Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil

A erosão social e os danos à saúde causados pela indústria bilionária de apostas on-line no Brasil

O gosto brasileiro pela popular “fezinha” é bem conhecido, tanto no que diz respeito aos jogos, das loterias, quanto aos cassinos clandestinos. As apostas estão inseridas na vida dos brasileiros há séculos, num cenário dinâmico que se adapta a cada tempo, ora legais e ora ilegais, se adaptando à evolução do mercado e às necessidades do Estado.

Para compreender melhor a evolução das apostas esportivas e dos “jogos de azar” no Brasil, é preciso analisar essa evolução e as constantes mudanças na legislação.

Sabe-se que a jogatina acontece no Brasil desde o século XVl, primeiramente com jogos de cartas. No século XVlll surgem as primeiras casas de apostas, com as corridas de cavalos. O governo imperial e as províncias, vendo a possibilidade de arrecadação com os jogos, resolveram entrar também no negócio. Assim, foram criadas as primeiras loterias do país, sendo os mais antigos registros de loteria datados de 1784, em Vila Rica, atual Ouro Preto.

Com a popularização dos jogos de azar, em 1892, o Barão João Batista Viana Drummond, criou o famoso Jogo do Bicho, a fim salvar o seu Jardim Zoológico, localizado na Vila Isabel e que passava por dificuldades financeiras, após perder o subsídio que recebia do governo imperial.

Ao adquirir o ticket do ingresso, o visitante do zoo ganhava uma carta com a imagem de um bicho e no alto de um poste, à entrada do zoológico, escondia-se a gravura de um dos 25 bichos da lista sob uma caixa de madeira, a ser revelado ao fim do dia. Quem estivesse com a figura do mesmo animal ganhava então um prêmio de 20 vezes o valor da entrada. Mal sabia o barão Drummond que estava criando um verdadeiro fenômeno nacional.

O jogo, a princípio lícito, rapidamente estendeu-se para fora dos muros do zoológico carioca, em que “bicheiros” concentravam apostas em ruas, praças, cafés, casas de fumo, lotéricas, vendas etc. A existência legal do jogo do bicho não durou muito. Em pouco tempo, com a proibição assinada pelo prefeito do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em 1895, o jogo tornou-se ilegal. Mas sua prática permanece até hoje, funcionando de maneira ilegal por mais de um século. Atualmente, estima-se que o jogo do bicho movimenta ao ano, no país, mais de R$ 12 bilhões.

Em 1917 o governo criou sua primeira loteria, intitulada “Loteria Federal” e, nesse mesmo ano, tornou ilegal a prática de jogos de azar, os cassinos e as demais casas de apostas no território nacional. Entretanto, essa prática continuou a prosperar mesmo na ilegalidade até o ano de 1934, quando o presidente Getúlio Vargas legalizou a prática de apostas e jogos de azar no Brasil. Os cassinos se tornaram o grande entretenimento da elite brasileira, com restaurantes, orquestras, espetáculos dançantes e com figuras ilustres como Grande Otelo e Carmem Miranda, que se tornou a grande estrela dos cassinos cariocas. Esse período ficou conhecido como a “Era de Ouro” dos cassinos no país.

Em 1946, o então presidente, Eurico Gaspar Dutra, assinou o decreto de proibição dos jogos de azar no território nacional.

Na ditadura militar, durante o governo Médici (1969-1974) foi criada a Loteria Esportiva , tanto legalmente, com a assinatura do decreto-lei n. 66.118, de 26 de janeiro de 1970, quanto na prática, com o primeiro concurso ocorrendo em 19 de abril de 1970:

“A Loteria Esportiva continuou sendo um sucesso de público por longos anos, até que em outubro de 1982, a revista Placar denunciou a Máfia da Loteria Esportiva. A matéria de capa denunciava um esquema de corrupção envolvendo 125 nomes, dentre ele jogadores, dirigentes, árbitros técnicos e personalidades. Após tais denúncias a Loteria Esportiva perdeu a credibilidade, nunca mais recuperando o sucesso alcançado até então.” (Jogada de Médici: o uso da loteria esportiva pelo regime militar brasileiro)

Imagem”Acervo Revista Veja, 1970

Posteriormente, os governos ainda tentaram legalizar e regulamentar a prática no país, mas a proibição seguiu até os dias atuais.

O que se viu ao longo dos anos é que mesmo proibidos, os jogos apenas trocam de formato, e se adaptam para continuar gerando muito lucro. O Brasil continua oferecendo as mais variadas possibilidades de apostas, legais e ilegais, desde os bingos entre amigos e os carteados, aos caças-níqueis, jogos do bicho, corridas de cavalo e mais recentemente, as apostas esportivas on-line, que rapidamente tomaram conta do país.

