A rebelião dos negros arrancou a abolição no 13 de Maio

A escravidão negra no Brasil foi impulsionada por duas explorações econômicas: primeiro a indústria do açúcar no Nordeste (o termo escravo é uma corruptela de eslavo, já que os escravos utilizados originalmente na indústria do açúcar no Mediterrâneo provinham deste povo. A sua generalização deveu-se à expansão da indústria para as ilhas do Oceano Atlântico, quando os negros passaram a ser maioria dos cativos) e depois a mineração de ouro em Minas Gerais.

A escravidão sempre trouxe consigo as revoltas, desde o tempo de Spartaco em Roma. Durante a guerra entre a Espanha e Holanda, o quilombo de Palmares pôde crescer, se fortalecer e sobreviver muitos anos como uma verdadeira nação independente em pleno território brasileiro (entre 1600-1695), só sendo destruído mais de 40 anos após a expulsão dos holandeses (1654). A Cabanagem, 200 anos depois (1835-1840) foi outra luta histórica, na mesma época da Revolta dos Malês na Bahia (1835, revolta organizada por negros de fala e escrita árabe).

É importante compreender que se havia uma pressão da Inglaterra pela abolição – no Brasil e no mundo inteiro -, fruto da necessidade de mais mercados e também pela liberação de mão de obra para o capital que começava a ser exportado. O que determinou no final a abolição foi a luta dos escravos e trabalhadores, principalmente operários pelo fim da escravidão. Essa pressão conseguiu, afinal, que em 13 de maio fosse assinada a Leia Áurea, que aboliu a escravidão. Mas, o que ela representou afinal e porquê foi assinada?

O tráfico e a escravidão no Brasil

Até 1830, o tráfico de escravos era livre no Brasil. Em 1831 uma lei declara “livres” todo escravo fruto de tráfico no país. Porém, isso foi feito “para inglês ver”, fruto principalmente da pressão inglesa. As revoltas, que existiam em banho-maria (fugas, quilombos, etc), explodiram em 1835 com a Cabanada e a Revolta dos Malês. A Guerra dos Farrapos – a tentativa de implantação de uma república no Rio Grande do Sul – durou de 1835 a 1845 e levou à libertação de milhares de negros neste estado, apesar da repressão causada por sua derrota. Ao mesmo tempo, a economia voltou-se totalmente para o Sudeste, com o início do chamado Ciclo do Café, em que a produção cafeeira no Brasil e a sua exportação suplantava a produção de açúcar e algodão. Estávamos muito longe ainda da mineração do ferro, as minas de ouro tinham se esgotado e a produção rural era a determinante.

Em um mundo que era já capitalista, a venda dessa produção era dominada pelo capital inglês e americano. A “Independência” do Brasil foi um bom negócio para Portugal que repassou para a nova nação toda a dívida externa, que foi sendo negociada e “rolada” desde então. A consequência disso é que a “opinião” da Inglaterra pesava muito e, mais que isso, pesavam as revoltas e revoluções que colocavam na ordem do dia a libertação dos escravos.

Em 1850, a burguesia brasileira deu um passo além na direção da libertação dos escravos. Primeiro, com a lei das terras, legalizou as ocupações feitas pelos grandes fazendeiros e estabeleceu que novas terras só teriam título de posse mediante pagamento de indenização. Segundo, criou uma lei que impedia efetivamente o tráfico de escravos.

O resultado disso foi que o tráfico interno aumentou, assim como a tentativa de reprodução da população escravizada em cativeiro. Mas isto nunca funcionou efetivamente, pois o tempo médio de vida laboral de um escravo, desde a antiguidade clássica, era de oito a dez anos. Pouquíssimos sobreviviam além dos 20 ou 22 anos. Somente os escravos domésticos, com tarefas “mais leves”, comparados com os escravos de plantações e minas, e os escravos “de ganho”, escravos que alugavam seus serviços em trabalhos nas cidades, sobreviviam mais tempo. O que passou a acontecer foi o tráfico de escravos do Nordeste para o Sudeste, a venda de escravos das grandes fazendas de açúcar que faliam ou reduziam sua produção para as nascentes fazendas de café.

A Guerra do Paraguai aumentou ainda mais a crise do império nascente. Fruto da pressão da Inglaterra para impedir que um país da América Latina pudesse se industrializar de forma independente, ela consumiu recursos imensos do império e, ao mesmo tempo, levou à nova leva de liberação de escravos, dos que tinham combatido na guerra.

Claro está que o Imperador Pedro II, o homem “esclarecido” que viajava o mundo inteiro e incentiva invenções como o telefone, que incentiva as ferrovias no Brasil, “esqueceu-se” de suas promessas para os negros libertos, que vieram constituir as grandes favelas da periferia carioca em busca da promessa de terras, nunca cumprida.

