Há 104 anos, a classe trabalhadora russa tomou o poder. Para comemorar o aniversário desses notáveis eventos, é um grande prazer disponibilizar o seguinte relato de uma testemunha ocular da Rússia revolucionária, em 1920, para o público online. Muitos desses artigos e fotografias surpreendentes não foram vistos desde sua publicação, há mais de um século. São um panorama inestimável da Revolução Russa em seu terceiro ano.
No verão de 1920, o Partido Trabalhista Britânico e o Trades Union Congress (TUC) – Congresso dos Sindicatos enviaram uma delegação à Rússia para testemunhar o desenrolar do processo revolucionário. O jornalista Walter Meakin juntou-se a essa delegação. Mas, ao contrário de muitos de seus co-observadores, que passaram toda a viagem peregrinando com os contra-revolucionários, Meakin estava determinado a dizer a verdade para o público britânico.
As observações resultantes, publicadas em uma série no Daily News sob o título “O que eu vi na Rússia”, pintam um quadro único da vida do povo russo e da revolução.A imagem é de uma revolução sitiada por inimigos; faminta e com frio; da indústria e dos transportes assolados pelo caos e pelo colapso na sequência de anos das mais desesperadas provações. No entanto, em meio a tudo isso, o proletariado russo estava se esforçando heroicamente para construir o primeiro Estado operário da história, para começar a construção do socialismo, para espalhar a revolução mundial e para criar um futuro digno de ser vivido por toda a humanidade.
Uma tragédia visitou a Rússia pela mão do imperialismo
Está na moda os historiadores burgueses escolherem a dedo alguns dos horrores e tragédias vividos pelo povo russo nos anos difíceis da revolução e da guerra civil que se seguiram, e jogar a culpa nos líderes da própria revolução.
Na verdade, a responsabilidade pelos horrores daqueles anos – e pela consequente degeneração stalinista do primeiro Estado operário da história – deve ser colocada diretamente nas mãos da contra-revolução e, acima de tudo, nas mãos das potências imperialistas.
Em novembro de 1917, sob a liderança do partido bolchevique, a classe trabalhadora russa tomou o poder – primeiro em Petrogrado e depois em toda a Rússia. Este foi o maior acontecimento que a história humana testemunhou até agora: pela primeira vez, na escala de uma vasta nação, os operários e camponeses explorados se livraram de seus exploradores parasitas e tomaram o poder em suas próprias mãos. Por meio de conselhos de trabalhadores eleitos democraticamente, chamados de “sovietes”, a classe trabalhadora exerceu o poder e deu uma direção a todas as camadas exploradas da sociedade russa.
Todas as esperanças para a Revolução Russa, entretanto, baseavam-se no sucesso ou fracasso da revolução mundial. A Rússia era um país atrasado e semifeudal, arruinado por anos de guerra. A base material para a construção de uma nova sociedade não existia dentro de suas fronteiras. A perspectiva dos bolcheviques, entretanto, era precisamente que a Revolução Russa seria apenas um elo na revolução mundial, e que o socialismo só seria possível em escala global.
Imediatamente, os trabalhadores russos enviaram um grito de guerra aos trabalhadores de todo o mundo para acabar com a barbárie da Guerra Mundial e se livrar do jugo da exploração capitalista. Na verdade, uma onda revolucionária varreu a Europa. A Revolução Russa foi um farol brilhante de esperança para milhões de trabalhadores, camponeses e soldados em toda a Europa e muito além.
Mas o imperialismo internacional entendeu isso tão bem quanto os bolcheviques e começaram a extinguir este exemplo brilhante. Nenhum meio era suficientemente vil e nenhuma atrocidade era demasiado terrível para a classe capitalista, quando tratou de defender seu domínio. Para eles, quanto maior seu sucesso em transformar a Rússia no inferno na Terra, mais sério seria o aviso que enviaria aos trabalhadores de outros países para não imitarem o exemplo russo. Assim, a tomada do poder pelos soviéticos em novembro de 1917 foi imediatamente seguida pela invasão da Rússia por 21 exércitos estrangeiros de intervenção.
