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20 de Novembro da ponte pra cá

Hoje, 20/11, o Movimento Negro Socialista (MNS) participa dos diversos atos e atividades que marcam o “Dia da Consciência Negra”. Confira o panfleto que estamos distribuindo em todo o país e leia abaixo a declaração do MNS.

“O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro” (O Capital, Vol I, K. Marx)

Distante dos iluminados salões e auditórios onde a pequena burguesia negra profere suas palestras e lança seus livros, esses que ditarão a mais nova moda “antirracista”, da ponte pra cá a população negra segue em bairros proletários mal iluminados, sofrendo amargamente com o desemprego, a piora das condições de vida e a violência policial.Da ponte pra cá o centro da questão não é quais termos devem ser retirados ou incluídos do vocabulário, mas de como combater as mazelas que o sistema capitalista impõe ao conjunto da classe trabalhadora e à sua população negra.

No dia 20 de Novembro é comemorada a “consciência negra”, pois neste mesmo dia, em 1695, foi morto Zumbi dos Palmares, líder da maior expressão da luta contra o escravismo: o Quilombo dos Palmares. Localizado no coração do Brasil Colonial, na próspera Capitania de Pernambuco, o conjunto de povoados tornou-se o maior símbolo da luta contra o racismo no Brasil. É preciso extrair as lições dos quilombolas de Palmares e de seu principal líder, Zumbi, para discutir a luta atual contra o racismo.

É preciso se distanciar do mero simbolismo que serve apenas aos diletantes acadêmicos e que encobre toda a experiência passada da luta dos negros no Brasil e sua principal lição: a luta contra o racismo é uma luta aberta contra todo sistema de classes.

Os quilombos, especialmente Palmares, foram uma expressão da resistência negra contra a escravidão, mas essa experiência não escapou de certas contradições. Afinal, os homens fazem sua própria história, mas não de livre e espontânea vontade. Fazem sob as determinações históricas que se impõem.

O Quilombo de Palmares chegou a possuir mais de 20 mil habitantes com sua própria organização política. Os mocambos de guerra que se estendiam do pé da Serra da Barriga até o Rio Ipojuca reproduziam uma forma de organização independente do sistema escravista, porém baseada em sociedades tribais ou impérios africanos, fundamentalmente o Reino do Congo. Isso significa que a própria constituição dos quilombos não era correspondente a um ideal de república libertária, nem poderia ser, pois os negros reproduziram as sociedades das quais conheciam.

Parte sul da Capitania de Pernambuco, com representação do Quilombo dos Palmares – Imagem: Domínio público

Mas isso não reduz a experiência de luta dos escravizados, e a maior lição que a luta dos quilombolas da Serra da Barriga dá para a luta contra o racismo no nosso tempo é o fato de que o confronto contra o racismo é um confronto aberto contra o sistema capitalista.

Dessa forma, os quilombos foram uma clara expressão da ideia de que é impossível para os negros no Brasil lutarem por integração em uma sociedade estruturada pelo capital. A solução definitiva se mostrou — em todos os combates de fato consequentes — um confronto direto contra as classes dominantes.

No momento em que a conciliação pareceu possível, quando, em 1678, Pedro de Almeida, então governador da Capitania de Pernambuco, propôs a Ganga Zumba, então dirigente de Palmares, um acordo de paz, a história foi mais uma vez imperiosa e mostrou que não havia possibilidade de conciliação.

O acordo de paz com o governo da Capitania envolvia a transferência dos quilombolas para o Vale do Cucaú, região próxima à cidade de Sirinhaém (PE), e a não aceitação de qualquer escravo fugitivo que chegasse ao local.

Essa tentativa de coexistência pacífica com o escravismo não foi bem aceita por boa parte dos quilombolas, que acabaram — sob a direção de Zumbi — permanecendo em Palmares. Os quilombolas não queriam integrar-se ao sistema que os reduziu à mercadoria, mas derrubá-lo.

O acordo de paz significaria trair a maior parte dos negros que permaneciam ainda escravizados nos engenhos de cana, como ainda criaria condições de isolamento para os negros na região do vale, sendo mais fácil um cerco do governo e a destruição da resistência.

Não existia a possibilidade para os negros de se integrar em um sistema onde eles próprios eram a mercadoria, os mais lesados na divisão do trabalho, feitos apenas para gerar prole e trabalhar até onde suas forças aguentassem. Por isso, não havia margem para integração!

Mesmo com o fim da escravidão em 1888, a classe dominante precisava manter a divisão entre trabalhadores negros e brancos, uma forma de reduzir o custo geral da mão de obra. O racismo sempre foi e continua a ser uma política construída pelo capitalismo para dividir a classe operária e impedir a sua unidade.

