Pouco antes de encerrar 2020, no dia 30 de dezembro, uma vitória da luta popular se deu na Argentina. O Senado do país aprovou (depois de já ter sido votada pela Câmara de Deputados) a lei que legaliza o aborto, com 39 votos a favor e 29 contra, após quinze horas de discussão e apesar da oposição firme da Igreja. Conquista que, não devemos esquecer, foi alcançada, pela primeira vez na história das mulheres trabalhadoras na Rússia revolucionária de 1917.
Do lado de fora do prédio do Senado, centenas de milhares de mulheres celebraram, após 15 anos, uma vitória conquistada nas ruas, com muita luta, greves, marchas e manifestações.
A “Marea Verde” venceu. E o slogan que ressoou naquela praça: “Com a luta nós conquistamos, com a luta vamos defendê-lo!”, nos demonstra a importância de nunca baixar a guarda diante de uma conquista dentro do capitalismo.
Esta vitória será um exemplo para toda a América Latina e para todos os movimentos que se desenvolvem em outros países nos quais o aborto é proibido.
Com esta lei, a Argentina junto com três outros países do continente (Uruguai, Cuba, Guiana e um dos estados do México, o da capital, Cidade do México), permite à mulher decidir sobre seu corpo e sobre o desejo de ser ou não mãe. Em outros países, permanecem restrições e condições muito complexas. Em alguns, como a Nicarágua, a República Dominicana e El Salvador, é proibido em qualquer caso e a simples suspeita de ter interrompido voluntariamente a gravidez é punida com pena de até 30 anos de prisão. Em outros, como no Brasil, é limitado apenas se colocar em risco a saúde da mulher ou em caso de estupro.
A alteração aprovada na Argentina prevê que toda mulher pode fazer um aborto nas primeiras 14 semanas, após a assinatura do consentimento. Antes da aprovação da nova lei, uma gravidez poderia ser interrompida voluntariamente apenas se fosse por estupro ou colocasse a vida de uma mulher em perigo.
A ILE, Interrupción Legal del Embarazo, foi introduzida em 2015 e estipulou que mulheres estupradas poderiam interromper a gravidez sem serem processadas, mas na verdade em muitas regiões do país a lei não foi cumprida ou era dificultada, obrigando as mulheres a recorrer ao aborto clandestino, arriscando suas vidas, serem punidas ou presas (dados de relatório de 2019 no país indicam que foram pelo menos 852 casos iniciados em tribunais contra mulheres que fizeram aborto).
Com a legalização do aborto, a Argentina acaba com o desespero das mulheres que precisariam ir aos hospitais depois de uma operação feita em segredo e em condições precárias e finalmente termina com as mortes por aborto clandestino. Só em 2020 foram 39 mil internamentos, além daqueles realizados em clínicas privadas.
Na Argentina, como no Brasil, a discussão não é sobre sim ou não, mas sobre legalidade ou ilegalidade do aborto, pois, na prática, ele existe. E tendo dinheiro, é feito de maneira mais segura e discreta.
A Igreja argentina, que se opôs à aprovação desta lei por todos os meios possíveis, ainda tem muita influência no país e um peso importante na vida das pessoas comuns. Mas nem mesmo os pedidos do Papa foram suficientes para intervir na decisão. A luta de massas impôs a devida laicidade do Estado.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro prontamente se manifestou em relação à decisão argentina. De forma hipócrita, reacionária e demagoga que lhe é típico, afirmou “lamentar profundamente pelas vidas das crianças argentinas” e que “no que depender de mim e do meu governo, o aborto jamais será aprovado em nosso solo”.
Colocar abaixo este governo é a tarefa urgente e necessária para varrer para o lixo da história esse moralismo reacionário e atrasado, e defender a vida das mulheres trabalhadoras.
Nos últimos meses o governo Bolsonaro tem tentado criar uma série de dificuldades para impedir o direito ao aborto mesmo em casos previstos em lei. Afirmando “proteger a vida dos inocentes”, desrespeita as próprias leis burguesas, fruto da luta das mulheres e tenta, apelando aos setores mais atrasados da população, manter sua aprovação a partir das questões morais.
Em um país em profunda crise econômica como a Argentina, tornada ainda mais incontrolável pela pandemia, a Igreja junto com o Estado desempenha uma política assistencialista, com centenas de cantinas que oferecem refeições aos que precisam de auxílio. Somada à tradição católica do país, derrotar o Papa e a Igreja não é pouca coisa.
A vitória da lei do aborto só foi possível porque o movimento partiu de uma demanda específica, a autodeterminação das mulheres, expandindo para demandas e palavras de ordem mais gerais.
A luta pela emancipação das mulheres se transformou, ao longo do tempo, na luta contra a exploração, as desigualdades sociais e de classe, o mau funcionamento do sistema de saúde e, de maneira mais geral, as políticas de austeridade levadas a cabo pelos últimos governos.
A conquista Argentina nos demonstra que a organização das massas e a luta de classes são as principais formas pelas quais seremos capazes de conquistar direitos e derrubar este sistema para sempre.