Essa explosão de casas de apostas esportivas teve início em dezembro de 2018 quando o ex-presidente Michel Temer (MDB) sancionou a Lei 13.756, que tornaria legal as apostas esportivas no país. A autorização de funcionamento para as bets vinha com uma promessa de que esse funcionamento seria regulado em até dois anos. Porém, durante os quatro anos do mandato do governo Bolsonaro (PL), nenhuma regulação foi feita. Sem regulamentação e sem fiscalização, o Brasil se tornou um terreno fértil para essas empresas.

Em 2022, o Brasil teve mais de 3,2 bilhões de acessos em sites esportivos. As estimativas dão conta de que esse mercado já movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano. Porém, todo o dinheiro das apostas está envolto em uma série de polêmicas, tanto nos jogos ditos legais, como nos ilegais.

Desde que começou esse boom de casas de apostas, diversos rumores de manipulação de resultados tomaram espaço na mídia esportiva.  Denúncias de fraude não param de acontecer, desde a participação de jogadores de futebol em esquemas para manipular os resultados dos jogos, até cassinos on-line que simplesmente somem com o dinheiro do apostador. A Câmara dos Deputados chegou a aprovar a instalação da CPI da Manipulação de resultados no futebol brasileiro, envolvendo jogadores, dirigentes e casas de apostas. Além disso, a Polícia Federal investiga como milícias e facções criminosas estão usando as bets para lavar dinheiro de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas.

Mesmo existindo diversas estimativas de arrecadação por parte dessas empresas, esse é um mercado pouco transparente, e nesse breu operacional, não se sabe o montante, nem como o dinheiro da indústria de apostas se movimenta no país e fora dele.

As apostas mudaram o mercado do futebol brasileiro. Além de investir R$ 327 milhões em patrocínios aos principais times do país em 2023, as empresas do segmento ainda são patrocinadoras de campeonatos e grandes anunciantes de emissoras de TV, rádio e internet. As propagandas estão nos estádios, nos outdoors, nas camisas dos jogadores, nas redes sociais e nos perfis de influenciadores e celebridades, e movimentam bilhões de reais.

Em dezembro de 2023, foi sancionada a lei que regulamenta a atuação das bets no país. A competência para autorizar, supervisionar e fiscalizar as apostas esportivas cabe ao ministério da fazenda. Segundo o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o governo pretende aumentar a arrecadação em 12 bilhões por ano com as medidas que envolvem a taxação de apostas online.

O Senado aprovou em dezembro de 2023 o texto-base do PL 3.626/2023 que regulamenta as apostas esportivas de quota fixa, as chamadas bets / Imagem: Agência Senado

Com o novo pacote de regras, a tributação sobre os prêmios obtidos ficou estabelecida em 15%, enquanto as casas de apostas devem pagar 12% do seu faturamento bruto, além de R$ 30 milhões pela licença para operar por cinco anos no país. Além disso, as empresas deverão seguir outras regras como ter sede física no país e estabelecer o que o governo chama de Políticas de Jogo Responsável.

O Ministério da Fazenda informou que no total 113 empresas entraram com o pedido de regularização para operar como bets no país. Na lista, há companhias brasileiras, incluindo a Caixa Econômica Federal, mas a grande maioria é de capital estrangeiro, contendo até grupos que operam em paraísos fiscais.

O que o governo chama de Políticas de Jogo Responsável consiste em obrigar as empresas a seguir algumas regras e conscientizar os apostadores dos riscos com as apostas. Assim, o apostador informado dos riscos passa a ser o responsável dali em diante, tornando o problema de responsabilidade individual e não culpabilizando os que estão lucrando bilhões com a livre jogatina.

Os efeitos colaterais das bets vão demorar para serem avaliados, mas já podem ser facilmente percebidos: suspeita de corrupção no futebol, crescimento no número de viciados em jogos, propaganda abusiva, uso de influencers para manipular crianças e adolescentes e lavagem de dinheiro de organizações criminosas, são só a ponta do problema.

Apresentadas como casas de apostas esportivas, estima-se, porém, que 80% da receita dessas empresas não vêm de apostas de resultados de jogos e sim de jogos de cassino virtual, como o famoso jogo do Tigrinho.

