Rio de Janeiro: Carnaval e Capital

O Carnaval é vendido como “a maior festa popular do mundo”. Mas, será verdade? O que ele guarda de popular e o que entrega às regras do mercado? Este artigo se debruça sobe seu evento mais emblemático: o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro.

No artigo que segue, será demonstrada a tensão resultante dos interesses de classe e suas conseqüências nas produções culturais de origem legitimamente popular. Estas tensões se dão através da necessidade legítima de todo ser humano manifestar-se de forma lúdica e criativa (a cultura popular) concorrendo diretamente com o interesse das classes dominantes no sistema capitalista de apropriar-se das criações humanas como forma de obtenção de lucro e acúmulo de riqueza. Sendo expressão popular tida como exemplar da cultura brasileira, o carnaval carioca será o objeto desta demonstração de que o capitalismo tem a capacidade, enquanto sistema, de assimilar toda criação humana, transformando-a em mercadoria.

Da definição de cultura e arte popular

Partindo da definição de cultura como “o conjunto de conhecimentos, comportamentos, linguagem e procedimentos de um povo, uma sociedade, grupo social ou civilização”, podemos entender uma sub-categoria, a cultura popular, como toda expressão criada pelos extratos populares de uma sociedade, com a finalidade de suprir suas próprias necessidades, quer no campo simbólico (histórias, lendas, danças, música, etc.), quer no campo material (vestuário, alimentação, utensílios decorativos e de uso diário, etc.). A legitimidade da cultura popular, não elimina que ela possa nascer da síntese de outras culturas e povos, ou mesmo receber influência de culturas que não representem a comunidade do criador. A assimilação de outras influências é uma constante em qualquer cultura ou povo que não se encontre completamente isolado do resto do mundo, posto que a cultura é sempre viva e dinâmica. Estas assimilações podem se dar tanto através de trocas espontâneas que beneficiem as duas culturas, como através de processos de dominações, onde povos praticam guerras, invasões e/ou dominação econômica e política de outros povos.

Ocorrem assim dois fenômenos simultâneos que os antropólogos chamam de aculturação e enculturação. A enculturação é o processo onde a cultura dominante tenta se sobrepor à cultura dominada e prevalecer sobre ela. A aculturação é o processo onde o dominado perde parte de sua cultura originária pelo esvaziamento das suas próprias tradições, propiciando a substituição e preenchimento desta lacuna pela cultura dominante. Por mais sistemática que se dê a dominação, a cultura dominante nunca se escreve em uma “página em branco”; antes se sobrescreve a traços da cultura original que ela não consegue apagar. Enculturação e aculturação não são plenas, estão sempre em tensão dialética.

O processo histórico do Brasil, desde a colônia até hoje, possui um número imenso de ocorrências de aculturações e enculturações. Por exemplo, o chamado sincretismo religioso, onde os então escravos se viram obrigados a assimilar a religião cristã dos portugueses e, para não renegar seus cultos ancestrais, passaram a associar as imagens dos santos católicos a seus deuses, e no culto a esses deuses mantinham alguns procedimentos de seus rituais ancestrais, ao mesmo tempo que praticavam procedimentos cristãos.

Apropriações burguesas da cultura popular

Ao longo do séc. XX, com a crescente urbanização dos centros habitacionais concomitante ao êxodo rural, a organização social sofre intensa modificação no Brasil, aumentando a concentração das pessoas nas grandes cidades. Ainda no início do séc. XX era comum a associação de pessoas dos extratos populares para realização de festas e comemorações segundo suas tradições herdadas, mesmo nas grandes cidades.

Este artigo pretende demonstrar, através de uma breve análise das escolas de samba do Rio de Janeiro, como uma manifestação específica, o carnaval carioca, caminhou de expressão legítima de festas populares a excelente negócio do ponto de vista do capital, o que o levou a uma homogeneização cada vez maior daquilo que um dia foi expressão cultural singular de comunidades distintas.

Típica expressão popular carioca, as escolas de samba tornam-se documentadas em jornais a partir da década de 30. Foi em 1932 que o então prefeito carioca Pedro Ernesto concedeu subvenções às agremiações carnavalescas desde que elas se registrassem junto à polícia, ao perceber que elas congregavam as massas populares. Esta medida oficializou os desfiles de carnaval que, anteriormente sofriam perseguição policial, que via com desconfiança grupos de indivíduos oriundos dos morros e das classes pobres ocupando as ruas da cidade.

Até então a antiga forma do samba se dava pela sucessão estrofe/improviso, comum às manifestações folclóricas brasileiras. A estrofe era cantada três vezes: a primeira sem acompanhamento, a segunda com instrumentos de corda e a terceira com acompanhamento da percussão, junto ao coro cantado. Na seqüência cantavam os improvisadores sem os instrumentos, que só retornavam na repetição da estrofe.