Aquilo que configura a condição específica do proletário negro é, justamente, o fato de ser a parcela que sofre com mais intensidade a pauperização da classe trabalhadora. Posto na condição de proletário após 388 anos de escravidão, foi jogado à concorrência com os trabalhadores brancos e às condições mais insalubres de trabalho, desemprego, segregação habitacional e repressão policial.

Essa divisão entre negros e brancos é essencial para o capital por uma questão, antes de mais nada, de concorrência da mão de obra. Como Marx explicou em “Trabalho Assalariado e Capital”, o valor da força de trabalho é determinado tal qual o valor de toda mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário para a produção da mercadoria. Quão mais deteriorada são as condições de vida do negro, mais barato é a reprodução de sua vida, por conseguinte, menos vale a sua força de trabalho e mais barato serão seus salários.

Como os salários também são determinados numa relação de oferta e demanda, gerando concorrência entre os trabalhadores, a menor valorização do trabalho do trabalhador negro exerce uma pressão para o trabalhador branco, a pressão para a redução de salários para o conjunto da classe.

Por isso, na medida em que os negros se levantaram, após a abolição, por condições dignas de vida e de trabalho, se puseram lado a lado com os demais trabalhadores e chocaram-se diretamente contra o capitalismo. A luta contra o desemprego, contra a violência policial, pelas melhores condições de vida etc., não era uma luta por uma “integração verdadeira” do negro no capitalismo, mas uma luta contra o sistema. Um exemplo disso no Brasil é a formação do Movimento Negro Unificado (MNU), que tem sua história ligada às greves do ABC paulista nos anos 70 e 80.

Dar condições dignas à massa negra choca-se diretamente contra os interesses da burguesia. No entanto, se a política for apenas para uns poucos representantes negros e não para o conjunto da população negra, a coisa muda de figura. Eis que a burguesia dá um golpe de mestre.

Como resposta à luta pelos Direitos Civis nos EUA nos anos 60, a burguesia americana, representada pelos partidos Republicano e Democrata, apresenta as políticas afirmativas como forma de cooptar os intelectuais e dividir o movimento negro.

Não é estranho pensar que o movimento negro, hoje influenciado por ideias da ideologia dominante, passe a acreditar que é possível que haja integração. Afinal, os mesmos representantes do movimento negro começaram a compor uma pequena burguesia negra, ocupando cargos acadêmicos, governamentais etc., mesmo que o conjunto da classe trabalhadora negra permanecesse marginalizada. Para aqueles poucos, é possível a sonhada integração.               

Todo o histórico da luta dos negros após a abolição foi de enfrentamento direto com o capital. Na medida em que o negro exigia condições básicas para toda a população negra, via-se lado a lado com o movimento operário. Assim, é preciso compreender que o trabalhador branco é o verdadeiro aliado do trabalhador negro, não o pequeno-burguês negro – a não ser que este tenha feito uma opção de classe pelos trabalhadores.

No Brasil, as cotas raciais em universidades públicas são apresentadas como política central para combater o racismo. Essa medida parte das chamadas políticas afirmativas. Ela foi implementada no Brasil como lei em 2012, mas já era gestada como discussão desde 2001, quando a ONU organizou a Conferência Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância

Como já explicamos, as políticas afirmativas tiveram origem nos EUA como forma de contrapor a luta pelos direitos civis universais. Aqui no Brasil não era diferente, para o governo do PT, frente à crise do sistema capitalista e sua capitulação, não era possível promover a universalização do ensino superior sem confrontar a dívida pública e a burguesia. Para o PT, as cotas ajudaram a dar uma máscara progressista de “democratização do ensino público”.

Essa política só pode ser útil à pequeníssima pequeno-burguesia negra que fala pelo conjunto do movimento negro. Para esta parcela, o programa é claro: criar uma elite negra. Isso pode soar um exagero à primeira vista, então é preciso que os próprios representantes tenham a voz:

“Os vociferantes críticos brasileiros do programa americano [das políticas afirmativas] ignoram os sucessos que os mais de 40 anos de políticas de ação afirmativa alcançaram. Se é verdade que as políticas não eliminaram o racismo nos EUA, pelo menos elas criaram condições para a acumulação de riqueza não só durante a vida de uma pessoa, mas também de geração para geração. Numa sociedade de classes, faz sentido tentar incluir as minorias, ou poderia haver um descontentamento ainda maior entre elas.”1

Estas palavras são de Vânia Penha Lopes, professora de Sociologia no Bloomfield College. Certamente alguém que se deu muito bem com as políticas afirmativas.