Com a ajuda desses exércitos, a guerra civil se transformou em uma tempestade de fogo, deixando a Rússia totalmente devastada. A tragédia da Primeira Guerra Mundial e a sabotagem econômica pelos latifundiários e capitalistas após a revolução agora eram multiplicadas por mil. Os transportes foram devastados e a fome e o frio assolaram as cidades, que ficaram parcialmente despovoadas à medida que milhões de trabalhadores regressavam às aldeias onde, pelo menos, podiam encontrar alimentos.
E mais, contra todas essas dificuldades, a Revolução mostrou a resiliência mais inspiradora. Embora as esperanças dos capitalistas e latifundiários expropriados tivessem aumentado com a intervenção estrangeira, a velha classe dominante permaneceu totalmente desacreditada e isolada. Enquanto isso, um Exército Vermelho rigidamente disciplinado de milhões de camponeses e trabalhadores foi forjado no meio da luta sob a liderança de Leon Trotsky.
Mas, apenas para sobreviver, a Revolução teve de recorrer às medidas mais desesperadas, que não deixavam de ser consideradas males temporários, mas necessários.
Os partidos políticos foram proibidos de pegar em armas contra a República Soviética, um após o outro. No final de 1918, em resposta ao terror branco contra-revolucionário contra os trabalhadores e camponeses, um terror vermelho caiu sobre as cabeças dos ex-capitalistas e latifundiários. A requisição de grãos dos camponeses para alimentar as cidades e o Exército Vermelho tornou-se necessária. A ordem teve que ser restaurada na indústria, não deixando espaço para experimentos em termos de democracia dos trabalhadores quando a gestão unipessoal foi introduzida. Nas ferrovias em particular – a chave para uma vitória militar e econômica – uma disciplina severa foi instalada.
Ainda assim, por meio do esforço heróico da Revolução, o Exército Branco contra-revolucionário foi efetivamente esmagado no ano de 1920. A chamada “gripe bolchevique” estava inclusive se espalhando nas fileiras dos próprios exércitos de intervenção estrangeira. Todas as forças expedicionárias britânicas, francesas, americanas e canadenses sofreram graves motins e, uma a uma, foram retiradas.
Após três anos de revolução, parecia que a nova república soviética poderia finalmente iniciar o processo de reconstrução econômica. Mas, naquele exato momento, uma nova ofensiva foi lançada contra a Rússia Soviética – desta vez pelo exército do ditador polonês Piłsudski, com total apoio das potências imperialistas. No final de 1920, os soviéticos enfrentavam uma situação desesperadora.
Heroísmo diante de obstáculos terríveis
Estas eram as circunstâncias nas quais o proletariado russo – e sua vanguarda organizada no partido bolchevique – se esforçava para repelir o imperialismo: manter a aliança com a maioria do campesinato; criar um Estado saudável de trabalhadores; e, acima de tudo, prestar assistência aos trabalhadores do resto do mundo para derrubar sua própria classe dominante.
Tragicamente, o proletariado no restante da Europa não foi capaz de tomar o poder na onda de revoluções que se seguiu à Revolução Russa – principalmente por causa da inexperiência dos partidos comunistas. Os trabalhadores russos, portanto, permaneceram isolados.
Desesperado, desmoralizado e em grande parte disperso no Exército Vermelho ou tendo retornado às aldeias, o proletariado foi afastado por uma burocracia crescente que acabaria por elevar Stalin ao poder.
Apesar das mentiras dos historiadores pagos pela classe dominante – que despejam calúnias em escala industrial contra a Revolução Russa – não houve qualquer “falha inerente” ao bolchevismo que levasse inevitavelmente ao stalinismo. Não é nenhuma surpresa que o regime saudável de uma democracia dos trabalhadores finalmente tenha sucumbido sob os golpes cruéis do imperialismo, do terrorismo branco e do estrangulamento de uma economia já atrasada. O que sim é mais notável é a resistência da Revolução e o heroísmo do proletariado russo e de sua vanguarda, apesar dos horrores que lhe foram infligidos.
Para os marxistas que lutam para derrubar o sistema capitalista hoje, a Revolução Russa continua a ser um farol brilhante do qual continuamos a tirar uma tremenda inspiração e do qual continuremos a aprender lições vitais.
