A crise revolucionária na Catalunha está apertando o espaço de Unidos Podemos a níveis sem precedentes desde sua conformação. A erupção das massas catalães no processo, as pressões da opinião pública burguesa e a repressão desencadeada pelo regime estão colocando à prova a direção do movimento e suas teses políticas. Em outros artigos nós destacamos as reações das direções de Podemos e a Izquierda Unida (IU) perante essa crise, as quais estão desempenhando um papel negativo em nossa opinião ao contribuir para o isolamento do movimento popular de massas pela autodeterminação da Catalunha e a estabilização do regime de 1978. Neste artigo vamos nos concentrar nas consequências nesta crise interna de Podemos e em seu discurso sobre a questão nacional e o regime de 1978.
A decisão do Conselho Cidadão Estatal (CCE) de intervir no Podem Catalunya é um ataque à democracia interna de Podemos. Nenhuma diferença política deve ser resolvida com medidas organizativas, nem passando por cima de nenhum órgão ou dirigente, menos ainda quando as posições da direção de Podem foram referendadas pelos filiados em duas ocasiões (consultas sobre a integração da Catalunha em Comú – coligação de partidos catalanistas – e sobre a participação no referendo catalão do dia 1º de outubro). Essa intervenção veio acompanhada de uma campanha de descrédito nos meios de comunicação e nas redes sociais, baseada em argumentos falsos ou enganosos, como por exemplo que Albano Duarte Fachín e outros deputados de Podem no parlamento votaram “sim” para a proclamação de independência ou que buscavam um bloqueio eleitoral com a CUP ou ERC. Em diferentes aparições públicas, Fachín não se referiu a nenhum bloqueio eleitoral com o independentismo, mas sim a um bloqueio social para fazer frente à repressão do Estado e às intervenções das instituições catalães. Curiosamente, em seu aparecimento posterior ao encarceramento de parte do Governo da Generalitat, a prefeita de Barcelona, Ada Colau, chamou uma frente comum similar ao que fora proposto por Fachín, sem que isso houvesse motivado uma reação adversa por parte da direção de Podemos.
Com esse movimento, a direção de Podemos busca forçar o pacto eleitoral com Catalunha em Cumú, contornando o debate programático e a elaboração das listas, assim como mover a uma equipe dirigente, que tenha importantes diferenças com o Estado, inclusive desde antes do surgimento da crise catalã. Dizem querer dar voz à militância, mas por causa do fechamento da questão e da pressa do prazo, esse é, na verdade, parte do desenvolvimento do programa, das listas e das alianças. Ao mesmo tempo, foi iniciada uma campanha nos círculos por parte de companheiros afins da direção estatal para que Fachín e a direção de Podem sejam cessados e que se convoque uma nova assembleia cidadã na Catalunha. Isso em teoria não poderia ser possível até que seja transcorrido dezoito meses da anterior, que aconteceu em julho de 2016, mas isso não é assim.
Um elemento que passou despercebido foi a modificação dos estatutos a respeito do documento organizativo aprovado em Vistalegre, o que motivou um grave rompimento entre o CCE e a Comissão de Garantias. Nesses novos estatutos, inclui-se um artigo que faculta à direção estatal convocar as assembleias cidadãs dos diferentes territórios de maneira unilateral, o que levaria a convocá-los em áreas onde há fortes desacordos com a direção territorial, como ocorre atualmente na Catalunha, ou, a outro nível, em Andaluzia. Nós marxistas não fazemos um fetiche dos modelos organizativos, não temos uma preferência especial pelo modelo de organização federativo ou confederativo, mas sim, somo contrários a dar aos aparatos um poder excessivo e, menos ainda, que o mesmo se utilize disso para resolver problemas políticos com medida burocráticas, secessões e expulsões e não com um verdadeiro debate político com a participação da militância.