“Se aqui no Brasil a população negra tivesse tido acesso à boa educação e a universidades de qualidade, nós teríamos uma elite, digamos, e essa invisibilidade nos lugares-chave da nossa sociedade mudaria[…]”2, diz Kabengele Munanga, professor emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Lembremos também da fala da Iêda Leal, coordenadora nacional do MNU, na ocasião do Congresso da UNE de 2021, que citou a necessidade de “negros na cadeira da reitoria”, “negros no Congresso” e “negros nos espaços de poder”.

Ora, todos esses representantes do movimento negro buscam uma forma de integrar o negro na estrutura de poder do capital, não de derrubar o capitalismo. É impossível que o regime da propriedade privada promova bem-estar para a massa da população negra que ergueu sua estrutura durante a acumulação primitiva, apenas uns poucos são incluídos, e esses poucos traem todos os outros.

Esses poucos, que atualmente ditam o programa do movimento negro, comemoram a nova lei de cotas que garante a extensão da política por mais 10 anos, como também o primeiro acesso do cotista pela ampla concorrência e só depois pelas cotas, a prioridade de cotistas em bolsas de permanência estudantil, como também estende a reserva de vagas para a pós-graduação.

Nada mais é que a comemoração das migalhas. Da mesma forma que Ganga Zumba traiu os negros escravizados que ainda precisavam ser libertos, essa pequena burguesia negra trai o conjunto dos negros que são assolados pela escola pública falida e pelo desemprego, esses pelos quais a velha e a nova política de cotas não fará diferença alguma… esses que são a grande maioria dos negros brasileiros.

No Brasil, assim como nos EUA, a questão do racismo está diretamente ligada à questão da violência policial.

O Estado nada mais é que uma força coercitiva para garantir a dominação de classe. O conteúdo dessa dominação é a exploração do trabalho da classe trabalhadora, e no Brasil esse conteúdo é diretamente racista pela posição da classe trabalhadora negra na divisão do trabalho, sua profunda marginalização e falta de acesso ao mínimo necessário para garantir a dignidade.

Imagem: Mídia NINJA

O agrupamento massivo da classe trabalhadora nos bairros operários transforma essas regiões nos principais focos de batidas da polícia, seja para operações policiais, seja para a opressão diária da população com o recado de que o Estado está presente e pronto para agir caso seja necessário. Lenin conseguiu magistralmente sintetizar o que é o Estado para o marxismo, uma estrutura necessária em certo desenvolvimento de qualquer sociedade, na qual não é mais possível conciliar as contradições das classes em conflito.

“O Estado surge onde, quando e na medida em que as contradições de classe não podem objetivamente ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.”3

Nas periferias brasileiras essas contradições são mais que gritantes. Isso explica a presença da polícia e as constantes chacinas.

Os ideólogos da burguesia tentam mascarar essas ações como batidas para lidar com a criminalidade. Isso, porém, é completamente falso. Em primeiro lugar, não seria possível desmantelar uma organização criminosa destruindo esse ou aquele posto de venda de drogas, a única forma eficaz seria o ataque no centro financeiro dessas organizações.

A burguesia brasileira não está preocupada em resolver o problema do crime organizado, está preocupada em manter os antagonismos de classe intactos e, para isso, precisa manter a polícia nos bairros que são os maiores agrupamentos de trabalhadores.

Os trabalhadores das periferias são duplamente subjugados, tanto pelas organizações criminosas quanto pelo Estado, por meio de sua omissão em serviços públicos essenciais e pela presença da polícia que periodicamente assassina negros à luz do dia, geralmente buscando justificar sua ação por meio do discurso da “guerra contra o crime”.

A chacina na Baixada Santista é um exemplo de como esse tipo de discurso é utilizado para manter o pânico nos bairros operários. As favelas da Baixada Santista passaram por um verdadeiro período de pânico por causa de uma suposta vingança da polícia. A morte de um policial da rota, Patrick Reis, teria sido o motivo para a operação policial que se estendeu por 40 dias.

Em matéria da Agência Mural4, a jornalista Letycia Bond explica como a Human Rights Watch (HRW) concluiu em investigação independente que houve disparidades entre o que diziam os representantes da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo e os fatos acerca dos mortos pela operação, para muitos dos quais a polícia dispensou a perícia.

Ao final, tais casos serão engavetados e se somarão à infinidade de denúncias de ações terroristas do Estado brasileiro nas favelas do país. A ação da polícia é respaldada não apenas pela justificação dos representantes da pasta de segurança mas também por toda a estrutura jurídica do Estado burguês.

Esse sistema jurídico e prisional mantém o Brasil como o país com a terceira maior população carcerária do mundo, com 832 mil presos em 2022, um aumento de 257% em comparação com o ano de 2000. O problema da violência policial não será de maneira alguma resolvido por meio da Justiça ou das denúncias jornalísticas, mas na arena da luta de classes.