Walter Meakin (1878-1940)
Os historiadores burgueses da época tinham poucos escrúpulos em difamar a Revolução Russa por meio de todos os tipos de mentiras e distorções. Os artigos aqui, de Walter Meakin, são, portanto, ainda mais valiosos como um relato de uma testemunha ocular honesta. Meakin, que também tirou muitas das fotos reproduzidas aqui, era ele próprio um sindicalista convicto.
Um dos fundadores do National Union of Journalists (Sindicato Nacional dos Jornalistas – e mais tarde Presidente do Sindicato, em 1924-25), ele trabalhou para o Manchester Guardian (agora The Guardian) de 1911 a 1917. Durante esse tempo, cobriu o Levante da Páscoa em Dublin e conflitos posteriores na Irlanda. Mais tarde, se juntou ao jornal de esquerda Fleet Street, o Daily News, e tornou-se seu correspondente industrial e trabalhista. Foi assim que Meakin foi convidado a acompanhar a Delegação do TUC do Partido Trabalhista Britânico para visitar a Rússia.Walter nasceu em uma comunidade de mineradores de Nottinghamshire e começou a trabalhar em 1894 como um “jovem de escritório” para a ferrovia de Midland com um salário principesco de 8 xelins por semana (o equivalente a 40 centavos em moeda decimal).
Os editores de marxist.com desejam estender nossa enorme gratidão a Steve Musgrave, neto de Walter Meakin, por preservar este notável pedaço da história e por disponibilizá-lo para publicação. A introdução acima e as legendas que acompanham os artigos a seguir são de Ben Curry.
Galeria
A seguinte galeria de fotos estava na posse de Walter Meakin após o retorno de sua visita à Rússia em 1920. Algumas delas foram capturadas pelo próprio Meakin, enquanto outras foram oferecidas a ele pela agência de imprensa soviética, “All-Russia Photo – Cine Department”. Por questões técnicas, publicamos apenas algumas fotos da galeria disponível no artigo original. Para acessar, clique aqui.
Os seguintes fragmentos, o primeiro dos quais datado de 11 de junho de 1920, foram escritos no início da visita da Delegação do Trabalhismo à Rússia. Meakin descreve como a delegação teve total liberdade para falar com quem quisesse. Ele descreve um desejo ardente de paz e o fim da agressão imperialista por toda parte, e uma saúde pública em um estado extremamente difícil, herdado do passado, mas exacerbado pelo bloqueio.
Apelo da Rússia por uma paz geral
Prontidão para transigir em face da necessidade – Near East Issues – opinião analisada pelo correspondente do “Daily News” em moscou
A nova situação – Fatos importantes
Moscou, 11 de junho (atrasado)
Acontecimentos recentes, particularmente aqueles relacionados com a formação das Repúblicas do Trans-Baikal e do Azerbaijão, seguidos por desenvolvimentos nas relações entre a Rússia e a Turquia, o movimento revolucionário na Pérsia e o sucesso na frente polonesa, investiram as questões da paz com novos e profundamente importantes interesses, que são plenamente refletidos nas discussões nos círculos do governo aqui.
É essencial que a atitude russa seja totalmente compreendida e apreciada na Inglaterra. O resumo a seguir é baseado em conversas com líderes cujas opiniões e influência podem predominar nas decisões do governo.
Os objetivos gerais de paz da Rússia Soviética são garantir a estabilidade em territórios não colonizados com base nos desejos expressos das pessoas envolvidas. […]
De Petrogrado a Saratov, descobri um desejo absorvente de escapar das labutas da guerra e do militarismo, de desviar a vasta energia e entusiasmo do Exército para a tarefa de restaurar a indústria e a agricultura e de retomar relações pacíficas com outros países.
Um pacto com uma Nação inteira
Trabalhadores nas fábricas e grupos de soldados a caminho do front imploram que a Inglaterra mude sua política. Expressa-se mais pesar do que raiva pelo fato de a Grã-Bretanha ter sido o esteio da intervenção e do bloqueio. A evidência é esmagadora de que a paz seria, não um acordo com um governo baseado exclusivamente na força, mas um tratado com uma nação inteira que está, pelo menos, absolutamente unida na demanda de ser deixada livre para resolver seus próprios assuntos internos.