Outra crise surgiu no partido com o comunicado dos companheiros de Anticapitalistas e a reação desmesurada de Pablo Iglesias e da direção estatal ante o mesmo. O comunicado, de forma ambígua e pouco precisa, dá por proclamada a República Catalã e chama a aumentar o impulso da constituinte catalã para o resto do Estado. Isso, segundo o companheiro Pablo Iglesias, os situam “politicamente fora de Podemos”, o que não tem precedentes na curta história da organização, o que colocou uma pressão enorme sobre os membros dessa corrente e em especial sobre seus cargos públicos e orgânicos de Podemos. Os companheiros Tereza Rodríguez, coordenadora general de Podemos Andaluzia, e o prefeito de Cádiz José María Gonzáles “Kichi”, se distanciaram dessa afirmação, que, juntamente com a atitude ambígua do companheiro Miguel Urban, membro do CCE e do Conselho de Coordenação, está provocando uma aguda crise na corrente Anticapitalistas.
O debate não é se reconhecemos ou não a declaração formal de independência, que não foi acompanhada de medidas reais para que fosse levada a cabo, mas sim que o processo constituinte catalão, que vai contra o coração do regime de 1978, incluída a monarquia, é uma oportunidade para que Unidos Podemos impulsione um processo constituinte no resto do Estado. Nós pensamos assim, e por isso os companheiros de Anticapitalistas têm nosso apoio e nossa solidariedade. Não se pode apontar ao discrepante. Podemos é um partido plural, um partido “de aluvião”, no qual encontramos muitas pessoas e coletivos com tradições diversas e políticas anteriores de militâncias, sindicais e sociais. Temos tido debates intensos nas assembleias cidadãs estatais e regionais, nos círculos e em muitos âmbitos nos quais foram contrastadas as ideias socialdemocratas, “cidadanistas” e marxistas, e sempre tendeu-se a resolver as diferenças democraticamente com o voto dos filiados. Apontar a porta de saída a companheiros que participaram desde o principio na construção do Podemos não é a forma de construir uma organização saudável e duradoura.
Em qualquer organização política saudável, as minorias têm o direito de expressar sua opinião tanto organicamente como publicamente, através de seus próprios meios e dos meios do partido. É um princípio democrático básico. Negar esse direito é converter o partido em um simples maquinário eleitoral e burocrático que afoga a participação das bases e esse não é o mandato de Vistalegre II. Por azar, esse giro autoritário da direção aparece em um momento em que a vida interna da organização segue sem recuperar o tom dos primeiros tempos, com círculos reduzidos e com escassa participação e escasso debate, e com os dirigentes em cargos públicos rodeados de uma corte de aduladores e gananciosos que desincentivam a participação dos elementos mais combativos e atuantes na luta e na mobilização social.
Ao mesmo tempo, a crise catalã e a leitura errônea feita pela administração estatal estão fortalecendo a tendência nacionalista espanhola no seio de Podemos, insistindo na “ressignificação do significado de Pátria”, na renúncia aos símbolos republicanos e da esquerda e na legitimação da bandeira monárquica, e em uma linguagem cada vez mais distante das aspirações e das necessidades da base social de Unidos Podemos, composta pela vanguarda da classe trabalhadora, a juventude. E as camadas médias progressistas golpeadas pela crise. Essa tendência nacionalista sempre esteve presente, mas se tornou mais aguda nos últimos tempos, em contraste com as posturas mais corretas diante a questão catalã e a crise do regime que expressaram os companheiros de Anticapitalistas e Albano Dante Fachín. Nós sempre advertimos que, sem a participação permanente de uma base militante formada, é alto o perigo de uma adaptação de nossos representantes públicos à lógica do parlamentarismo burguês, sob as pressões da opinião pública burguesa e do aparato do Estado. Não podemos retroceder, temos que recuperar o discurso constituinte e de classe que triunfou em Vistalegre II para que Podemos seja uma verdadeira ferramenta de emancipação para os oprimidos deste país.
Artigo publicado em 05 de novembro no site de Lucha de Clases, seção espanhola da CMI, sob o título “¿A dónde va Podemos? – En defensa de la democracia interna y de una política de clase“.
Tradução Gustavo Benassi.