A enfermeira Cristiane, 43 anos, chegou em casa após um cansativo plantão. O caçula de quatro anos correu pelo corredor para abraçá-la. “Eu pensei: ‘vixe, e agora?’. Do nada apareceu meu marido Raimundo, também enfermeiro, e segurou o pequeno de última hora, sabe? Ele o abraçou e falou ‘Temos que esperar a mamãe se limpar.”
Cristiane contraiu a doença, mas teve sintomas mais leves, já Raimundo foi internado no começo de agosto e morreu no dia 10 daquele mês, deixando seus cinco filhos. “Ninguém ficou bem desde o início da pandemia. Era uma sensação iminente de estar com covid o tempo todo, sabe?”, conta Cristiane.
Ela se lembra do dia em que o marido, já se sentindo debilitado pela doença, mas sem conseguir ser admitido em nenhum hospital, pediu: “Me tira daqui eu não quero morrer em casa.” – reportagem do Jornal El País
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) caracterizou a Covid-19 como uma pandemia, a Itália já enfrentava o caos na saúde, o Brasil oficializava seus primeiros 69 casos de contaminação pelo novo coronavírus e, no dia seguinte, registrou seu primeiro óbito.
No dia 10 de março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro deu a seguinte declaração: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.” Hoje, após 1 ano de enfrentamento à pandemia, mais de 328 mil óbitos, chegando ao recorde diário de 3.950 mortes por covid, o presidente mantém o mesmo discurso.
A pandemia chegou quando o Sistema Único de Saúde (SUS) já apresentava os danos causados pela aprovação da EC 95, que congelou os gastos em saúde por vinte anos, e na vigência do governo que mais lhe atacou e retirou verbas. Em menos de dois anos de governo, Bolsonaro e o então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, com apoio de outras pastas, foram responsáveis pelo desmonte na Política de Atenção Básica, retrocessos no programa de combate à Aids, corte de verbas de incentivo às pesquisas, extinção do programa Mais Médicos e o ataque direto ao programa de combate à violência de gênero. Juntos, esses primeiros ataques empurraram o SUS para a beira do abismo.
O avanço da disseminação, a lentidão nas ações e a falta de planejamento estratégico e epidemiológico do Ministério da Saúde, aliados a medidas de combate ineficientes por parte dos governos, fez com que a covid-19 avançasse por todo o país e revelasse um sistema de saúde desfinanciado e sucateado. Logo o caos se instalou na rede de saúde e arremessou os profissionais num campo minado, sem condições mínimas de trabalho, levando a categoria ao esgotamento físico, mental, e à morte, diversos trabalhadores da saúde.
Entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2021 foram abertos 21.401 leitos de UTI dedicados exclusivamente ao atendimento de pacientes da Covid-19 em hospitais públicos e privados. Segundo a resolução do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), cada profissional de enfermagem pode assumir no máximo, durante o período de trabalho, 1,33 pacientes que necessitem de cuidados intensivos. Em grande parte dos hospitais públicos essa resolução não era seguida, nem mesmo antes da pandemia. Agora, com a superlotação de leitos de UTI e enfermaria e a deficiência do quadro de profissionais (em decorrência da falta de concursos públicos), os trabalhadores estão com mais sobrecarga. Alguns relatam realizar o trabalho que deveria ser de responsabilidade de três servidores.
Os profissionais de enfermagem, que já enfrentavam no dia a dia diversas condições inadequadas de trabalho, foram obrigados a conviver com um novo cenário ainda mais cruel: a exposição direta ao vírus sem os EPIS necessários, ou com materiais de péssima qualidade. Adoeceram, perderam colegas de trabalho, levaram o vírus para suas casas e, em muitos casos, assistiram à morte de seus companheiros, seus filhos, seus pais, avós e amigos.
A chegada da vacina contra a Covid-19, apesar de trazer alívio, também trouxe mais desgaste com a sobrecarga de trabalho aos profissionais de enfermagem, mais preocupação em lidar com os usuários insatisfeitos com a lentidão da campanha de vacina em nível nacional e as possíveis agressões em decorrência disso. Além da falta de vacinas, a dimensão da campanha preocupa pela falta de espaços físicos adequados, ambientes com biossegurança e profissionais capacitados.
O avanço da pandemia, com as novas ondas de contágio, trouxe mais riscos aos trabalhadores da saúde. O Brasil é responsável, hoje, pela morte de 23% dos profissionais de enfermagem no mundo. O Sistema de Saúde colapsou, as unidades estão lotadas, as filas por espera de leitos de UTIs só aumentam e cabe aos profissionais a triste e dolorosa tarefa de fazer escolhas que representam a manutenção da vida dos pacientes. Os trabalhadores da saúde estão exaustos, após um ano atuando na linha de frente contra a Covid-19, em ambientes de trabalho insalubres, muitas vezes improvisados, com rotinas desgastantes, férias suspensas, excesso de trabalho, jornadas ampliadas e o medo iminente da morte.