A alternativa deve ser o nascimento de um espírito de amargura abrindo possibilidades perigosas: homens proeminentes que desejam ansiosamente a paz porque desejam uma situação sob a qual as restrições e repressões protetoras existentes possam ser abolidas, declaram que, se a hostilidade da Entente for perpetuada, todos os métodos de proteção da República Soviética terão de ser adotados; e não se esconde a crença de que, se a Rússia for levada a esse rumo, as relações estabelecidas com os povos do Oriente Próximo poderiam ser desenvolvidas de uma forma nem um pouco desejada, enquanto permanece a esperança de um acordo pacífico com os países ocidentais. […]
Reconstruindo a Rússia – Traballho interrompido pela invasão polonesa
A delegação trabalhista britânica chegou aqui hoje depois de cinco dias extenuantes em Petrogrado. Desde que deixamos Reval [Tallinn, Estônia], nossa experiência tem sido memorável. A ansiada investigação cresce em escopo, e os detalhes necessários para a investigação autorizada e exaustiva que foi empreendida em toda a situação russa estão se tornando mais plenamente realizados.
Antes de registrar brevemente os movimentos da delegação, é um sério dever declarar claramente o efeito da nova guerra polonesa sobre o povo russo. Existem diferenças de opinião a respeito do futuro desenvolvimento do Estado socializado, mas os moradores da cidade, camponeses e militares, são unânimes na determinação de fazer todos os sacrifícios adicionais necessários para repelir o novo invasor. O novo ataque levou adiante uma etapa definitiva – o tremendo movimento da consolidação do apoio ao governo. A invasão é considerada um ato desenfreado de agressão, inspirado pela reação imperial nos países da Entente, bem como na Polônia. Esta convicção despertou o povo, sofrendo agudamente com a privação, a desenvolver um novo ardor e entusiasmo pela defesa da República.
O povo unido
O povo russo quer a paz, mas considera os termos oferecidos à Polônia como justos e razoáveis. Consequentemente, não há qualquer indicação, seja de hesitação em aceitar o desafio da Polônia, seja de dúvida quanto ao resultado da nova luta. Se a luta se prolongar, é óbvio, pela situação aqui existente e pela solidez do apoio dado ao Governo na resistência aos polacos, que os problemas resultantes na Europa Central crescerão enormemente em magnitude e complexidade. […]
Missão do Partido Trabalhista na Rússia
Argumentos fortes contra a política da Entente – os prisioneiros britânicos
A Delegação Britânica parte esta noite para Nijni Novgorod, de onde começa uma viagem de vários dias pelo Volga. As chamadas para observação da condição do camponês serão feitas em intervalos. Em seguida, os delegados provavelmente visitarão Kharkov, na Ucrânia. O Sr. Ben Turner e o Sr. Shaw estão renunciando a essas viagens, para que possam retornar à Inglaterra a tempo da Conferência do Partido Trabalhista, já que é fortemente considerado que a conferência deve ser amplamente informada das condições existentes na Rússia, dos argumentos tremendamente fortes contra a continuação da política da Entente e da necessidade urgente de suprimentos médicos para o combate à epidemia de doenças e para a proteção da vida infantil.
Sobre este assunto, o Dr. Semashko, Comissário de Saúde Pública, deu-me ontem algumas informações esclarecedoras. Com a cooperação do serviço médico em geral, ele está trabalhando heroicamente para enfrentar as condições adversas, mas a tarefa dos médicos nos hospitais torna-se extremamente difícil devido à falta de sabão, desinfetantes, remédios e alimentos nutritivos.
Necessidade de ajuda médica
A necessidade urgente de ajuda para salvar as crianças pode ser indicada pelo fato de que, no antigo regime, a mortalidade infantil era de 250 por 1.000 nascimentos. Desde a Revolução, muitas medidas, até então novas na Rússia, foram tomadas para controlar essa mortalidade terrível, mas o efeito do bloqueio e da escassez de alimentos especiais, induzindo desnutrição e afecções especiais entre as mães, raquitismo e outras doenças infantis, contrabalançou amplamente esses esforços. As dificuldades aumentam ainda mais com a remobilização de médicos após o ataque polonês.