A pressão social levou à lei do Ventre Livre de 1871. Observe-se que numa época que o trabalho infantil era a norma, a lei declarava livre o escravo a partir de 8 anos, mas obrigado a prestar serviço gratuito até a idade de 21 anos, se assim o senhor o quisesse. O resultado é que a lei só dava liberdade após os 21 anos de idade e poucos escravos sobreviviam até essa idade. Por outro lado, ela libertava os escravos pertencentes “a União”, que eram poucos. Mas colocava uma tutela sobre todos os escravos que fossem libertados ou cujo senhor morresse e não deixasse herdeiro estabelecido. Em outras palavras, de ventre livre só tinha o nome. É evidente que a lei não resolveu o problema, assim como a lei dos sexagenários, que só fazia colocar na rua os velhos que já não tinham condições de trabalhar – se hoje a vida é difícil para idosos maiores de 60, imaginemos como era para alguém que foi escravo a vida inteira e conseguiu sobreviver até os 60.

A luta de classes tinha então um novo componente no Brasil, a entrada em cena dos primeiros contingentes da classe operária. Em 1858, no Rio de Janeiro, foi deflagrada uma greve de tipógrafos (trabalhavam na composição de jornais). A partir de 1873 o Rio de Janeiro foi sacudido por diversas greves de cocheiros (que transportavam tudo, de passageiros a mercadorias. A principal força da greve foram os transportadores de lixo, que deram origem a categoria dos garis).

Observe que, em muitas destas categorias, trabalhavam juntos operários e escravos, o que determinava o rebaixamento geral dos salários. Assim, o movimento operário, ainda incipiente, passou a adotar a bandeira de libertação dos escravos. A pequena burguesia das cidades, impulsionada pelo vento vindo de baixo, aderiu com força e se formaram os abolicionistas que cantavam em verso e prosa a libertação dos escravos. Navio Negreiro, de Castro Alves, uma candente denúncia do tráfico e da escravidão, é publicado em 1869. O império é sacudido então pela erosão de sua base social, os grandes proprietários de terra, sem ter conseguido desenvolver uma base social própria na nova burguesia – que não conseguia emergir já que o mercado mundial, e principalmente o brasileiro, era controlado pela Inglaterra e pelos EUA.

Assim, o império é forçado a libertar os escravos, fruto principalmente da revolta e das revoluções. A Inglaterra já estava “conformada” em ver a escravidão acabar naturalmente, com o ímpeto libertador tendo passado e os novos tempos do imperialismo já chegando. As três grandes causas da queda do império (libertação dos escravos, questão religiosa e questão militar) podem ser explicadas melhor em termos de luta de classes: os grandes donos de terra, escravocratas, não tinham porque manter o império. Os “modernos” fazendeiros queriam uma política que permitisse repor a mão de obra dos escravos e a pequena burguesia agitava-se porque o império não conseguia desvencilhar-se dos restos atrasados do país e da colonização. Menos motivo ainda tinham os primeiros operários para defender o império. Ele caiu e começou a política de buscar imigrantes para “embranquecer” o Brasil.

Polêmicas sobre o 13 de Maio

A maioria das organizações de esquerda no Brasil, inclusive as que se declaram marxistas, passam uma análise falsa sobre o 13 de maio por ele não ter incluído na libertação a “reparação” dos negros pela escravidão. Vejamos o que diz cada um deles (sinalizamos, em negrito, as partes principais):

PSTU: A Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, não garantiu liberdade ao povo negro. Foi um falso consenso das elites para não reparar os 350 anos de escravidão que obrigou negros e negras a trabalharem de graça e feito bichos para “seus donos”.

Geledés – Instituto da Mulher Negra – Abdias do Nascimento: O que de fato empurrou a Coroa imperial a libertar os escravos foram, em primeiro lugar, as forças econômicas subjacentes à Revolução Industrial, capitaneadas por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos manufaturados. 

Outro fator fundamental foi o recrudescimento da resistência negra.

Sem terras para cultivar e enfrentando no mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus, em geral subsidiados por seus países de origem e incentivados pelo Governo brasileiro, preocupado em branquear física e culturalmente a nossa população, os brasileiros descendentes de africanos entraram numa nova etapa de sua via crucis.

Insurgência (Paulo Henrique Silva): As forças econômicas no século XIX subjacentes à Revolução Industrial, tendo como protagonista uma Inglaterra sedenta pela expansão de mercados para seus produtos manufaturados empurravam a coroa Imperial a libertar seus escravos.

Na missão do estado brasileiro de embranquecer física e culturalmente a população, o governo brasileiro é protagonista na nova etapa e condição social do negro no Brasil.

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Atualmente o grande debate do movimento negro é a defesa das “ações afirmativas” que vou chamar aqui de “ações compensatórias”, mesmo termo usado por Abdias do Nascimento.

As ações afirmativas têm o seu maior incentivador na Fundação Ford, que explica os seus objetivos no seu site:

Acreditamos em colocar a justiça racial no centro dos esforços para promover a democracia e a igualdade no Brasil. Apoiamos o surgimento e o crescimento de novas vozes e narrativas poderosas em contextos urbanos e rurais e trabalhamos para conectá-los a outros líderes, movimentos e instituições-chave de justiça social. Isso inclui um foco particular no fortalecimento da liderança de jovens negros e mulheres das favelas brasileiras e das periferias urbanas.