Como comenta o autor Hermano Vianna no livro “O mistério do samba”, nos anos 30 cria-se o mito da “descoberta” do samba e sua transformação em símbolo nacional. Ao contrário da proposta de Mário de Andrade no “Ensaio sobre música brasileira”, que propunha a contribuição das músicas de todas as regiões e etnias do país para o estabelecimento da identidade nacional.

Nesta mesma época o samba começa a sofrer transformações que se consolidariam na década de 40, com a criação do samba-enredo, que se caracteriza por uma forma mais próxima da canção (de origem européia) e

“pelo aparecimento de um poema musical descritivo com caráter de exaltação patriótica (…)”,
José Ramos Tinhorão, Pequena História da Música Popular/

Coincide assim com o processo de modernização do Brasil da era Vargas a primeira domesticação das escolas de samba, pela interferência do Estado, ao conceder autorizações e subvenções (verbas). Como afirmou Karl Marx em “A ideologia Alemã”: “o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns”.

Por exemplo, em 1935, o delegado Dulcídio Gonçalves nega o registro da escola “Vai como Pode”, da estrada da Portela. O nome indicava a origem simples dos componentes da escola, mas poderia desagradar a classe média urbana. Assim, o próprio delegado batizou a escola como “Grêmio Recreativo Escola de Samba da Portela”.

Ao explicar tal evento J. R. Tinhorão, na obra acima citada, conclui :

“(..) E como todas escolas seriam também desse ano em diante solicitadas a colaborar com a propaganda patriótica oficial, eminentemente ufanista, iniciou-se a tradição da escolha de enredos capazes de estimular o amor popular pelos símbolos da pátria e as glórias nacionais”.

Solicitação tornado oficial em 1939, quando o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, fundado em 27/12/1939, em pleno Estado Novo), limita os temas abordados pelos sambas-enredo, que deveriam obrigatoriamente tratar apenas sobre a história do Brasil. Sendo o DIP um órgão de censura, obviamente a história deveria ser descrita ou retratada de modo ufanista, jamais crítico.

Estava dado o pontapé inicial da espoliação de uma festa popular. Os contraditórios processos de aculturação e enculturação, concorrendo dialeticamente, vão transformando o samba-enredo poética e musicalmente, ao mesmo tempo que se instala nas comunidades do morro a divisão social do trabalho na elaboração do carnaval.

Esta divisão social do trabalho vai levando a uma crescente profissionalização da estrutura do carnaval do Rio, onde o povo, que inicialmente criava ativamente uma festa para ele mesmo, passa a produzir um espetáculo para consumidores passivos, coordenado por um elemento: o carnavalesco.

O termo carnavalesco, que inicialmente significava “próprio do carnaval, relativo ao carnaval, folião do carnaval” muda de significado na década de 60. Tornou-se o elemento que pensa no enredo, inclusive interferindo nas letras dos sambas, desenha figurinos para as fantasias e os distribui nas alas, indica tecido a ser usado, desenha alegorias e adereços de mão, acompanha a montagem e participa dos ensaios das alas.

Foi definido pela revista Veja, em 30/02/1980, como uma “espécie de comandante-em-chefe do desfile”.
Segundo a autora Ana Maria Rodrigues, em “Samba negro, espoliação branca”, da editora Hucitec :

“Este ‘carnavalesco’, ensaia todos os componentes pessoalmente. Como se fora o diretor de uma imensa peça teatral, exige que todos ajam exatamente como ele deseja : ‘Eu quero que vocês cantem para o último espectador da arquibancada. Para ficar bem claro isso, é preciso abrir os braços’.
Como demonstra, está preocupado com o espectador, não com o componente. Deste é exigido o máximo de resistência : muitos ainda guardam feridas no corpo pelo peso excessivo que tiveram que carregar nas costas, durante todo o desfile”.

Embora demonstre claramente a redução dos passistas a meros objetos, dispostos pela vontade do carnavalesco, e não mais o criador de uma festa popular para si mesmo, a análise da autora pode levar a pensar o carnavalesco como um sujeito que determina o que todos devem fazer segundo sua vontade. Mas, ao contrário do que se pode pensar, ele é apenas um intermediário dos interesses das empresas que exploram a festa do carnaval, a viabilizar a materialização eficiente desta festa enquanto produto. Um gerente do carnaval.