O tifo em Moscou está agora em uma escala semelhante à epidemia em Petrogrado, mas está diminuindo conforme o clima fica mais quente. Um surto de cólera era temido, mas, como resultado de pequenas medidas sanitárias enérgicas, especialmente em Moscou e Petrogrado, desde o derretimento da neve, espera-se que o perigo tenha sido afastado. As ruas já estão quase normalmente desobstruídas, mas ainda não é possível reparar totalmente os defeitos nas tubulações sanitárias causados pelos rompimentos em larga escala durante o período sem combustível no inverno.
O tifo e a febre recorrente são agora as únicas doenças epidêmicas graves, mas prevalecem na maior parte do país, especialmente nas áreas onde os exércitos de Denikin e Koltchak operam. Esses exércitos deixaram uma herança terrível de doenças.
Investigação plena
O inquérito da delegação continuou com liberdade e plenitude, e minha expectativa, depois de deixar Petrogrado, de que ultrapassaria em amplitude e meticulosidade qualquer investigação anterior está plenamente confirmada. A situação foi discutida com pessoas de todos os partidos e matizes de opinião. Hoje, vários membros visitaram as prisões, onde foram deixados perfeitamente livres para falar em particular com os prisioneiros, incluindo o Sr. Keeling e o Sr. Rayner – este último representa a Saltaire Works aqui. Ambos estão bem. […]
Na sexta-feira, grupos separados foram formados para visitar as fábricas de tecidos, fábricas de roupas e escolas. À noite, a delegação compareceu à Ópera e ouviu do antigo camarote imperial uma bela apresentação de “Orfeu”. No sábado, houve diversas consultas, seguidas de uma performance de “Carmen”. A Opera House estava lotada de trabalhadores.
O Dr. Haden Guest está investigando o serviço médico e a organização de luta contra as doenças. Grande progresso está sendo feito, mas o serviço está novamente prejudicado pelas necessidades da mobilização. A situação é ruim se julgada pelos padrões ingleses em condições normais, mas os relatórios recentemente publicados na imprensa inglesa são fantasticamente contrários aos fatos. De uma população de cerca de 800.000, oitenta casos de tifo por dia são relatados, mas uma excelente organização, incluindo um corpo sanitário voluntário de 1.000 pessoas, foi organizada para combater esta doença. A mortalidade geral é reconhecidamente elevada, devido aos efeitos da escassez de alimentos nas cidades. Nessas circunstâncias, a continuação de obstáculos de qualquer tipo ao renascimento dos distritos externos é altamente deplorável. Desinfetantes, sabonete, anestésicos e outras drogas, bem como leite, manteiga e alimentos nutritivos, são terrivelmente necessários e só podem ser obtidos em parte por importação e em parte por novos meios de transporte, que não podem ser criados durante a guerra e o bloqueio. A necessidade mais urgente, portanto, é trazer alimentos e matérias-primas de partes distantes do país.
Investigação livre
Nenhum obstáculo é colocado pelas autoridades no caminho para o mais completo inquérito por parte da delegação. As sugestões que mostram que os lugares teriam sido cuidadosamente selecionados são simplesmente absurdas. Foram dados passes que nos garantem acesso livre em qualquer lugar, e eu mesmo fiz pesquisas sobre os personagens mais diversos em Petrogrado, entre todas as classes da população, incluindo residentes britânicos e vários russos não partidários. Seria injusto escrever sobre essas investigações até que mais material para um julgamento ponderado tenha sido obtido, mas isso pode ser dito enfaticamente – o fato dominante implacável da situação social é a escassez de alimentos; e a fome gradual de toda a população da cidade é o argumento mais forte nos apelos dos trabalhadores de Petrogrado aos trabalhadores britânicos para que se empenhem em trazer a paz completa e a remoção de todas as restrições ao comércio.
