Imagem: Clay Banks, Unsplash

A forja racialista: as gotas de sangue do proletariado negro

Nota: Este artigo se propõe a explicar como os comunistas compreendem as ideais alheias à classe trabalhadora expressas nas direções do movimento negro brasileiro. Para sua produção foram utilizadas fontes obras historiográficas como: “Racismos: das cruzadas ao século XX”, de Francisco Bethencourt (2013), “Uma gota de sangue: história do pensamento racial”, de Demétrio Magnoli (2009), “O Brasil e a recriação da questão racial no pós-guerra: um percurso através da história da Fundação Ford”, de Wanderson da Silva Chaves (2011), além de posições e práticas conhecidas no movimento social e na academia.

Os liberais de todas as cores bradam que nada está acima do indivíduo. A subjetividade, o Eu, a experiência e a identidade devem se impor sobre as relações materiais e históricas. As derivações “progressistas” dessa filosofia lançam novos termos românticos: da negritude ancestral ao “interseccional” de “raça, classe e gênero”.

Os formuladores desses conceitos, como de todo pós-modernismo, julgam ter descoberto a pólvora. Dizem, por exemplo, lançar luz às múltiplas e sobrepostas formas de opressão. Cada subjetividade individual ou de grupo torna-as únicas e especiais. Certamente, todos que já passaram por alguma atividade, manifestação ou aula ouviram a reveladora frase “é preciso pensar interseccionalmente” ou sobre o ainda mais “atualizado” “pensamento decolonial”, um requentado e mofado idealismo subjetivo que, ironicamente, é europeu e cristão.

Conceitos como “lugar de fala”, “representatividade” e “empoderamento negro” pavimentam o caminho que os dirigentes dos movimentos negros trilham nas velhas estradas percorridas pelo racismo. Consequentemente, não haverá sucesso no movimento antirracista enquanto ele estiver exposto a todo tipo de manipulação e falsificação histórica que servem à manutenção do sistema capitalista.

Nesse traço, a direção do movimento negro segue reforçando a reacionária racialização da humanidade. Historicamente essa direção, por exemplo, ignora as revoltas abolicionistas do Século 19, protagonizadas por trabalhadores negros e brancos, preponderantes para a Abolição no 13 de maio de 1888. Ao invés desse legado, reproduzem a ideia da gota de sangue e, a ferro e fogo, forjam o racialismo à brasileira.

A Questão Racial enquanto instrumento da burguesia dos EUA para apaziguamento da luta de classes se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial. O Estado norte-americano produziu seu novo projeto racialista em resposta às convulsões que o poder soviético geravam no proletariado internacional – mesmo com a desfiguração stalinista da revolução -, como o próprio estabelecimento do Estado de Bem-Estar Social na Europa Ocidental.

Os EUA conseguiu, assim, forjar uma ideologia que vendia a possibilidade de um capitalismo cidadão e antirracista, “multirracial”. Para isso, a Fundação Ford, com o projeto Gaither Report, desempenhou papel crucial na chamada “guerra cultural” (CHAVES, 2011).

“O que se inaugurou em 1967, propriamente, foi a emergência do presente discurso ‘multiculturalista’; todavia, incompreensível se não atentarmos para a sua longa gestação no debate internacional do ‘desenvolvimentismo’ e das ‘relações raciais comparadas’, que a Ford passou a promover a partir do início dos anos 1950.” (CHAVES, 2011, p. 12)

Era a promoção do “pluralismo racial” como resolução para os conflitos sociais: “por meio da afirmação da diferença ‘racial’, à medida que a cada ‘raça’ fossem estabelecidas condições para o desenvolvimento de suas potencialidades econômicas e atenção para suas demandas junto a uma esfera pública” (CHAVES, 2011, p. 13). É a raiz da proliferação dos discursos por “justiça social” e “ocupação dos espaços” pelos explorados e oprimidos, evidentemente, dentro dos marcos do capitalismo.

Essa filosofia chegou ao Brasil quase que concomitantemente por intelectuais e programas acadêmicos. Mas foi o governo burguês do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que ensaiou oficializar a divisão “racial” do Brasil sob esse discurso encantador de serpentes. Em 2001, na África do Sul, na “Conferência Contra a Xenofobia, Discriminação e Intolerância”, uma delegação brasileira financiada pelos tucanos importou em definitivo a política institucional da racialização humana como alternativa para a “reparação histórica” e o “combate” ao racismo.

Entretanto, foi no primeiro governo Lula que as primeiras leis raciais da história brasileira foram assinadas, como a exigência do Ministério da Educação (MEC) de que se definisse a “raça” dos alunos matriculados nas escolas a partir de 2005. Os cidadãos passaram a ser vinculados a uma “raça” e não mais ao estudo demográfico étnico do IBGE.