Abdias do Nascimento, no artigo aqui citado e que é elogiado pela Insurgência (seção da “IV Internacional”, novo nome do antigo Secretariado Unificado) explica o que são estas ações e a que se propõe:

1) aumentar a participação de pessoas qualificadas, pertencentes a segmentos historicamente discriminados, em todos os níveis e áreas do mercado de trabalho, reforçando suas oportunidades de serem contratadas e promovidas; 2) ampliar as oportunidades educacionais dessas pessoas, particularmente no que se refere à educação superior, expandir seus horizontes e envolvê-las em áreas nas quais tradicionalmente não têm sido representadas; 3) garantir a empresas de propriedade de pessoas desses grupos oportunidades de estabelecer contratos com o governo, em âmbito federal, estadual ou municipal, dos quais de outro modo estariam excluídas.

Se a posição de Abdias e da Fundação Ford são claras, a posição das organizações ditas de esquerda, ao se reclamarem da política de compensação ou reparação, política que visa claramente “melhorar o capitalismo” fica, pra dizer o mínimo, estranha. Na verdade, apenas demonstra que ou estes senhores nada estudaram do que estão falando ou então estão simplesmente defendendo o capitalismo, o reformismo, e procuram esconder isso através de fraseologias revolucionárias.

As revoluções e revoltas que varreram o Brasil na década de 1830 (Balaiada, Malês, Revolução Farroupilha), eram bem concretas: procuravam mudar o estado imperial, baseado nos grandes proprietários de terra, para um estado republicano burguês. Foram dirigidas em sua maioria por pequeno-burgueses ou diretamente pelos escravos (Malês). As revoltas e fugas após a guerra do Paraguai, que não liberou os escravos nem distribuiu terra, tinham  uma reivindicação concreta: o fim da escravidão.

“Reparações” são termos de hoje, daqueles que deixaram de lado a luta pelo fim do capitalismo que construiu a escravidão moderna e o racismo e a substituíram por uma política reformista que visa, em última análise, a melhorar o capitalismo.

O “embranquecimento”: a imigração, o anarquismo e o crescimento da classe operária no Brasil

A política dita de “embranquecimento” colocada em prática logo após o fim do império tinha uma lógica econômica por trás: ela traduzia um acordo prático entre a nascente burguesia das cidades e os grandes proprietários de terras para substituir a mão de obra escrava, mão de obra sem formação e que vinha de uma vitória, a liberação dos escravos, por uma mão de obra que tivesse uma formação melhor, que pudesse de alguma forma melhorar os métodos agrícolas e também contribuísse nas nascentes indústrias.

Assim, o objetivo era duplo: ao buscar imigrantes entre as camadas proletárias mais pauperizadas da Europa, conseguia-se trabalhadores que estavam dispostos a tudo para se sacrificar em busca do pão do seu dia a dia assim como estariam mais dispersos e menos dispostos a combater que os ex-escravos. Sob o manto ideológico do “embranquecimento”, do racismo declarado nesta própria expressão, buscava-se também dividir a classe operária nascente entre “brancos” e “negros” (nesta categoria entravam todos não “legitimamente” brancos, inclusive negros e mestiços), tal qual foi feito com sucesso nos EUA. Mas a operação fracassou.

Ao contrário dos EUA que serviram de polo de atração de operários e pequeno-burgueses de várias nações, com dificuldade de unificação do movimento operário nascente e com uma repressão brutal por parte da burguesia, aqui no Brasil a imigração concentrou-se principalmente com os italianos. Isso criou laços entre os imigrantes e, no interior da classe operária, trouxe o primeiro partido que representava os trabalhadores: os anarquistas (que tinham uma forte tradição anti-parlamentar e de criação de sindicatos e uniões sindicais).

Os sindicatos criados ou dominados por este partido rapidamente começaram a se unificar em uniões nas cidades e estados e depois levaram à criação de uma central operária no Brasil (COB, 1906). A ideologia anarquista, apesar de todos os seus problemas, contribuiu para a consolidação de sindicatos baseados na união de classes, de todas as nacionalidades, onde não importava cor ou origem étnica, mas o principal era o trabalho comum: todos são operários, trabalhadores. Os negros constituíam a quase totalidade de muitos sindicatos e em outros ocupavam postos de direção juntos com os imigrantes.

O Partido Comunista, constituído em 1922, tinha a maior parte de seus integrantes negros, assim como de sua direção, até a integração de Prestes e uma parte do movimento tenentista, na década de 1930. Apesar disso, o racismo, e sua expressão pública até a década de 1920, o “embranquecimento” da população, continuou a existir e subsistiu como uma política de divisão da classe trabalhadora, até os dias de hoje.

A luta dos comunistas, marxistas, hoje, é pelo fim da propriedade privada dos meios de produção, fim do capitalismo, e, no bojo desta luta, nos pronunciamos contra todas as formas de opressão, dentre as quais destacamos o racismo e suas expressões deformadas, como o racialismo.