Já ficou claro que o estado real das coisas, não apenas como observável na superfície, mas como verificado por investigação próxima e imparcial em muitos setores, é radicalmente diferente da concepção prevalecente na Grã-Bretanha. Os fatos apurados em Petrogrado serão reexaminados com maior liberdade em Moscou e em outros lugares.
Todos os membros da delegação estão bem.
No primeiro artigo de sua série, “O que eu vi na Rússia”, datado de 2 de julho de 1920, Meakin começa contextualizando tudo o que viu durante sua viagem pela Rússia: os horrores da guerra; a desorganização da indústria antes da revolução; o colapso do transporte; e a fome, o frio e a miséria que se agravaram com a guerra civil.
O que vi na Rússia – “Notícias Diárias” – o investigador especial começa sua história – TOUR INDEPENDENTE – As condições reais sob o governo soviético
O Sr. Walter Meakin, correspondente especial do “The Daily News” que acompanhou a Delegação do Partido Trabalhista à Rússia, voltou à Inglaterra e, em uma série de artigos, o primeiro dos quais aparece abaixo, contará aos nossos leitores o que viu da realidade social e das condições econômicas sob o governo soviético.
Neste primeiro artigo, ele limpa o terreno, mostrando que a vida social estava em um estado de colapso e os pobres já enfrentavam a fome antes da Revolução de março de 1917. Suas investigações foram totalmente livres, e ele apresentará um quadro notável de vida na Rússia de um ponto de vista independente. Em seu próximo artigo, ele tratará do suprimento de alimentos.
Passado e presente
Preparando o terreno para uma estimativa justa das condições
Por Walter Meakin
Na tentativa de descrever, mesmo de maneira geral, a situação social, industrial, política e militar na Rússia hoje, somos dificultados pela natureza difícil e complicada da tarefa. Essa situação é tão variada em seus múltiplos aspectos quanto toda a gama de impulsos e temperamentos humanos. A imagem que se visualiza após seis semanas de intensa investigação e observação concentrada, tanto na cidade quanto no campo, exibe todas as tonalidades de cor, desde a obscuridade das lutas da guerra e das privações sofridas, sob os mais variados estados de ânimo, por grandes massas da população, até os mais brilhantes matizes de devoção abnegada aos esforços idealistas.
Seria fácil tomar qualquer grupo particular de episódios e basear neles um relato que daria uma impressão, de acordo com a natureza dos fatos, seja de tirania pura ou de realização utópica. No entanto, a impressão assim criada seria profundamente errada.
Os fatos
Por exemplo, se alguém descreveu com a maior precisão as condições de fome, as epidemias e seus efeitos, as medidas repressivas contra os contra-revolucionários ou as propostas de militarização do trabalho, e se absteve de apontar a associação dessas coisas com as condições prevalecentes na época da primeira revolução e com os eventos da guerra civil e da guerra polonesa, o resultado pareceria a mais terrível acusação possível aos líderes da revolução.
No entanto, o quadro das imagens é uma distorção completa dos fatos coletivos. Da mesma forma, se alguém descrevesse com igual precisão os esquemas para a construção de um novo Estado social e industrial, para os cuidados de mães e filhos, para a eliminação do analfabetismo da população mais analfabeta (mas de forma alguma menos inteligente ou sutil) na Europa, ou para o cultivo das artes pelos trabalhadores, o resultado pode aparecer a maior conquista social e cultural da história da humanidade.
No entanto, a menos que esse relato fosse instilado por uma declaração sincera dos obstáculos no caminho da aplicação prática e do frequente fracasso dos instrumentos humanos pelos quais o idealismo deve ser provado na prática, seria da mesma forma uma distorção completa dos fatos coletivos.
Sob o czar
Portanto, antes de descrever as características marcantes e intensamente interessantes da vida russa ao final de dois anos e meio de governo bolchevique e soviético, eu insistiria enfaticamente na necessidade de manter em mente esses fatos simples, que podem ser verificados por referência aos arquivos de jornais da época ou a vários livros totalmente confiáveis que tratam dos estágios finais da guerra sob o regime czarista:
- Que sob a pressão da guerra, que se tornou insuportável, em conseqüência principalmente da incompetência burocrática e da corrupção, a vida econômica do país estava se dissolvendo rapidamente no caos.