Apenas para citar algumas dessas empresas que exploram o carnaval, temos hoje agências de turismo que vendem pacotes no Brasil e no exterior, redes de TV que transmitem os desfiles e a indústria fonográfica que lança os cds com os samba enredos. Inclusive, a participação desta última obrigou as escolas a realizarem concursos com os compositores dos sambas-enredo já no segundo semestre do ano. Assim o enredo fica pronto para a gravação e lançamento em produto vendável no final do ano, aproveitando o calendário das festas como opção de presente. Registre-se ainda que um samba vencedor pode render um prêmio de até R$ 3.000.000,00, o que cria verdadeiras comissões de compositores, para realizar um samba-enredo de encomenda para carnavalescos e presidentes de escola de samba.

Para tornar o carnaval mais atrativo aos espectadores, quer os que assistem ao vivo, quer os que acompanham em suas casas pela televisão, surge um crescente número de regras: um número mínimo de carros alegóricos, número de alas de passistas, número de integrantes das alas e baterias, etc. Estas regras, somadas às necessidades das emissoras de limitar o tempo de desfile, impuseram às baterias das escolas que acelerassem a música até torná-la uma marcha, para que os foliões não mais sambassem, mas marchassem apressadamente na avenida, dando conta das duas horas de tempo de desfile reservados a cada escola. Se antes as escolas podiam ser diferenciadas mesmo por quem não as visse, pois cada bateria se notabilizava desde os timbres dos instrumentos, diferentes em cada escola, mais a forma específica delas ao tocá-los, hoje todas se parecem cada vez mais, a exemplo dos produtos homogeneizados para consumo fácil do capital.

Esta necessidade de desfilar rapidamente levou a um memorável evento no carnaval de 2005, quando a velha guarda da Portela (representantes da tradição da escola), não pode desfilar porque o seu carro alegórico quebrou. Nem se cogitou que fizessem o trajeto a pé porque a rapidez do desfile representaria um esforço impossível para eles e ainda poderia atrasar o desfile da escola, que perderia pontos. O conceito de eficiência sob a ótica do capital se sobrepôs à herança cultural legítima de um povo.

Conclusão

Assim espero ter demonstrado, mesmo que muito abreviadamente, como se dá o processo onde o capitalismo vai se apropriando da cultura popular e transformando-a para torna-la uma mercadoria lucrativa. Espero contribuir para despertar da consciência a respeito das muitas formas de dominação dadas nesta sociedade, que precisam ainda de análises mais aprofundadas e debates sérios, uma vez que não é só no momento trabalhado, mas até em nossas aparentes horas livres, que os tentáculos do capitalismo tentam nos subjugar. Elevar o nível de consciência para traçar estratégias de combate a mais esta forma de violência, sabendo que a superação definitiva destas contradições, pode se dar apenas com a superação do sistema capitalista como um todo.

Porém, uma questão mais imediata se coloca e, ainda que demasiado complexa, é algo que nós, marxistas, não podemos nos furtar. Como garantir a legítima expressão popular, na cultura e nas artes, sem isolar as comunidades produtoras do resto do mundo?

Estas propostas de isolamento, românticas ou reacionárias, por mais absurdas que pareçam, são hoje comuns aos folcloristas e outros idealizadores da cultura popular, que pretendem “congelar” determinados grupos sociais no tempo, alegando que se estes se modernizarem, comprometerão sua originalidade e singularidade. Como aqueles que lutam pela construção de uma sociedade socialista, devemos garantir o acesso de todos à infra-estrutura material em moradia, transporte, saúde, educação, cultura e comunicação. Por possuirmos um método dialético de análise e formulação, não podemos entender o ingresso de seres humanos às vantagens do séc. XXI, mesmo as mais simples vantagens materiais, como um comprometimento de sua subjetividade, mas antes como garantia da expressão de sua humanidade na plenitude. Até porque uma verdadeira subjetividade encontra-se em permanente construção, para assim dar conta das muitas transformações objetivas que a experiência da vida apresenta a um mesmo sujeito.

Por entender que uma herança cultural rica e diversificada como a brasileira não pode ser menosprezada na formulação de uma política cultural comprometida com a classe trabalhadora e o conjunto do proletariado, entendo que a defesa desta diversidade torna-se obrigação a todo militante marxista. E também mais um motivo para que todo aquele que defende a diversidade cultural brasileira, o faça por uma abordagem marxista, de método de análise e de formulações. Porque sabemos que o esvaziamento da identidade dos indivíduos se deve ao processo necessário do capitalismo de transformar a todos em coisas, e assim poder igualá-los como mercadorias na medida de valor de troca vigente. Toda pessoa que luta pela emancipação dos seres humanos das correntes que os prendem, deve se colocar a tarefa do socialismo como o fim da pré-história humana, para que finalmente tarefas históricas se coloquem a todos os membros da sociedade.

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