A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima), apontou que 22% dos apostadores consideram que as bets são investimentos. A Anbima também estima que em  2023 ao menos 22 milhões de pessoas usaram alguma bet para fazer pelo menos uma aposta, isso é equivalente a 14% da população com mais de 16 anos no Brasil.

Os impactos dessa proliferação de jogos on-line já estão aparecendo, com mudanças nos hábitos de consumo, problemas financeiros e o vício dos apostadores. Quanto mais populares se tornam as bets e quanto mais dinheiro se perde com elas, menos sobra no bolso dos trabalhadores para consumo diário.

O varejo é o setor mais afetado, cerca de  63% dos apostadores on-line no Brasil tiveram parte da renda comprometida, mais da metade dos apostadores dizem que fazem apostas pelo menos uma vez na semana e 49% estão apostando com maior frequência, segundo dados da SBVC. Os jovens são os mais dedicados, 30% dos brasileiros entre 16 e 24 anos dizem já ter usado uma bet para apostar. Não é à toa que os grandes divulgadores dos jogos são influenciadores digitais, com contas milionárias, e as plataformas trazem layouts cada vez mais voltados para prender a atenção de jovens.

Existem infinitas possibilidades de jogos on-line, os jogos de azar, hoje no formato de cassinos virtuais disfarçados de joguinhos, como jogo do aviãozinho, tigrinho e caças-níqueis on-line. Neles, o apostador depende exclusivamente da sorte, ou simplesmente de algoritmos feitos para benefício da banca.

As casas de apostas esportivas dão as mais variadas opções de apostas, do resultado do jogo a situações específicas, como número de faltas, de escanteios e lances isolados. Porém, indiferente do resultado ou do tipo de jogo, a casa já tirou sua porcentagem e ganha. Já o apostador, quanto mais aposta, mais perde.

O perigo das apostas está no fato de que elas são extremamente excitantes para o cérebro, que está em constante busca por recompensas. O apostador sabe que o possível ganho financeiro de uma aposta bem sucedida pode prover mais alimento, mais conforto, mais diversão e, claro, mais jogo. Essa possibilidade de ganho, aliada à  facilidade de acesso e à difícil realidade da vida da classe trabalhadora, formam a  receita perfeita para a dependência se estabelecer.

A dopamina que é liberada quando pensamos em fazer algo prazeroso torna o jogo um lugar agradável para o nosso cérebro. Quanto maior e mais rápida é a explosão de dopamina, mais viciante é a experiência para o nosso cérebro.   O problema é que ao mesmo tempo em que os jogos proporcionam picos de dopamina esperando uma recompensa, ela despenca em segundos depois do resultado da aposta. Isso dispara um comportamento de querer buscar aquela experiência de novo, e com os jogos de azar on-line essa possibilidade está somente há um clique de distância. Ou seja, é muito fácil receber a recompensa de novo, isso gera um sistema de picos e quedas de dopamina no cérebro e se torna extremamente viciante.

O perigo das apostas está no fato de que elas são extremamente excitantes para o cérebro, que está em constante busca por recompensas

As consequências para a saúde são terríveis. O estresse crônico causado pelas apostas disparam quadros de ansiedade, depressão e insônia que quase sempre estão ligadas ao transtorno do jogo. Isso também aumenta o risco de problemas cardiovasculares. Muitas pessoas vão passar pelas apostas sem danos à saúde, mas para até 6,5% das pessoas as apostas podem se tornar uma compulsão que coloca suas vidas em risco. Desde 1980 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o vício em jogos como uma patologia, intitulada de Transtorno do Jogo.

O psiquiatra Hermano Tavares, fundador no Ambulatório do Jogo do Instituto de Psiquiatria da USP, e coordenador de um programa com esse foco no hospital das clínicas em SP, afirma que a chegada das bets alterou o perfil dos pacientes. Hoje, eles são mais jovens e há muito mais homens do que mulheres, quase metade deles na faixa dos 20 anos e pertencentes às classes C, D e E. Segundo o médico, são constantes os relatos dos jogadores que se endividam para fazer suas apostas, incluindo empréstimos consignados, dívidas no cartão de crédito, empréstimos com agiotas, até pacientes que forçaram uma demissão de um emprego CLT só para acessar o fundo de garantia e usar esse valor para apostar.

Os apostadores arriscam cada vez quantias maiores, compulsivamente colocam suas angústias no jogo, não conseguem parar, endividam-se, escondem, mentem e muitas vezes roubam, causando prejuízos profissionais e pessoais. No Brasil já existem cerca de 2 milhões de viciados, segundo dados da USP.