A classe trabalhadora, quando se coloca em luta contra a classe dominante, geralmente tem como uma das tarefas iniciais a destruição da polícia a substituição da força armada do Estado pelo povo em armas, um embrião da ditadura do proletariado sobre a burguesia. Os exemplos da história onde o proletariado tomou o poder deixam claro esse movimento e mostram que esta tarefa costuma ser realizada com certa velocidade e facilidade.

A Revolução Russa e a Comuna de Paris tiveram como elementos embrionários a dissolução da polícia e o armamento da população, o que só endossa as ideias da doutrina marxista acerca do caráter de classe da polícia no seio da sociedade burguesa e da necessidade de pôr um fim imediato a essa instituição apodrecida, e não de humanizá-la.

A ideia de que é necessário humanizar a polícia está presente na política de várias organizações que se dizem de esquerda, ou pior, que se dizem marxistas. Uma pauta frequente nas discussões desses senhores e senhoras é a desmilitarização da polícia, que parte do pressuposto de que essa instituição é violenta e desumana pela forma como funciona no regime militar.

Os marxistas não devem cair nessa armadilha, a polícia é apenas o braço armado do Estado, não importando o seu tipo ou como se organiza. Não nos esqueçamos do caso de Genivaldo dos Santos, que foi morto asfixiado não pela Polícia Militar, mas pela Polícia Rodoviária Federal, ou da Chacina de Jacarezinho, de 2021, executada pela Polícia Civil, pois apesar de a Polícia Militar se destacar como a mais racista, as outras também são.

A verdade é que, independente da forma como se organiza, a polícia é um organismo da classe dominante e a luta do movimento negro deve ser pelo fim da polícia, não pela sua “humanização”. E enquanto parte da esquerda clama a humanização da Polícia Militar, é aprovada a maior autonomia e poder da PM.

No dia 7 de novembro, o Senado aprovou o projeto de lei 3.045/2022, a lei orgânica de PMs e bombeiros. Essa lei interfere diretamente na forma como se organiza a polícia no país, aumentando sua autonomia frente aos entes civis e subordinando, por exemplo, a ouvidoria da polícia ao comandante geral. Até o momento, a ouvidoria é respaldada por lei onde o ouvidor e 80% de sua composição é integrada por órgãos da sociedade civil. Também não possui qualquer ligação orgânica com a Polícia Civil ou Militar, pelo menos na letra da lei.

Isso não apenas enfraquece a independência das ouvidorias como, na verdade, impede a criação de ouvidorias externas com a participação de entes da sociedade civil. Na prática, estende a autonomia e amplia as possibilidades de omissão em relação aos excessos da polícia: torturas, assassinatos, chacinas, corrupção intra-institucional etc. Embora possam existir as denúncias dos excessos, elas serão submetidas a essa instituição racista e a grande maioria das manifestações não serão encaminhadas.

Aliás, elas já não o são no momento, com a letra da lei atual, e serão muito menos agora que a matança institucionalizada se aprofunda.

A polícia acompanha a necessidade crescente da burguesia de ampliar sua repressão contra os negros no Brasil e contra a classe trabalhadora no geral, neste período de ampliação e desenvolvimento da maior crise da história do capitalismo.

A esquerda que diz que esse projeto é humanizante e que vota nele não entende a implicação dessas mudanças. Sob a ilusão de concessões que são meras formalidades da ditadura burguesa, parte da esquerda verá com bons olhos essa reforma da estrutura da polícia como uma lógica simples de contraposição entre a nova lei e a anterior, que data da ditadura militar.

É uma necessidade imediata pôr fim à polícia, não reformá-la. Esse órgão, seja militar, civil ou federal, serve apenas à dominação de classe, não produz riqueza nem presta serviços úteis à classe trabalhadora.

Qualquer reforma da polícia – seja como uma proposta rebaixada da própria esquerda ou como iniciativa da própria burguesia – não passará de uma formulação vazia, que não modifica o caráter real da instituição no Estado capitalista. Pelo contrário, essas reformas encobrirão o sistema em um primeiro momento, e cairão por terra a partir do momento em que a burguesia precisar descer seu braço de ferro contra os trabalhadores.

Não podemos esquecer que foram nas nascentes forças de repressão do Estado brasileiro que destruíram o Quilombo dos Palmares e mataram Zumbi em 20 de novembro!

1 Ação afirmativa nos EUA: um ‘fracasso’?, Vânia Penha Lopes.

2 Entrevista concedida ao jornalista Maurício Pestana

3 O Estado e a Revolução, pág. 29, Boitempo.

4 Human Rights Watch vê falhas em investigações da operação escudo em SP