Politicamente, foi a efetivação do Multiculturalismo, baseado, portanto, no princípio da suposta diferença “racial” na sociedade. Quer dizer, para essa filosofia reacionária, a humanidade é dividida em “famílias culturais-étnicas” essencialmente diferentes. Diferenças que não são históricas e sociais, desenvolvidas pela propriedade privada e o Estado, mas sim por um ente visto praticamente como genético, a cultura.

O termo “multiculturalismo” é encontrado pela primeira vez em 1941 em uma ficção de Eward Haskell para descrever uma sociedade cosmopolita utópica, mas, como dito, foi a partir da virada dos anos 1950 aos 1960 que passou a integrar a “política de ações afirmativas” dos EUA (CHAVES, 2011). Enquanto “escola”, os vastos programas de pesquisa e ideais financiados pela Fundação Ford doutrinaram seus bolsistas a formar “equipes multiculturais” e definir temas e abordagens “multirraciais”, dando voz às “famílias/raças humanas”. Ou seja, a ideia das “raças” humanas, antes restrita às pseudociências de interesse colonialista, tomaram uma nova abordagem, como gostam de dizer os pós-modernos.

Nesse sentido, filosoficamente, também apresenta-se como uma oposição à modernidade. Embora impossível de ser praticado pela sociedade do capital, esse período histórico que se abriu com o Renascimento teve como bandeira ideológica a igualdade legal entre os cidadãos, que seriam capazes de produzir seu próprio futuro à revelia do sangue. Já a chamada “ancestralidade” e o fomento às “raças” pelo multiculturalismo orienta os indivíduos a buscar seus laços de identidade com “seu grupo” do passado, mesmo que não haja qualquer relação direta entre esses indivíduos e grupos sociais. 

Ao contrário do que afirmam as direções do movimento negro, a ideia da “ancestralidade” não é libertadora e garantidora de direitos e identidade, mas uma fantasia originária do romantismo alemão, essencialmente racista e reacionário. Esse foi o elemento ideológico utilizado na busca da constituição do Estado nacional alemão entre os séculos 18 e 19, visto que estes não possuíam uma unidade territorial. Era necessário, portanto, que a suposta “raça alemã” se agrupasse em suas raízes culturais, sanguíneas, sua “linhagem” e conjunto de características de seu volk, o “povo”, pois cada um teria sua “essência”.

Esse romantismo segue sendo um artifício nacionalista e de supremacistas brancos, que buscam alguma relação com um passado fictício diante das frustrações do presente. Mas, como vemos, foi “ressignificado” pelo racialismo da pequena-burguesia negra, indígena e outros grupos sociais superexplorados pelo capital.

Contrários a isso, os comunistas devem afirmar e explicar que as concepções de “raças” humanas há muito foram enterradas pela ciência e só existem quando o Estado e seus reprodutores as criam legalmente. É esse processo que as transforma em real na consciência social. 

As raças não existem nas culturas, pois ninguém nasce com uma cultura, seja ela qual for: racial, religiosa, etc. A cultura é dinâmica e fruto do meio, não carregada em seu DNA ou cor. Inexiste, portanto, uma ancestralidade cultural imanente a um grupo étnico, sendo a própria ancestralidade uma invenção segregatória. Racista, neste caso.

O discurso apresentado pelo multiculturalismo e adotado nos governos Lula afirma suas ações por uma suposta “reparação histórica”, como se fosse possível o Estado burguês reparar os séculos de escravidão e atual exploração de classe com, por exemplo, a política de cotas. A real reparação, a concreta reforma social imediata, trata-se unicamente da universalização de todas as necessidades humanas aos trabalhadores negros, violentados diariamente pelas forças de repressão capitalista, garantindo-os, por exemplo, trabalho digno, serviços públicos e não criminalização de seus corpos e existências.

Foi o capitalismo que tornou o humano uma mercadoria. É ele o responsável pela invenção das raças, a partir do racismo científico dos Séculos 18 e 19. Pelos seus interesses, a burguesia produziu o Iluminismo com o paradigma da igualdade entre os humanos. Porém, se todos os humanos são iguais, o que justificaria o imperialismo na África e na Ásia? Como legitimar as colônias além-mar? Foi preciso inventar as raças sob lentes científicas, dando ao homem branco, o fardo de “elevar as raças inferiores”.

