sistema escravocrata, zonas alternativas de sobrevivência, defesa e segurança, paralelas ao próprio sistema.

Não é dispensável afirmarmos que no Brasil havia mais quilombos ao longo do território do que casas grandes e o mais conhecido foi o quilombo dos Palmares. Provavelmente por ser o maior e mais longevo de todos acabou se tornando símbolo da resistência negra. O quilombo dos Palmares ganhou corpo no imaginário, tanto dos escravos, quanto das autoridades coloniais, entretanto, a realidade da esmagadora maioria dos quilombos era bem distinta da descrita nos Palmares. O padrão dos quilombos nos séculos 17 e 18 era de pequenos acampamentos de poucos escravos que quase não dispunham de alimento, de forma que a sua sobrevivência se dava a partir de roubos e furtos e, em alguns deles se praticava a agricultura, a criação de animais e algum comércio.

Em consequência da atuação dos quilombolas, o sistema escravista revisou a legislação com o intuito de tentar impedir que novos Palmares vingassem no Brasil. Essa legislação especialmente militar tinha o papel de reprimir a proliferação tanto desse modelo de comunidade quanto das próprias fugas.

Em correspondências oficiais, autoridades reconheciam a dificuldade de manter o controle e a disciplina sobre os escravos e essa dificuldade aumentava quando se tratava de cidades grandes. No meio urbano, como no Rio de Janeiro, por exemplo, onde havia negros libertos, ficava difícil fazer essa distinção entre esses e os cativos que se misturavam aos trabalhadores da cidade. Vale mencionar, conforme Chalhoub, que na primeira metade do século 19 o Rio de Janeiro se tornou a cidade com maior número de escravos urbanos nas Américas. O fato é que, independente de ser no meio rural ou urbano, muitos dos escravos fugidos, organizados a partir de seus quilombos, burlavam o controle coercitivo do Estado escravista e chegavam o mais próximo possível da materialização do sentido de liberdade.

A quilombagem e as Ideias de liberdade

Na relação que se apresenta no sistema colonial entre senhor e escravo fica claro que, antes de ser propriedade, o escravo era um cativo de outro homem. A escravidão brasileira, como em qualquer parte do Novo Mundo, foi um sistema de exploração do trabalho baseado na posse sobre o trabalhador. Por esse motivo, o escravo que fugia cometia um ataque frontal ao direito de propriedade privada assegurado ao seu senhor. Nesse sentido, as autoridades coloniais, como já mencionamos, viviam com o temor de que essas ideias e experiências dos quilombolas, de resistência à escravidão, se disseminassem entre os cativos.

A luta de classes declarada a partir da resistência social, militar e econômica quilombola foi um enclave no regime escravista. A quilombagem foi um movimento de rebeldia permanente dirigido pelos escravizados radicalizados para combater violentamente a opressão e a repressão.

À rebeldia dos negros somavam-se as rebeldias dos outros oprimidos daquela sociedade, imprimindo, inclusive, a esse movimento características de um organismo de duplo poder na luta de classes dentro do modo de produção colonial.

Trotsky explica que o carácter de um regime político é diretamente determinado pela relação das classes oprimidas com as classes dirigentes. Reforça ainda que a unidade de poder, condição absoluta da estabilidade de um regime, subsiste enquanto a classe dominante consegue impor a toda a sociedade as suas formas econômicas e políticas como as únicas possíveis. Dessa forma, o regime de duplo poder surge a partir de um conflito irredutível das classes em relação a essa imposição.

Essencialmente, os quilombos, longe de serem organizações perfeitas, eram a materialização do questionamento de uma classe sobre a ordem vigente e contribuíram grandemente para o desgaste político, econômico e social que culminou na substituição do trabalho escravo pelo assalariado.

A experiência quilombola na sociedade escravagista nos ensina que a luta de classes permanece na gênese das nossas lutas desde a colônia. Mesmo com a abolição da escravidão em 1888, as mudanças estruturais na organização social do Brasil ainda não se efetivaram. Ao contrário, sendo a violência estrutural e a exclusão social características fundantes do Brasil, o critério racial, mais especificamente, a cor da pele continua classificando as pessoas hierarquicamente. Metaforicamente, os quilombos hoje são outros. Há muita luta, especialmente porque os quase quatrocentos anos de escravidão nas Américas ainda pesam sobre o trabalho, dito, livre.

Referências:

FLORENTINO, Manolo; AMANTINO, Márcia. Uma morfologia dos quilombos nas Américas, séculos XVI-XIX. Hist. cienc. saude-Manguinhos, vol.19, supl.1. Rio de Janeiro. Dec. 2012.

SILVA, Giselda e SILVA, José Vandeir da. Quilombos Brasileiros: Alguns aspectos da trajetória do negro no Brasil. Revista Mosaico, v7, n.2, p. 191-200. Jul/dez. 2014.

CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia da Letras, 1990.

DAMASCENO, Wagner Miqueias. Quilombos: os primeiros organismos de duplo poder do Brasil. Disponível em: https://www.copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1528816715_ARQUIVO_DAMASCENO-Quilombosorganismosded HYPERLINKhttps://www.copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1528816715_ARQUIVO_DAMASCENO-Quilombosorganismosdeduplopoder.pdf
https://www.copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1528816715_ARQUIVO_DAMASCENO-Quilombosorganismosdeduplopoder.pdf

TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap11.htm