“Faltou oxigênio na UPA semana passada. Quando começou a acabar, os médicos passaram apontando quais pacientes podíamos manter e em quais leitos desligávamos, mas mantivemos as máscaras de oxigênio nas suas faces para não gerar desespero, quando acabou eles chamavam, sem entender – Enfermeira, eu não consigo respirar! Havíamos passado o dia todo avisando à gestão municipal que estava no limite, por sorte a carga chegou cerca de 8 minutos após o esgotamento, mas foram os 8 minutos mais apavorantes que eu vivi” relata uma profissional da enfermagem.
Os profissionais vivenciam cotidianamente o desgaste emocional trazido pelo esgotamento e precarização do sistema de saúde, convivendo diariamente com agentes estressores, medo e sensação de frustração, que ocasionam ansiedade, sofrimento e depressão. São inúmeros os relatos de aumento no consumo de álcool, tabaco, medicamentos e, consequentemente, os gastos extras com esses itens, além do aumento de despesa com transportes alternativos, alimentação e EPIs, são fatores responsáveis pela piora das condições de vida desses trabalhadores.
As trabalhadoras da saúde são mais vulneráveis ao contágio, 85% dos casos positivos reportados ao Cofen são do sexo feminino. As mulheres são a principal força de trabalho da saúde, representando 65% dos mais de seis milhões de profissionais dos setores público e privado no país. Elas sofrem ainda mais com as duplas e triplas jornadas de trabalho e maiores dificuldades no cumprimento das medidas de distanciamento social nas dinâmicas familiares, sem deixar de mencionar a defasagem remuneratória, que também é um fator de vulnerabilidade. No entanto, ao mesmo tempo em que as mulheres estão em maior número na linha de frente do combate à pandemia, elas perderam importantes apoios para o cuidado dos filhos, devido ao necessário fechamento de creches e escolas, e à importância de evitar o contato de crianças com avós, que fazem parte do grupo de risco. Também não receberam nenhum aporte dos patrões ou do governo para suas demandas,q nem aumento salarial que possa suprir os gastos.
O desmantelamento dos direitos trabalhistas realizado pelo Governo Federal, a lei das terceirizações, as privatizações e os baixos salários são fatores determinantes na vida dos trabalhadores da saúde, que precisam enfrentar rotinas de trabalho extenuantes.
Uma pesquisa recente, realizada pela Fiocruz, indica que 45% dos profissionais de saúde necessitam de mais de um emprego para sobreviver. Por outro lado, a ANS constatou que, nos três primeiros trimestres de 2020, as operadoras de saúde no segmento médico-hospitalar obtiveram um lucro líquido acumulado de 15 bilhões de reais, um resultado 66% maior em relação ao mesmo período em 2019, e 150% maior que os três primeiros trimestres de 2018. Os dados da pesquisa também indicam que 43,2% dos profissionais de saúde não se sentem protegidos no trabalho de enfrentamento à Covid-19, e o principal motivo, para 23% deles, está relacionado à falta, à escassez e à inadequação do uso de EPIs (64% revelaram a necessidade de improvisar equipamentos).
De acordo com o Observatório do Cofen, foram notificados 51.361 casos de Covid-19 entre os profissionais de enfermagem. Até o momento, 723 enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem perderam a vida, 67,5% deles, mulheres. Só no estado de São Paulo ocorreram 97 óbitos de profissionais em decorrência da Covid-19.
Os trabalhadores sofrem e morrem enquanto o governo retira mais direitos, avança com as contrarreformas, aumentando os lucros do sistema financeiro e da burguesia. A exemplo disso, o veto presidencial, derrubado pelo senado, ao direito à indenização dos profissionais da saúde mortos ou incapacitados permanentemente em virtude do contato com o novo coronavírus durante exercício da profissão. O governo Bolsonaro também condicionou a aprovação da PEC 186/2019 ao retorno do auxílio emergencial. A PEC Emergencial, como é mais conhecida, é parte da proposta de reforma administrativa do governo, e pretende congelar os salários de milhões de servidores públicos municipais, estaduais e federais, inclusive os profissionais de saúde, criando mais um mecanismo de exploração dos trabalhadores e redução de direitos.
Perante o sofrimento da classe trabalhadora, é imprescindível a luta por melhorias nas condições de trabalho dos profissionais de saúde, por medidas sérias de contenção da pandemia, pela vacinação de toda a população, pela realização de concursos públicos, por toda verba necessária ao SUS, pelo direito à saúde e pela manutenção da vida dos trabalhadores. Diante de tudo que foi exposto, é urgente e necessária a derrubada do governo Bolsonaro já, e a construção de um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais.
- Vacina para todos!
- Lockdown já!
- Abaixo o governo Bolsonaro, já!