O racismo científico plantou as raças no solo da natureza. Ele separou biologicamente as “famílias humanas” por características físicas, psicológicas, intelectuais e hereditárias, essencialmente eurocêntricas e surgidas no final do Século 18 a partir de cientistas como Lineu, Buffon, Blumenbach, Cuvier, entre outros, que promoveram essa ideia de diversas formas como representação dos interesses de suas classes. Mas, quando a ciência do Século 20 desmoralizou essa crença anacrônica, o multiculturalismo tratou de replantar as raças no solo da cultura.

O mito fundador dos EUA, surgido na Guerra de Independência no fim do Século 18, construiu o “homem americano”. Esse “homem novo” seria o resultado de um caldeirão que fundiu inúmeros povos, todos da Europa Ocidental. Nesse mito hegemônico, não havia genes não-brancos no “verdadeiro homem americano”.

As leis raciais na Reconstrução do país após a Guerra da Secessão causaram tensões, pois confrontavam o princípio revolucionário da igualdade inscrito na 14ª Emenda à Constituição, feita em 1868. O trabalho livre suplantou a escravidão, porém a classe dominante manteve a segregação não como mera conquista simbólica de diferenciação “racial”, mas para superexplorar os recém-libertos. Com isso criou-se a lei da gota de sangue, onde qualquer “ancestral” negro condenadava o indivíduo por sua “raça” até o Movimento pelos Direitos Civis dos anos 1960.

No Brasil, apesar do jugo racista permanente na sociedade, a tentativa de reproduzir essas ações teve pouca efetividade, nunca se tornando uma política de Estado. As tentativas de branqueamento e eugenia por parte das classes dominantes do país nos Séculos 19 e 20 foram frustradas. O Brasil não se “embranqueceu” e se desenvolveu como um país de mestiços, onde a “gota de sangue” constitui praticamente todos os seus cidadãos.

Evidentemente esse processo também gerou idealismos, como de Euclides da Cunha, que cantou o brasileiro como “um forte” por sintetizar várias etnias, ao mesmo tempo que também poderia ter certos “desequilíbrios” pelo mesmo motivo. A fabricação da identidade nacional, especialmente na Era Vargas, também idealizou esse personagem, o brasileiro.

Contudo, como auxiliar dos racistas, uma pequena-burguesia negra decidiu reformular a “gota de sangue”, desta vez “positivamente”. O pan-africanismo de Alexander Crummel e William Du Bois, por exemplo, defendeu uma sociedade exclusivamente preta com o retorno de todos os “afrodescendentes” do mundo para o “continente mãe”, a África. Tais intelectuais, na realidade, ignoram a diversidade africana, seus conflitos, contradições e sociedades cristãs anteriores ao próprio domínio da “branquitude-cristã-europeia”, como os etíopes. Assim, os pan-africanistas, frutos do racismo burguês, acabam por interpretar a África como uma unidade imaginada da “raça negra”. Um emblema do racismo.

Nessas pegadas, a moda da “negritude” formulada por Aimé Césaire, um acadêmico, e Léopoldo Senghor, que chegou à presidência de Senegal de 1960 a 1980, é um subproduto do pan-africanismo. Uma “herança romântica da esquerda identitária”, como bem desenvolveu o camarada Marcos Andrade em seu artigo, o qual indicamos a leitura. 

Podemos ver o núcleo racialista dessas direções do movimento negro reproduzir as ideias da Frente Negra Brasileira, que atuou no país a partir de 1931 sob o lema “Deus, Pátria, Raça e Família”, sendo um paralelo negro ao Integralismo de Plínio Salgado. Em seu jornal, a FNB chegava a saudar o nazismo por defender a construção de uma nação de “pura raça”, a qual eles também buscavam.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira

Em “A Voz da Raça”, a FNB se posicionava contra os imigrantes europeus e defendia as perseguições promovidas pela Campanha de Nacionalização de Getúlio Vargas. Seu combate era especialmente contra os operários italianos e alemães.

Após 1932, a FNB passou por um racha, originando a Frente Negra Socialista com um jornal e um clube social negro. O Estado Novo deu fim às liberdades democráticas e, com isso, dissolveu-se a FNB, rebatizando-se como União Negra Brasileira e, posteriormente, Clube Recreativo Palmares.

Em 1944, o fio condutor das ideias racialistas permaneceu com o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado pelo jovem intelectual Abdias do Nascimento, um antigo simpatizante do integralismo que militara na FNB. Nascimento foi o principal responsável pelo ressoar do pensamento de Du Bois no Brasil, onde se apresenta a concepção dos negros brasileiros não serem realmente brasileiros, mas parte de uma nação africana.

O nacionalismo é uma ideologia baseada na valorização da nação como unidade central da vida política, social e cultural. Ele já assumiu diferentes formas ao longo da história. Em países da África e América Latina que sofreram com a colonização e seguem dominados pelo capital financeiro monopolista, os comunistas apoiam os movimentos de libertação nacional contra o imperialismo que oferecem participação das massas na lutas. Atuamos destacando a luta de classes, e não a luta entre nações, para ajudar que esses movimentos assumam posições anticapitalistas, preservando nossa liberdade e autonomia organizacional e defendendo a ruptura completa dos nacionalistas com a colaboração com o imperialismo.

Por outro lado, o nacionalismo já assumiu outras formas para afirmar políticas expansionistas e chauvinistas como a ideologia forjada pela burguesia na criação dos Estados-nação na Europa. Esse tipo de nacionalismo aliado ao racialismo são faces de uma mesma invenção burguesa e de seu Estado, produzidas para dividir e superexplorar aqueles que nada têm senão sua força de trabalho. Assim, o nacionalismo reacionário e o racialismo, promovido agora pela pequena-burguesia negra, utilizam as ferramentas do censo, do mapa e do museu para impor seus interesses.

O censo racialista contabiliza os humanos pela suposta raça, enquanto o mapa inventa territórios maternais para onde os negros devem voltar. Já o museu patrimonializa a invenção desse passado “ancestral”. A invenção das raças, seja pela ótica de brancos ou negros, precisa destas instituições para ocultar e/ou forjar a realidade.

Somos favoráveis a repatriação de artefatos e relíquias frutos de saques na pilhagem da colonização. A devolução desses bens aos povos de origem contribui para que as nações oprimidas reconquistem sua história mantendo vivo o legado imaterial dos povos que produziram esses objetos. Não aceitamos que o argumento da “preservação” seja usado para que estes objetos prossigam nos museus europeus e norte-americanos. Essa é uma questão de soberania nacional.

Contudo, acreditamos que o significado de reparação histórica e cultural através da repatriação destes objetos possui um impacto menor para os trabalhadores negros do que pensa a pequena burguesia negra. Por duas razões. Primeiro, porque os museus sob o capitalismo reproduzem a cultura como um produto de consumo com foco no turismo e bilheteria. Reproduzem a mercantilização da cultura, pois funcionam como mercados disfarçados onde obras de arte são ativos financeiros em que grandes colecionadores usam as instituições para valorizar suas coleções privadas. Sem contar que empresas privadas frequentemente patrocinam exposições nesses museus com objetivo de limpar sua imagem. 

A outra razão é a condição desigual e excludente no acesso aos museus que dificulta a assimilação do significado cultural e histórico do seu acervo pelos trabalhadores. No Brasil existem mais de 3 mil museus, quase 10% deles concentrados nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. E observando o Rio mais de perto contabiliza-se 128 museus, mas vemos 40% da população vivendo na Zona Oeste com 2,6 milhões de habitantes e conta apenas com seis destes equipamentos. E mais de 4 mil municípios no Brasil não possuem nenhum museu. Essa distribuição excludente das instituições dificulta o acesso da massa de trabalhadores, sobretudo os negros que são os mais explorados.

Essa série de argumentações da pequena-burguesia negra, aceita e aclamada pela burguesia e pelas direções de esquerda, não serve aos interesses do proletariado brasileiro e mundial. Não arriscam a superfície do capital, nem promovem ínfimas reformas sociais.

Os comunistas, em combate ao racismo, têm o dever de revelar o caráter contrarrevolucionário dessas formulações. Nosso internacionalismo está implicado numa posição propositiva e proletária de revolução internacional como única forma de suprimir a sociedade de classes, mas também de enterrar a ideia, a memória e a oficialidade das raças humanas.

Para nós, a unidade da classe trabalhadora, agindo por seus interesses, não é um mero objetivo, mas uma necessidade histórica. Como cantou o mestiço Chico Science, “índios, brancos, negros e mestiços, o seu e o meu são iguais”. “Por de trás de algo que se esconde”, a “grande mina de conhecimentos e sentimentos” pela superação das misérias e opressões que o capitalismo nos impõe, aqui estão os comunistas.

Os comunistas nunca se privaram de realizar discussões e colocar suas posições sobre as mais diferentes polêmicas, em qualquer momento histórico. Por isso é crucial travar esta discussão com o intuito de apresentar ao proletariado negro os princípios e o programa revolucionários, a moral deles e a nossa, com o único intuito da real libertação de toda a humanidade.

Abaixo o racismo e o racialismo!

Pelo comunismo internacional!

*Artigo atualizado em 07/02/2025.