- Que o transporte e o suprimento de comida estavam falhando.
- Que essa fome afligiu as populações mais pobres das cidades e das aldeias.
- Que a força motriz do movimento revolucionário deriva deste estado de coisas.
É do conhecimento comum que, sob a influência do governo de coalizão após a primeira revolução, a inépcia e os objetivos contrários aceleraram a tendência de queda ao longo do verão de 1917 e que, finalmente, após a turbulência da revolução de outubro, os líderes bolcheviques bem-sucedidos foram os herdeiros de uma sistema industrial e econômico se aproximando rapidamente do colapso total. Não apenas o Exército se dissolveu em elementos caóticos e sem lei após a última e fútil ofensiva, como também, em cada usina e fábrica, os trabalhadores, intoxicados por sua recém-descoberta “liberdade”, livraram-se de todas as restrições de disciplina que haviam praticamente deixado de existir efetivamente durante os dias difíceis do regime de Kerensky.
Engrenagem de enventos
Somente o paciente historiador do futuro será capaz de desvendar o emaranhado de eventos na esfera industrial durante o período subsequente, antes que o governo soviético pudesse restabelecer alguma medida de controle, e até que essa revisão histórica seja concluída, é impossível dizer até que ponto o estágio final do colapso econômico foi devido à operação contínua das causas que remontam ao colapso do regime czarista, ou aos erros anteriores e livremente admitidos dos bolcheviques. O próprio Lenin fala com franqueza envolvente dos erros e da “estupidez” desses primeiros esforços para estabelecer de uma vez um Estado comunista ou socialista completo e perfeito sobre as ruínas do antigo, e recentemente o próprio Partido Comunista, em pleno Congresso reunido, tratou implacavelmente das ideias acalentadas por alguns de seus membros neste período em que se anda tateando entre o velho e o novo.
Neste artigo, tentarei indicar claramente a natureza das atividades que agora são oficialmente condenadas, mas o ponto que desejo enfatizar aqui é que nenhuma análise das condições existentes que omita a herança dos bolcheviques quando tomaram o poder de seus predecessores, ou que deixem de levar em conta as dificuldades quase inimagináveis criadas pela guerra civil e pela intervenção da Entente, podem apresentar de forma justa ou precisa os resultados dos esforços administrativos e reconstrutivos do governo soviético.
Outro ponto igualmente importante, e que ficou continuamente gravado em minha mente enquanto estive na Rússia, é a futilidade de tentar julgar o que aconteceu lá pelos padrões ingleses. A feroz repressão da era czarista é vista agora operando, dentro de uma reação igualmente feroz, nas mentes dos homens que voltaram a desempenhar um papel de liderança na revolução com amargas memórias de confinamento em fortalezas ou em exílios solitários. Então, industrialmente, a Rússia estava meio século atrás da Grã-Bretanha em muitos aspectos, e particularmente no que diz respeito a salários e condições de trabalho.
A comparação justa
Acrescente-se a isso o efeito, sobre o desenvolvimento da Rússia, da existência de uma classe camponesa predominante e reprimida, e começa-se a entender um pouco as grandes diferenças que distinguem a Rússia de um país industrial altamente organizado como a Grã-Bretanha, e que influenciaram profundamente a natureza e os eventos da revolução. Qualquer comparação justa entre a condição atual e as condições pré-revolução do povo deve ser baseada nos padrões russos e não nos britânicos.
Desejo, ao encerrar esses comentários introdutórios, deixar perfeitamente clara minha relação com a Delegação Trabalhista Britânica. Minha permissão para entrar na Rússia me foi dada como correspondente de um jornal. Viajei de e para Moscou com a delegação por cortesia de seus membros, e visitei várias fábricas, obras e instituições na companhia da Delegação. Além disso, minhas investigações, até mesmo nas fábricas, foram conduzidas de forma bastante independente.
Em Petrogrado e Moscou, e nas cidades e vilarejos do Volga, meus movimentos eram livres e organizei meu próprio programa de investigação. As opiniões e conclusões que expressarei em artigos subsequentes são inteiramente de minha responsabilidade.
CONTINUA NA PARTE 2
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM