A escravidão não acabou
Aprendemos desde muito cedo que a escravidão foi abolida no Brasil no dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando as pessoas escravizadas. A materialidade, porém, é muito mais obscura.
Hoje temos consciência de que a abolição da escravidão foi um movimento cercado de jogos políticos por parte da Coroa portuguesa, da Igreja Católica e da elite brasileira que, encurralados pelo movimento abolicionista e pela pressão internacional, encontraram meios de abolir a escravidão de uma maneira que ainda os beneficiasse. A história deixa claro que a Lei Áurea nunca foi sobre libertar ou beneficiar as pessoas escravizadas, mas sim uma reação da Coroa portuguesa à pressão política que exigia a abolição. E é por isso que não houve nenhuma medida de apoio às pessoas que foram escravizadas que permitisse sua inserção na sociedade brasileira. Dessa forma, mesmo representando uma enorme vitória, a abolição da escravidão no Brasil, da maneira que foi colocada, não foi capaz de concretizar verdadeiramente a cidadania e a liberdade das pessoas pretas no país.

Complexificação do racismo, marginalização sistemática das pessoas pretas, pobreza, exclusão social, dificuldades no acesso à educação, saúde e lazer e desprezo pelas lutas políticas desse grupo social são apenas algumas das cicatrizes que a escravatura deixou no nosso país e que são sentidas até hoje, principalmente pelos trabalhadores negros.
Contudo, para milhares de brasileiros (e milhões de pessoas no mundo inteiro), a escravidão é muito mais que uma cicatriz deixada pelo passado – é o presente. E nunca deixou de ser. Ainda assim, foi apenas em 1995 que o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo “contemporâneo”.
Desde o início dos registros oficiais em 1995, mais de 631 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão, e mais de 12 mil foram resgatados do trabalho escravo. E não é mera coincidência o fato de que mais de 80% das vítimas resgatadas do trabalho análogo à escravidão entre 2016 e 2023 sejam negras ou pardas. Homens jovens, negros, nordestinos e pessoas com baixa escolaridade são os mais vulneráveis a essa prática.
Porém, o cenário é ainda mais alarmante – a subnotificação dos casos é um problema expressivo. Os únicos dados disponíveis para a contabilização de vítimas são aqueles relativos aos trabalhadores resgatados pelos órgãos estatais, que atuam apenas a partir de denúncias e, ainda, não possuem os recursos necessários para investigar todos os casos ou resgatar todas as vítimas. A verdade é que ninguém sabe ao certo as reais proporções do trabalho escravo no Brasil – e, evidentemente, essas pessoas não são uma prioridade (ou uma preocupação) da elite brasileira.
A expressão da misoginia na escravidão
A subnotificação de casos de trabalho escravo afeta especialmente as mulheres. Na maioria dos casos, elas são submetidas a trabalhos de natureza doméstica, que não são vistos como trabalho, ou à exploração sexual mascarada de trabalho, uma pauta amplamente menosprezada. A Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério do Trabalho, foi fundada em 1995, mas o primeiro resgate de trabalho escravo doméstico ocorreu apenas em 2017. E o primeiro resgate de escravidão sexual, apenas em 2019.
Infelizmente, a subnotificação dos casos não é o único problema. A falta de recursos direcionados aos resgates dessas pessoas, na prática, condena essas mulheres à vida de escravidão, assim como a relativização do sofrimento das mulheres escravizadas. Maurício Krepsky, ex-chefe da Detrae, em entrevista à Folha em 2023, afirmou: “Uma ação para resgatar uma trabalhadora poderia livrar 50 homens da escravidão rural”, e que “dependendo do local, há 200 trabalhadores nas vinícolas, mas não se encontram 200 mulheres em um prostíbulo.”
Esse discurso não apenas minimiza o sofrimento das mulheres escravizadas, como também atua como uma carta branca para os escravagistas. Essas mulheres são seres humanos, não uma mera estatística que, por ser tangencial, pode ser desconsiderada.
O sistema é aliado do trabalho escravo
Com isso, fica evidente que a escravização contemporânea das pessoas negras e pobres, a exploração do trabalho doméstico, a normalização da exploração sexual e o desprezo pelo sofrimento das mulheres exploradas são não apenas cicatrizes do antigo sistema escravista, mas um projeto sustentado pelo sistema político, econômico e jurídico do nosso país.
A atuação da elite aliada a esse regime fica explícita no caso de Sônia Maria de Jesus. Mulher negra e portadora de deficiência auditiva, Sônia foi encontrada em situação de trabalho análogo à escravidão na residência de Jorge Luiz de Borda, desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC). A trabalhadora, de 50 anos, viveu 40 destes servindo à família Borda. Sem nunca receber salário, assistência médica ou educação, Sônia também sofreu violência física e vivia em um pequeno quarto insalubre na residência. Tirada de sua família ainda criança, ela continua até hoje sem contato com os familiares.

Resgatada em junho de 2023, Sônia passou três meses em liberdade. Em setembro do mesmo ano, o ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizaram que Sônia fosse levada de volta ao seu local de cárcere, onde continua até hoje.
Mulher, preta, portadora de deficiência, Sônia foi sistematicamente negada o acesso à educação, à saúde, à liberdade, à autonomia. O caso se resume a um desembargador e dois ministros da Justiça decidindo entre si o quanto vale a vida de uma mulher preta.
Quem ganha é o capital
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho escravo tem gerado lucros de US$ 236 milhões por ano na economia privada.
No Brasil, o agronegócio é o principal setor que se beneficia do trabalho escravo. A pecuária, as lavouras e as carvoarias lideram os casos registrados de trabalho análogo à escravidão. Mundialmente, porém, o setor que lidera é a exploração sexual – envolvendo também o tráfico humano, que, em grande medida, tem a escravização das pessoas como objetivo.
No fim, é bastante óbvio que o racismo e o machismo atuam como mais uma ferramenta do capitalismo na geração de lucro e, principalmente, na manutenção do poder das elites. A própria natureza do capitalismo coloca a propriedade privada, o lucro e a acumulação de riquezas em primeiro lugar. E a escravidão, em conjunto com o tráfico humano, é a mais pura expressão da atuação do capital.
No capitalismo, é o lucro sobre a vida. E não há liberdade para a classe trabalhadora enquanto isso for verdade. Nossa única e urgente saída é a organização dos trabalhadores e a luta conjunta pela tomada de poder e dissolução do sistema capitalista!
- Ser negro não é crime!
- Abaixo o trabalho escravo!
- Abaixo a exploração da mulher trabalhadora!
- Abaixo a exploração sexual das mulheres e crianças!
- Abaixo o machismo!
- Abaixo o capitalismo!
- Lutar pelo socialismo, por uma sociedade que liberte a mulher de toda violência e opressão!