“É uma epidemia e não é exagero dizer que é uma pandemia”, afirma. “Por analogia, a única diferença [de uma pandemia] é que não é um patógeno, não é um vírus ou uma bactéria. É um vírus digital”,  explica o psiquiatra.

Existe uma indústria criada para seduzir e amarrar os trabalhadores numa teia. A estrutura que induz ao pensamento de que é fácil ter o dinheiro e o caminho são as apostas está pronta e a responsabilidade das empresas nisso é nula. Não há nenhuma contrapartida em relação ao problema social, não se estabelece nenhuma responsabilidade sobre os danos, não existiu nenhum ganho social na discussão da regulamentação das casas de apostas. E ainda temos em tramitação no Senado o projeto de Lei  2234/2022, que visa legalizar os cassinos, bingos e demais jogos de azar no país.

Os brasileiros gastaram mais de R$ 100 bilhões em bets em 2023, valor equivalente a 1% do PIB do país, segundo o relatório da XP. O documento também aponta que, proporcionalmente falando, o mercado de apostas esportivas no Brasil se tornou mais lucrativo que o dos EUA. As plataformas norte-americanas faturaram 7% do total de apostas por lá, sendo que no Brasil, o número subiu para 13%.

Eles estão lucrando e esse dinheiro todo está saindo da mesa do trabalhador brasileiro. A regulamentação do governo Lula-Alckmin se deu apenas pela ambição com a tributação do mercado, o Estado só está preocupado com sua “fatia do bolo” e dos empresários do ramo, e não com a “indigestão” que isso traz para vida da classe trabalhadora, tampouco com os impactos na saúde pública. No plano do governo de utilização da arrecadação proveniente das apostas, 28% do valor arrecadado será destinado ao setor do turismo e somente 1% à saúde. Está mais que provado que não existe benefício social nas apostas.

A indústria das apostas está deixando o trabalhador mais afundado em dívidas e miséria, sem nenhuma responsabilidade legal. As pessoas estão tendo suas vidas destruídas pelas apostas, enquanto essas empresas lucram bilhões deixando um rastro de todo tipo de problema social no país, com o aval do governo.

O governo tenta tratar a questão como de responsabilidade individual, quando o aumento da exploração precariza cada vez mais as condições de vida dos trabalhadores. Em contrapartida, apresenta o jogo de apostas como a melhor possibilidade de uma mudança de perspectiva financeira para as famílias. Nesse contexto, de degradação e manipulação de consciência através do forte apelo nas mídias, faz com que a camada mais vulnerável da população passe a enxergar nas apostas on-line uma chance de transformação das condições de vida. A promessa da multiplicação do dinheiro acaba sendo a única esperança dos trabalhadores.

O IBGE de 2023 apontou que 60% dos brasileiros vivem com até um salário mínimo e, segundo dados do Dieese, em 2024 o salário ideal para que uma pessoa possa suprir suas necessidades básicas como moradia, alimentação, saúde, educação, higiene, vestuário, transporte, lazer e previdência seria de R$ 6.802,88, cerca de 73% a mais que o salário mínimo atual. O desamparo criado pelo sistema capitalista, faz com que os jovens e os trabalhadores não contem mais com a ideia de que um emprego formal é o suficiente para garantir a subsistência de suas famílias.

Nesse cenário, de insegurança social, o mercado de apostas opera como uma ferramenta de opressão social. O trabalhador está cada vez mais endividado e alienado, a miséria é usada para manter os aparatos de poder do Estado e das camadas mais altas da sociedade. Sem barreiras de acesso, sem responsáveis legais, o jogo de apostas se apresenta como uma falsa perspectiva para a classe trabalhadora, enquanto garante lucros exorbitantes para a burguesia.

Estamos vivendo uma epidemia silenciosa, que tem afetado milhares de famílias em todo país com consequências devastadoras enquanto os milionários estrangeiros se unem à burguesia para arrancar até a última gota de suor da classe trabalhadora. Regulamentada ou não, o certo é que  a indústria bilionária de apostas on-line continuará explorando o proletariado, fazendo milhares de vítimas e seguindo impune, com o consentimento do governo brasileiro. No sistema capitalista, a banca sempre ganha.

A crise do capitalismo se escancara, e os trabalhadores sentem cada vez mais os reflexos disso. Somente a derrubada do sistema capitalista e a construção de uma nova sociedade permitirá a emancipação da classe trabalhadora. Cabe a nós, através da luta de classes, criarmos uma sociedade onde jovens, crianças, mulheres e homens vivam livres das desigualdades e opressões.